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Resenha: Saltwater de Jessica Andrews11 min read

Foto da página de rosto do livro Saltwater de Jessica Andrews.

Em uma entrevista concedida ao The Guardian na ocasião do lançamento de Saltwater Jessica Andrews falou sobre a experiência de usar sua própria voz para contar uma história:

Como uma jovem mulher de classe trabalhadora, eu não tinha muito espaço para dizer o que eu pensava e nem sentia que eu merecia falar. Escrever o livro e pensar experiências me ajudou a ver a minha posição no mundo – é sobre tentar encontrar o seu lugar. Eu não li muitas histórias contemporâneas de classe trabalhadora escritas por mulheres e escrever o livro abriu espaços para mim, isso me deu uma voz e uma sensação de boa autoestima. Eu queria abrir espaço para outras mulheres de classe trabalhadora também. 1

Em seu romance de estreia, Andrews usa sua voz para compor uma narrativa simultaneamente complexa e acessível. A narração em primeira pessoa garante ao leitor acesso ao universo mental de Lucy Bailey: sua vida chega a nós em snapshots, breves cenas memoráveis em momentos grandiosos ou aparentemente pequenos que marcam de alguma forma o caminho da garota, de sua primeira infância até uma espécie de maturidade. Acompanhamos Lucy conforme ela se muda de cidade, ata e desata laços e gradualmente se sente mais confortável na própria pele.

Podemos alinhar a prosa imagética de Andrews a uma tradição poética da mulher escritora estudada por Virginia Woolf em A Room of One’s Own (Lucy observa, em dado momento, ter “descoberto Woolf e Plath e Sontag” e “começado a se sentir menos estranha”2).

Andrews usa de forma hábil e propriamente sua as ferramentas que as autoras que a influenciaram lhe forneceram. Saltwater merece, desde já, ser reconhecido como um dos melhores e mais empolgantes romances de 2019.

Saltwater: a família, o corpo e as cidades

“Eu acho difícil dormir no chalé. Acho que é porque eu não tenho muito com quem conversar, então meus pensamentos ficam presos embaixo da minha pele como bolhas.”3

Pensa Lucy pouco após se mudar para a casa do avô em Burtonport, na Irlanda. Para libertar sua pele das bolhas, podemos inferir, Lucy conta suas histórias para nós, seus leitores. Em uma narrativa que navega entre períodos variados da vida da jovem narradora, nos encontramos com ela em seu presente. Após a morte do avô, ela e a mãe se encontram na casa dele para decidir como lidar com as coisas que ficaram para trás. A solução encontrada pela mãe de Lucy, é queimar tudo: “Não me olha desse jeito. São apenas coisas, sabe”4, ela tranquiliza a filha.

Lucy se muda para a antiga casa do avô, trocando a ebulição londrina pelo silêncio burtonportoniano. Embora às vezes pense sobre “Londres seguindo em frente sem ela”5, Lucy conclui que “está muito sozinha na Irlanda, mas não particularmente solitária”6. Ela descobre novas maneiras de experienciar sua própria existência, mas não é simples o processo de redescobrir e recuperar sua herança irlandesa:

Eu quero usar minhas novas palavras em conversas, no correio ou na mercearia da esquina, mas elas ficam pegajosas na minha boca, que nem manteiga de amendoim. Não sei se eu tenho direito a essa língua, falada pela minha família irlandesa e destruída pelo lado do meu pai da família.7

É gradual e bonita a caminhada de Lucy rumo a um entendimento de si e do seu espaço que permitam a ela sentir que pertence ali. Com o tempo, aquele lugar passa a ser dela também.

Um retrato complexo da relação entre mãe e filha

Narrado em primeira pessoa por Lucy, o romance compartilha com o leitor a subjetividade em devir da protagonista. Lucy testa repetidamente os limites de quem ela é e de quem pode vir a ser.

Muito do que é dito se dirige à mãe da personagem. A narrativa mapeia as sutilezas e oscilações desse relacionamento, assim como as tentativas da filha de tentar descobrir o espaço que é propriamente seu no mundo, não mediado pelo amor imenso que sente pela figura materna.

A relação entre Lucy e Susie é intensa, complexa e o mapeamento de como filha e mãe se aproximam, distanciam e reaproximam com o passar dos anos são narrados de forma delicada por Andrews. Embora muitas pessoas passem pela vida de Lucy entre amigos, namorados, colegas de faculdade e de trabalho, é esta relação primeira que afeta de forma mais definidora a sua vida. Para a menina, que vemos se tornar adolescente e, por fim, uma jovem mulher, a mãe é uma companheira, uma amiga, um espelho e uma bússola

É também em relação ao corpo – e à forma como ele media suas relações com o mundo – que acompanhamos a jornada de Lucy, desde o início. “Começa com os nossos corpos’8, é a primeira frase que lemos no romance. “Pele na pele. Meu corpo irrompe do seu. Seguras juntas na escuridão violenta e, no entanto, espaços já começam a se formar entre nós”.9

O prólogo narra, em primeira pessoa, a ruptura original entre mãe e filha. Lucy se dirige a Susie e descreve essa primeira separação, o primeiro encontro entre mãe e bebê: “Você me abraça junto ao seu peito e eu sou você e não sou você e nós não vamos sempre pertencer uma à outra, mas por enquanto somos nós e está tudo quieto”.10

Também é um dos pontos altos do romance a forma como o relacionamento de Lucy com o próprio corpo se desenvolve ao longo dos anos. Na Parte Dois, já na adolescência, ela avalia:

“Meu corpo é o tipo errado de corpo. Eu tenho seios fartos e uma cintura fina e homens aldultos param para me encarar na rua”11 e conclui: “Eu não quero que meu corpo cause uma agitação. Eu não quero que ele seja a primeira coisa a falar”12, um desconforto facilmente compreendido por toda mulher que leva sua vida em uma sociedade que encara o corpo feminino como algo que não pertence plenamente à pessoa que nele habita.

A geografia do pertencimento

Uma das marcas definidoras de Saltwater é a relação de Lucy com os lugares que ocupa e a percepção que ela tem das diferenças de cada cidade em relação a ela própria, mental e fisicamente. Navegando entre sua infância e adolescência passadas predominantemente em Sunderland, no norte da Inglaterra, os anos da faculdade e do início da vida adulta em Londres e do presente retorno à Irlanda e às raízes familiares após a morte do avô, Lucy descobre aos poucos o que cada lugar representa para ela e que espaço ela deseja ocupar.

Se na adolescência ela sonhava com a efervescência de Camden Town com seus pubs e artistas famosos, as imagens de Londres, após o retorno à Irlanda, a oprimem. A estética e as idiossincrasias do seu novo lar agora fazem sentido para ela:

“Quando adolescente, eu fugia da solidez e da estase e de tons de marrom. Eu queria coisas que brilhassem e borbulhassem. Agora que estou aqui, sob a fumaça de turfa e os céus acobreados, marrom parece um lugar seguro. Eu posso engatinhar nele e engolir punhados de solo.”13

Podemos conjecturar que talvez isso seja possível exclusivamente porque ela teve a oportunidade de experienciar o espaço que idealizara por tanto tempo e lá permanecer até que aquilo deixasse de fazer sentido e uma nova ânsia por um outro tipo de espaço se formasse:

“Houve um tempo em que eu ansiava pela proximidade de um centro, a sensação de que algo estava sempre prestes a acontecer, imediatamente fora de alcance. A cidade era uma forma que não podia ser classificada, se modificando e se movendo, infinitas possibilidades penduradas pelas ruas como frutas. Agora, quando penso na cidade, é em retângulos e quadrados; formas impenetráveis com cotovelos afiados, me deixando de fora.”14

Daisy Johnson elogiou Saltwater dizendo que o livro “ousa ser diferente, olhar de uma forma diferente”15. Além disso, “Andrews não está seguindo os passos de ninguém, ela está destruindo as pegadas e criando o caminho do zero”16. A avaliação da autora de Everything Under me parece precisa: embora possamos identificar Jessica Andrews em uma tradição e intuir escritoras que certamente a influenciaram, sua voz é propriamente sua. A questão da voz, aqui, é altamente significativa e sinaliza a habilidade da escritora, considerando-se que este é seu romance de estreia (muito embora ela seja uma poeta experiente).

Isso também nos conduz a outro elemento da escrita de Andrews: em suas entrevistas, a autora, que é coeditora da revista literária The Grapevine, uma plataforma para artistas e escritores de alguma forma marginalizados, sinaliza a necessidade de o mercado editorial britânico – notavelmente londoncêntrico – prestar mais atenção e oferecer mais espaço às vozes do norte.

Saltwater é uma obra revigorante. Como Lanny de Max Porter, ele nos permite questionar, mais uma vez, o que entendemos por um romance no século XXI. Como Milkman, a obra ousa trabalhar em um modo com uma voz narrativa que se desvia do convencional. Como Normal People, ele encena circunstâncias tipicamente contemporâneas com maestria. No entanto, Saltwater permite que tracemos tais paralelos sem necessariamente se parecer com nenhum desses romances. Aos 27 anos de idade e publicando seu primeiro romance, Jessica Andrews tem firmeza naquilo que se propõe a dizer.

Você pode ler mais sobre o processo de elaboração de Saltwater na postagem sobre a edição do Debut Fiction Showcase que contou com a participação de Jessica Andrews.

Publicado por

Marcela Santos Brigida
Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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