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Resenha: Lowborn de Kerry Hudson9 min read

Foto do livro Lowborn: Growing Up, Getting Away and Returning to Britain's Poorest Towns de Kerry Hudson sobre uma mesa de pinus.

Vamos começar com um final feliz? Eu consegui. Eu me ergui. Eu escapei da pobreza. Eu escapei de comida ruim porque é só isso que dá para comprar. Eu escapei de roupas puídas e de sapatos apertados. Eu escapei de beber ou me drogar até perder a consciência porque… porque sim. Eu provavelmente escapei das taxas de mortalidade precoce e doenças preveníveis – veremos. Eu escapei da obesidade. Eu escapei de taxas mais elevadas de abuso doméstico. Eu escapei de conjuntos habitacionais, casas queimadas e caminhões de sorvete vendendo drogas no portão da escola. Eu escapei do Jeremy Kyle vestindo uma camisa brilhante e me dizendo que a minha raça era a escória. Eu escapei de violência casual e sombria instigada por frustração e cerveja. Eu escapei das filas para coletar benefícios e de reavaliações financeiras e zero-hour contracts1 horríveis. Eu escapei da desesperança. – Kerry Hudson, Lowborn

Em seu terceiro livro, Lowborn: Growing Up, Getting Away and Returning to Britain’s Poorest Towns, Kerry Hudson apresenta ao leitor uma análise contundente das engrenagens que possibilitam que níveis estarrecedores de pobreza atinjam adultos e crianças em todo o Reino Unido. Ao visitar algumas das cidades e distritos mais vulneráveis do país, a autora refaz também a sua própria jornada.

Nascida em 1980 em uma família de fishwives em Aberdeen, Hudson experienciou ao longo das duas primeiras décadas de sua vida uma existência marcada por privações e dificuldades ligadas à condição de pobreza de seus familiares que o Estado não foi plenamente capaz de remediar. Hudson apresenta, ao longo do livro, uma série de dados alarmantes relativos à desigualdade social no Reino Unido. No entanto, é o fato de que ela alia esses estudos à sua própria experiência de vida que torna Lowborn uma obra tão potente.

Kerry Hudson expõe fases, circunstâncias e eventos aterradores que foram experienciados por ela desde muito cedo (ela tinha três anos em sua primeira lembrança de ter sido removida da guarda da mãe pelo serviço social) e traz um rosto humano às estatísticas. A autora é dolorosamente sincera em alguns momentos e compartilha com o leitor não apenas a dificuldade de retornar aos locais onde viveu, mas aquela relacionada ao próprio processo de elaboração do livro, expondo na página algumas de suas maiores vulnerabilidades.

Entre os dados chocantes compilados por Hudson, está o de que “crianças residentes nos bairros incluídos na lista dos 10% menos favorecidos têm uma probabilidade 18.5 vezes maior de entrar para o registro de proteção à criança do que aquelas residentes nos mais favorecidos” e que as pessoas residentes nas regiões mais pobres da Escócia “têm uma probabilidade 20 vezes maior de serem retiradas da custódia da família do que aquelas das regiões mais afluentes”. A autora critica o fato de que, mesmo com todos esses dados, a pobreza é vista pelo poder público como um sintoma do problema e não como uma causa a ser combatida.   

Resta claro que a maioria, se não todas, as dificuldades que Hudson enfrentou em sua infância seminômade, durante a qual se mudou de cidade diversas vezes com a mãe (e, mais tarde, a sua irmã e às vezes com o padrasto) para “começar do zero” foram causadas ou fortemente influenciadas pelo fato de que sua família era tão economicamente vulnerável.

Kerry vê a mãe (com quem sempre teve um relacionamento difícil, até cortar relações com ela de forma definitiva) enfrentar crises de depressão, falta de perspectivas reais de melhora, problemas sérios com os homens com quem se relaciona e condições insalubres de moradia. Conforme ela cresce, a autora passa a sentir que não é tratada como filha, criança ou adolescente, mas como uma amiga, uma igual, quando tudo que ela mais precisava era de proteção.

Evidentemente, não cabe ao leitor julgar quaisquer das pessoas envolvidas, mas fica claro o que a autora procura expor ao delinear a forma como a pobreza contaminava cada aspecto da sua saúde física, mental e emocional. Embora tenha se afastado da família no processo de se desconectar da realidade que lhe trouxe tanto sofrimento a caminho de uma vida melhor, a autora celebra uma reaproximação com tios e primos que se deu durante o processo de escritura do livro.

Dedicando o livro a “todos vocês que viveram essa história também”, Hudson conversa com diversas pessoas que vivem e trabalham atualmente nos lugares que ela deixou. Ela passa por Aberdeen, Canterbury, Airdrie, North Shields, Hetton-le-Hole, Coatbridge e Great Yarmouth. Além de lançar uma luz sobre o quão invisíveis essas pessoas podem se tornar quando silenciadas pelos discursos oficiais veiculados na mídia sobre elas, Hudson também ajuda a dirimir o problema ao abrir espaço para que elas sejam ouvidas de forma respeitosa em um contexto literário. Para entendermos a cultura e a sociedade britânica na contemporaneidade, essas são vozes que, indubitavelmente, precisam ser ouvidas. Esta é uma questão já levantada por autores como Jessica Andrews e Guy Gunaratne: a importância de que vozes ex-cêntricas, incluindo aqui minorias e membros da classe trabalhadora, por exemplo, sejam plenamente escutadas.

Ao compartilhar sua experiência, Hudson aborda a maneira como ciclos de pobreza, vulnerabilidade familiar e social são perpetuados no país. A autora cita um relatório da ONU sobre a pobreza no Reino Unido que revelou que “aqueles mais severamente afetados pelos últimos oito anos de austeridade foram mulheres, crianças, portadores de deficiência, pensionistas, requerentes de asilo e migrantes, além daqueles vivendo em condições de pobreza nas áreas rurais” (p. 171). Apontando a importância do trabalho de assistentes sociais, Hudson lamenta as muitas vezes em que ela própria precisou de ajuda quando era criança e adolescente e não a obteve.

A autora, por fim, critica duramente políticas de austeridade que tornam ainda mais difíceis as vidas de pessoas em condições de vulnerabilidade enquanto, a seu ver, as elites são poupadas.

Vivemos na sexta maior economia do mundo, mas um quinto de nós vive na pobreza. Governos locais na Inglaterra tiveram uma redução de 49% em  seu financiamento pelo governo desde 2010-11. Quinhentos centros infantis foram fechados nos últimos oito anos e mais de 340 bibliotecas fecharam entre 2010 e 2016, acarretando a perda de 8.000 empregos em bibliotecas. Essas estatísticas prometem que ainda mais famílias não receberão a chance de voltar a trabalhar e, caso, voltem, serão forçadas a aceitar zero hour contracts2 que mal alimentarão suas famílias. Elas significam uma chance ainda menor de melhorar de vida, ter acesso a suporte em questões de saúde mental  ou viver em residências estáveis. Mais crianças continuarão crescendo com grandes dificuldades sem esperança de melhora – o Institute for Fiscal Studies prevê um aumento de 7% na pobreza infantil entre 2015 e 2022 – isso tudo enquanto elas escutam que, de alguma forma, seus pais e elas próprias são os culpados. E não são apenas os pobres de hoje em dia que vão sofrer porque, como eu sei muito bem, a pobreza atravessa gerações, essas dificuldades são transmitidas na sua linhagem. Resumindo, esse governo pagou  pelas isenções de impostos dos ricos com os futuros das nossas crianças e, de alguma forma, nós permitimos que eles o fizessem. (p. 230-231)

Lowborn é um livro de memórias bem-escrito e arrebatador, um relato pungente do que significa nascer e crescer pobre no Reino Unido, delineando a complexa teia de vulnerabilidades associadas a isso. Como Hudson expõe no início do livro, tendo sobrevivido a uma série de riscos que vêm com o modo de vida que lhe coube nas primeiras duas décadas de sua existência, ela conseguiu romper o ciclo.

Ela se tornou uma escritora reconhecida internacionalmente e leva uma vida consideravelmente segura e confortável. O mesmo não pode ser dito de milhares de outros britânicos com origens similares às dela. A autora deixa claro que a perpetuação do ciclo de necessidade e privação interessa a muitos, que dirão que “se você é pobre, de alguma forma você não merece empatia; que, de alguma forma, a pobreza é uma escolha pessoal de fracasso e que se você tivesse trabalhado o bastante, teria evitado um destino de dificuldades diárias e implacáveis.” A autora deixa claro que as realidades expostas no seu livro não podem ser vistas sob a ótica da “ideia apócrifa de que vivemos em uma meritocracia” (p. 230).

Lowborn é uma leitura absolutamente necessária para todos aqueles interessados em compreender as nuances e a complexidade das questões sociais britânicas contemporâneas. Kerry Hudson se estabelece com ainda mais firmeza entre as autoras mais relevantes do século XXI.

Você pode comprar Lowborn através do site da Waterstones.

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Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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