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Milkman de Anna Burns: um romance sem nomes17 min read

Lançado em setembro de 2018 pela Faber and Faber, Milkman de Anna Burns foi, ao lado de Normal People de Sally Rooney, uma das maiores sensações literárias do ano passado no mundo anglófono. O livro tomou as redes sociais de assalto, com sua capa estampando o feed de bookstagrammers e as seções literárias de periódicos britânicos e irlandeses como o The Guardian, The Telegraph, The Independent e The Irish Times. O fenômeno se repetiu quando o livro atravessou o Atlântico e foi lançado nos Estados Unidos em dezembro, recebendo destaque na The New Yorker, no The New York Times e no The Washington Post

O romance foi vencedor do Man Booker Prize, marcando a primeira vez em que um autor da Irlanda do Norte levou o prêmio e quebrando o jejum de cinco anos de vencedoras mulheres.1 Milkman também ganhou o National Book Critic Circle Award for fiction e atualmente está na longlist do Women’s Prize for Fiction de 2019. Um currículo impressionante.

The Troubles – Conflito na Irlanda do Norte

Embora nada seja declarado abertamente – Milkman se desenrola nas entrelinhas, que sugere em vez de nomear – o cenário onde se passam os eventos que constroem o enredo do romance é desvelado para o leitor muito cedo na narrativa. Trata-se de um distrito católico de uma cidade na Irlanda do Norte na década de 1970. Para quem conhece a autora, é possível até mesmo identificar o distrito em questão. Trata-se de Ardoyne, em Belfast, região onde Anna Burns cresceu.

Assim, embora a recusa da narradora de nomear pessoas, grupos e lugares permita que Milkman seja lido de um ponto de vista universal, como um comentário sobre estados de guerra, violência e misoginia, para aqueles que conhecem a história da Irlanda do Norte, o conflito conhecido como The Troubles em inglês ou Na Trioblóidí em irlandês (no Brasil, nos referimos a este momento simplesmente como “Conflito na Irlanda do Norte”) salta aos olhos. Burns o desenha com riqueza de detalhes.

Para quem gostaria de recapitular, o Conflito se iniciou no final da década de 1960 e se estendeu até a assinatura do Acordo de Belfast em 1998. O embate girava em torno do estatuto constitucional da Irlanda do Norte, no confronto ideológico entre a maioria protestante do país (unionistas/lealistas), que pretendia preservar os laços com o Reino Unido, e a minoria católica (nacionalistas irlandeses/republicanos), que defendia a integração do país com a República da Irlanda (predominantemente católica). Evidentemente, embora o conflito seja demarcado temporalmente no período citado, trata-se de uma questão com raízes históricas profundas.

Os principais atores do Conflito foram grupos paramilitares republicanos como o IRA (Provisional Irish Republican Army) e o INLA (Irish National Liberation Army) e paramilitares lealistas como o UVF (Ulster Volunteer Force) e o UDA (Ulster Defence Association). Também tiveram uma atuação considerável forças de segurança britânicas como o Exército e o RUC (Royal Ulster Constabulary). Nenhum desses nomes é citado expressamente no romance, no entanto. Os integrantes do primeiro grupo são referenciados simplesmente como “renouncers of the state”2, enquanto os do segundo são “defenders of the state”3. A Inglaterra é “the country over the water”4, enquanto a República da Irlanda é “the country over there”5 ou “the country over the border”6.

Do local ao universal: Milkman na Irlanda do Norte e para além dela

A questão da Irlanda permanece contemporânea. Como sabemos, um dos grandes impasses do Brexit é justamente o fato de que a República da Irlanda, que não integra o Reino Unido, seguirá fazendo parte da União Europeia independentemente do desfecho das complicadas negociações inerentes à saída dos britânicos do bloco. Desta forma, com a saída da Irlanda do Norte da UE, a fronteira entre os dois países se impõe como questão problemática, cujo tratamento inadequado pelos líderes britânicos e europeus tem o potencial de reacender disputas antigas. Uma fronteira física entre as duas Irlandas seria indesejável até mesmo por questões comerciais e econômicas. No entanto, o próprio Acordo de Belfast impõe a condição de que não haja uma fronteira rígida entre as Irlandas, salvaguardando o livre trânsito de pessoas e mercadorias. Ou seja, um controle aduaneiro formal feriria as condições do acordo que pôs fim a uma guerra sangrenta que durou décadas.

Um universo inominável

Embora as presenças dos atores do Conflito sejam sentidas de forma inegável em Milkman, eles se impõem como figuras bruxuleantes no pano de fundo do dia a dia da protagonista que se recusa a nomear quem quer que seja, inclusive ela própria. Significativamente, a personagem vive mergulhada em obras de ficção do século XIX, preferência que justifica declarando que “não gostava do século XX”. Nomes próprios recebem um tratamento interessante no romance de Burns principalmente pela sua omissão, algo que é percebido desde a sentença que abre o primeiro capítulo:

The day Somebody McSomebody put a gun to my breast and called me a cat and threatened to shoot me was the same day the milkman died.

Anna Burns
Milkman

Além de Somebody McSomebody, Burns lança mão de uma série de epítetos e codinomes curiosos para se esquivar da tarefa de nomear personagens: Milkman é chamado assim, embora não seja leiteiro. Mais adiante na história, surge “the real Milkman”7, um homem que, de fato, exercia essa profissão. Uma personagem que envenena membros da comunidade de forma compulsiva e aleatória é conhecida como “Tablets Girl”8. Somebody McSomebody tem um irmão referenciado como “Nuclear Boy”9 devido à sua obsessão com a Guerra Fria.

Os numerosos irmãos e irmãs da protagonista são nomeados de acordo com a ordem de nascimento: do primeiro ao quarto irmão10, da primeira a terceira irmã 11 e as duas irmãs mais novas que ela, são referenciadas apenas dessa forma: como a mais velha ou a mais jovem das irmãs mais novas12. O jovem que é uma espécie de namorado da narradora é referenciado simplesmente como “maybe-boyfriend”13 devido ao estatuto incerto do relacionamento.

 

Havia programas de televisão neutros que podiam se originar “do outro lado da água” ou “do outro lado da fronteira”, mas serem assistidos por todo mundo “deste lado da rua”, assim como “daquele lado da rua” sem causar deslealdade em nenhuma das comunidades. (…) Havia a comida e a bebida. A manteiga certa. A manteiga errada. O chá da fidelidade. O chá da traição. Havia as “nossas lojas” e as “lojas deles”. Nomes de lugares. A escola onde você estudou. As suas orações. Que hinos você cantava. (…) havia o fato de que você criava uma declaração política aonde quer que fosse, e com tudo que fizesse, mesmo que não quisesse.14

Da mesma forma, havia nomes que “não eram permitidos” por serem pertencentes ao país “do outro lado da água”. Ainda que não tivessem se originado na Inglaterra, entendia-se que tais nomes “proibidos eram entendidos como tendo sido preenchidos com a energia, o poder da história, o antigo conflito, os impasses e as imposições resistidas como foram estabelecidas há muito tempo neste país por aquele país, com a nacionalidade original do nome agora não sendo observada de forma alguma”.15. Após esgotar a longa lista de nomes proibidos, a narradora observa, com seu humor característico, que “Peverill foi proibido duas vezes”.16

Milkman e o século XXI

Milkman invoca preocupações contemporâneas não só ao retomar as questões da Irlanda, mas por meio da discussão acerca de abuso psicológico e misoginia que o romance possibilita. O enredo se desenrola a partir do sufocamento da protagonista – uma jovem de 18 anos – que, alvo das atenções não-solicitadas nem correspondidas de um membro famoso de um exército paramilitar republicano 23 anos mais velho que ela, não encontra amparo nem na sua família nem na sociedade em geral. Todos a culpam pelo assédio que sofre, como se ela o tivesse buscado.

O homem que a assedia é conhecido como Milkman, embora, a protagonista observe, ninguém saiba exatamente por que, já que ela “não sabia leiteiro de quem ele era. Ele não era o nosso leiteiro. Acho que ele não era leiteiro de ninguém. Ele não recebia encomendas de leite. Ele não andava com leite por aí. Ele jamais entregou leite. E também, ele não dirigia um caminhão de leite”.17

Eu acho que este romance vai ajudar as pessoas a pensar sobre o #MeToo. Nós achamos que isso vai durar, e o que eu quero dizer é que não se trata apenas de algo que está acontecendo agora. O romance merece elogios por nos oferecer um panorama profundo e sutil e desafiador – intelectualmente e moralmente – de algo que faz parte do tema da discussão do #MeToo.18

A Linguagem de Anna Burns

A narradora e protagonista sem nome de Burns se expressa de uma forma bastante peculiar, como sua forma de nomear pessoas, grupos e lugares demonstra. Sua linguagem é labiríntica, por vezes repetitiva, marcada pela tentativa e questionamentos insolúveis que relembram o leitor de que quem lhe fala é apenas uma menina que, assediada por um homem mais velho e desamparada pela sociedade, procura se proteger voltando-se para dentro de si e mergulhando nos romances do século XIX que lê mesmo enquanto anda na rua, prática que leva a comunidade a classifica-la como uma dos beyond the pales – uma das pessoas “com um parafuso a menos” da região.

No entanto, embora peculiar, o leitor logo absorve e se habitua à forma como Burns formula a linguagem de sua personagem, jamais nomeando, se esquivando, buscando não se demorar demais em lugar ou pessoa alguma, mas ainda assim se perdendo em repetições. Suas sentenças são curtas, sucintas, mas seu raciocínio é labiríntico e, frequentemente sarcástico e perspicaz. A referência ao “chá da traição” é uma boa demonstração disso, sublinhando o aspecto ridículo de muitas das regras que norteavam a existência daquela comunidade e cujo descumprimento poderia resultar em perseguições, violência e até assassinatos.

O perigo subjacente aos mais insignificantes dos gestos está sempre presente na narrativa e, portanto, é impossível ao leitor perder a sensação da iminência de algo terrível que nunca se sabe de onde exatamente virá. No entanto, é na maestria com a qual ela aprimorou sua habilidade de quebrar expectativas que se revela o brilhantismo da escrita de Burns nesse romance. As coisas raramente são o que parecem, mas a ansiedade gerada pela consciência deste fato – formada ao longo do romance – não guia o leitor para lugar algum, gerando, em vez disso, uma ansiedade inescapável que só tem termo após o último ponto final.

Milkman – um dos livros mais desafiadores do ano – é tambem um dos mais recompensadores.19

Um romance feito de silêncios 

A voz da narradora se descola intencionalmente da violência que descreve apenas tangencialmente. Não há arroubos de emoção em relação às mortes – nem mesmo consternação. Seu deslocamento não é traduzido na expectativa de se mudar, como sua irmã mais velha fez, ou de se engajar ativamente com um dos lados do conflito. Em vez disso, ela parece encarar sua própria existência como uma contingência inevitável, suas raízes de alguma forma firmando-a de maneira mais ou menos inexorável ali.

Eventos e circunstâncias que poderiam ser acessados por outro autor por meio da violência, do suspense, ou da emoção, são comunicadas por Anna Burns através do fluxo de pensamentos de alguém que compartilha num tom resignado suas estratégias para sobreviver não às explosões ou à vigilância frequente, nem mesmo à perseguição que sofre por parte de Milkman, mas através do compartilhamento de um modo de vida profundamente interiorizado. A protagonista compartilha o seu silêncio como a principal estratégia que encontrou para sobreviver não à violência em si, mas à rotina diária em uma realidade social profundamente perturbadora.

Suas válvulas de escape e a linguagem que codifica suas linhas de pensamento são o que fazem dela, uma jovem de 18 anos sem nome, muito mais interessante ao leitor do que aqueles mais diretamente envolvidos nas tensões políticas de seu tempo. Em Milkman, eles são personagens cujas histórias e tramas ficam à margem. Na sua fuga para dentro de si, ela tem um ponto de vista privilegiado que combina uma alienação voluntária radical com subtons de escapismo.

Assédio e Consentimento

Embora o assédio sofrido pela protagonista por parte de Milkman seja o elemento central da narrativa, transformando o soldado paramilitar numa figura sombria cuja presença a protagonista evita de todas as formas possíveis sem, contudo, conseguir se desvencilhar de um homem controlador e ameaçador, a violência que ela sofre por parte dele desencadeia um processo de isolamento que lança luz sobre outras formas de agressão que ela sofre, aparentemente pelo simples fato de ser mulher. Tal processo é agravado pela sua recusa de se defender, de reconhecer ou aceitar as acusações, silenciando, desviando e mergulhando em livros (e sendo considerada louca por isso, como já vimos).

Desta forma, à medida em que a personagem se torna cada vez mais isolada, com o distanciamento e julgamento da comunidade, ela mergulha mais profundamente em sua leitura e, paralelamente, intensifica sua comunicação com o leitor, seu único confidente possível. Seu medo e suas preocupações, ainda que expressos de maneira não-usual, refletem as tentativas da jovem de se autocompreender. Em meio às ameaças de bombas, tiroteios, assassinatos aleatórios e violência contra animais domésticos (uma estratégia de terror psicológico) ela é, afinal, uma jovem profundamente só.

Dentre suas três irmãs mais velhas, a primeira é distante, a segunda se casou com um soldado unionista, emigrou para a Inglaterra e foi proibida pelos lealistas mesmo após tornar-se viúva20, e a terceira tinha uma personalidade, preocupações e interesses muito distintos dos seus, impedindo qualquer tipo de aproximação mais significativa. O pai dela já está morto quando o romance e a perseguição se iniciam e a mãe se recusa terminantemente a acreditar que ela não tem interesse ou relacionamento algum com o paramilitar casado, olhando para a filha com julgamento e desconfiança.

Uma amiga acredita nela, mas a responsabiliza pelo problema por se alienar intencionalmente do contexto político e social local.  A amiga explica que seu hábito de ler enquanto anda na rua evidencia sua excentricidade e chama a atenção num lugar onde atenção não é algo desejável. Ao seu ­maybe-boyfriend, ela não pode contar nada: Milkman ameaça matá-lo caso ela não termine o relacionamento.

Assim, a única forma como ela é capaz de se expressar se dá muitos anos mais tarde, quando a história é relembrada e narrada por ela. Assim, em um momento não explicitado no romance, a protagonista ousa olhar para trás e compartilhar suas memórias numa linguagem absolutamente sua. Ela deixa claro que não conseguia realmente entender a dimensão do que passou na época dos eventos narrados justamente pela falta de amparo e compreensão. Pouco a pouco, a tensão causada pelo assédio se intensifica, corroendo as poucas conexões da protagonista com o mundo exterior. Só o que resta é a sua conexão, ora com autores no passado, ora com seus leitores no presente.

Milkman foi um dos romances anglófonos mais interessantes publicados em 2018. A prosa de Burns é instigante e envolvente, e sua protagonista constrói um vínculo intenso com o leitor. A forma do romance nos desafia frequentemente e impede que a experiência de leitura torne-se monótona ao longo da narrativa. Por fim, Burns merece aplausos por trabalhar com maestria a projeção de aspectos e personagens particulares à realidade de Ardoyne na década de 1970 não apenas para outros espaços, mas também para a contemporaneidade.

A autora retrata, com riqueza de detalhes, o que o assédio, o abuso e a falta de amparo adequado podem fazer com o psicológico de uma jovem que não tem a quem pedir ajuda num contexto em que silenciamentos e omissões eram a norma. No entanto, os elementos que produziram esse vácuo num contexto violento podem se combinar com assombrosa facilidade em realidades diversas, como a onda de denúncias de assédio envolvendo figuras públicas (em maior ou menor escala) nos últimos anos sugerem. Como Kwame Anthony Appiah sugeriu, Milkman não apenas dialoga com a era do #MeToo, mas também pode nos ajudar a refletir sobre o nosso momento, adicionando uma nova camada ao debate.


Milkman de Anna Burns foi publicado em 2018 pela Faber & Faber e ainda não foi traduzido para o português ou lançado no Brasil.

Publicado por

Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

2 comentários em “Milkman de Anna Burns: um romance sem nomes17 min read

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