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Resenha: Beautiful World, Where Are You (2021) de Sally RooneyLeitura em 22 minutos

Foto de um Kindle paperwhite ligado mostrando a capa do romance "Beautiful World, Where Are You" sobre uma manta branca à direita e uma manta com listras brancas e pretas à direita.

Beautiful World, Where Are You: um breve comentário

Quem acompanha o meu trabalho na internet há algum tempo, sabe que a trajetória do Literatura Inglesa Brasil é marcada pela minha própria história como leitora de Sally Rooney. Quando li Normal People pela primeira vez, em agosto de 2018, queria muito compartilhar a experiência com alguém. Na época, costumava submeter minhas resenhas para periódicos acadêmicos, mas tinha plena consciência de que o formato impossibilitava o tipo de circulação e troca com outros leitores que eu estava procurando.

Quando o Prof. Davi Pinho institucionalizou o LIBra como um projeto de extensão na UERJ no início de 2019, comecei a trabalhar em conteúdo para o nosso lançamento em abril e um dos nossos primeiros textos publicados foi a resenha de Normal People. Junto com a resenha da adaptação do romance (BBC/Hulu), este segue como um dos textos mais acessados do blog até hoje. Normal People também foi a obra que inaugurou nosso clube do livro, que segue firme e forte com encontros mensais. Quando recebi um e-mail da Waterstones em 12 de janeiro de 2021 anunciando que um novo livro de Sally Rooney seria publicado em setembro, entrei ao vivo no Instagram imediatamente para conversar com quem estivesse on-line.

De certa forma, minha vida de leitora de Sally Rooney é parte da minha busca por uma comunidade de leitores da qual hoje tenho muita alegria de fazer parte. É também com muita felicidade que hoje compartilho com vocês a minha resenha de Beautiful World, Where Are You, uma obra que li de uma vez só, no dia da publicação. Passei a semana seguinte relendo e revisitando a obra enquanto escrevia minha submissão para o livro Escritos discentes em literaturas de língua inglesa e planejava esta resenha. 

A quem me acompanha por aqui, muito obrigada!

Todas as passagens do livro citadas ao longo da resenha foram retiradas da tradução de Débora Landsberg, publicada pela Companhia das Letras.

 

Resenha: Beautiful World, Where Are You (2021) de Sally Rooney

No dia 12 de janeiro de 2021, a Faber Books anunciou o lançamento do terceiro romance de Sally Rooney. Intitulado Beautiful World, Where Are You, com capa a ser revelada, a obra chegaria às livrarias em 7 de setembro de 2021. A editora disponibilizou um site dedicado a divulgar notícias relacionadas ao lançamento, criou uma newsletter e pediu que postagens realizadas sobre o livro nas redes sociais incluíssem a hashtag #BWWAY. Algum tempo depois, o design de capa por Manshen Lo foi anunciado. Com o passar dos meses, blogueiros e influenciadores começaram a receber cópias físicas e digitais da obra e um mercado paralelo se estabeleceu, com edições sendo vendidas por valores exorbitantes no eBay. Nada disso era inesperado, mas algumas escolhas da Faber Books e da editora estadunidense de Rooney, Farrar, Straus & Giroux, sim. A maneira como a campanha de marketing do livro foi administrada pode até parecer absurda, mas não surpreendente.

Ao longo dos oito meses que separam a data em que me inscrevi na newsletter e que retornei a https://beautifulworldwhereareyou.com, a comodificação de Sally Rooney e a transformação do lançamento do seu livro em um evento dissociado da obra consolidou um processo desencadeado em algum momento entre Rooney ser chamada de “a primeira grande escritora da geração millennial” e a estreia da adaptação de Normal People (2020) no BBC iPlayer. Tal como Alice e Eileen em sua discussão acerca do momento em que os seres humanos perderam seu instinto para a beleza, não é a localização cronológica exata que importa, mas o fenômeno mais amplo do capitalismo como motor das experiências humanas enquanto transações comerciais.

É o capital que define tanto a resposta de Eileen (1976, o ano em que plástico se tornou o material mais difundido) e a de Alice (1989, a queda do muro de Berlim). A grande questão do romance, comunicada por seu título, se desprende de uma angústia mais ampla em relação a um mundo em que subjetividades humanas se descobrem insensíveis à experiência estética. Ao me questionar por onde começaria essa resenha, percebi que o contexto de publicação era incontornável no sentido em que a própria narrativa ataca e é atacada pelo processo predominantemente transacional que trata o lançamento de Beautiful World, Where Are You como o evento literário do ano.

 

Quem é Alice Kelleher?

Alice Kelleher é uma romancista que, se percebendo consumida pela dinâmica do sucesso editorial, não acredita mais na escrita de romances. Quando a conhecemos, ela carrega suas realizações com ceticismo é tomada por um senso de desgosto quando Felix descobre que ela é famosa. A relação da dupla, que se conhece pelo Tinder e tem um primeiro encontro desastroso, é entrecortada por questões de classe e pela insegurança afetiva de Felix. No entanto, é precisamente o fato de ele ser provavelmente a pessoa mais distante do universo editorial de Dublin, Londres e Nova York que ela deixou para trás, que faz a relação funcionar. Por sua vez, Alice é, no geral, insensível aos impulsos de Felix para se autossabotar, reafirmando o vínculo ambíguo dos dois e seu próprio afeto mesmo quando ele se recusa a fazer o mesmo por ela. É em uma conversa sobre a “crise” (breakdown) de Alice que os dois encontram seu entrelugar.

Ele pergunta o que aconteceu, e Alice responde: “me senti totalmente fora de controle (…). Eu sentia muita raiva e frustração o tempo todo. Não tinha domínio de mim mesma, não conseguia viver normalmente. Não consigo explicar nada além disso”. Felix responde se abrindo sobre um processo de luto o qual, percebemos, ele ainda experiencia ao longo da narrativa:

“Me senti meio assim depois que a minha mãe morreu. Ano passado. Comecei a pensar qual a porra do sentido da vida, sabe? Não dá pra dizer que existe alguma coisa no fim dela. Não que eu quisesse mesmo morrer nem nada, mas na maior parte do tempo eu estava pouco me fodendo se estava vivo. Não sei se dá pra chamar de crise nervosa. Eu passei uns meses em que realmente não dava a mínima para as coisas – me levantar e ir trabalhar, e tal”.

Felix explica, ainda, que foi nesse período em que perdeu seu emprego, e por isso mais tarde foi trabalhar no depósito do qual é funcionário ao longo dos eventos da narrativa. A abertura emocional de Felix é essencial: assim como Alice, seu processo subjetivo atropela as estruturas rígidas de funcionamento do indivíduo no capitalismo. Ele não conseguia “se levantar e ir trabalhar”, e por isso foi demitido, independentemente de seu processo de luto. Alice, por sua vez, percebe o sucesso comercial (e mesmo crítico) da sua obra como um fardo a ser carregado, uma exposição indesejada e um desdobramento de um tempo em que “achava importante provar que era uma pessoa especial”.

A romancista se encontra em um entrelugar crucial para o funcionamento da narrativa. Após passar um período no hospital durante sua crise, ela deixa Dublin – supostamente de forma temporária – para viver em uma pequena cidade próxima a Ballina no condado de Mayo. É o afastamento de Alice da metrópole estabelece a estrutura de Beautiful World, Where Are You. Além de ser o ponto de conexão entre Simon e Eileen, que permanecem na capital, e Felix no interior, a ausência física de Alice determina a dinâmica e as tensões subjacentes ao que proponho como o relacionamento chave do romance: aquele que se desenrola entre a escritora e Eileen. Em uma obra em que raramente temos acesso ao monólogo interior dos personagens, as trocas de e-mail entre as duas mulheres funcionam tanto como breves interlúdios no desenvolvimento do enredo quanto como pontos de acesso às suas subjetividades. Neste sentido, as duas amigas são muito mais acessíveis ao leitor do que Felix e mesmo Simon.

Quem é Eileen Lydon?

Enquanto Alice estabelece uma nova rotina no condado de Mayo, o ritmo da vida de Eileen em Dublin sofre alguns reveses. Eventos como a aproximação do casamento de Lola, sua irmã mais velha, um encontro aleatório com seu ex-namorado, Aidan, e a possibilidade de uma relação séria com Simon são tensionados com a sensação da editora de que em algum momento do percurso suas expectativas foram atropeladas pelos ritmos da vida real. Essa vida é marcada por uma Dublin gentrificada e elitizada, pelo esvaziamento do debate mesmo entre aqueles que supostamente se alinham com as visões políticas de Eileen e com uma profunda insegurança em relação aos seus afetos.

Uma procura pela estabilidade emocional que lhe foi recusada em seus anos formativos leva a jovem a se apegar ao vínculo com Aidan e a sustentar considerações ora nostálgicas, ora pessimistas sobre o rompimento. Eileen sofreu bullying na escola por parte das amigas de Lola, que culpava a irmã por ser “estranha” e se tornar um alvo. Os pais poucos faziam para acolhê-la. Seu único refúgio aparece na figura de Simon Costigan, uma presença mais ou menos constante em sua vida desde a infância. Em um momento de crise em que Eileen – aos 15 anos – teme que sua família vá afastar os dois e deseja morrer porque ele era “a única pessoa com quem ela podia conversar”, Simon promete a ela “Vai ficar tudo bem (…) você e eu vamos ser amigos pelo resto da nossa vida”.

As procuras e desencontros de Alice, Eileen e Simon

O afeto entre Alice e Eileen é o organismo que de fato movimenta a narrativa. Quando Eileen avalia o relacionamento com Aidan com tom de nostalgia, Alice pondera que a própria editora havia pensado em terminar a relação diversas vezes, sugerindo que mais do que um parceiro com quem era feliz, o que ela tinha com Aidan era uma relação relativamente estável. Tal estabilidade frustra a própria Eileen quando ela olha para trás, revisitando a experiência como acomodação:

Para Eileen, aqueles anos também tinham passado, de um jeito ou de outro, sentada no assoalho desembrulhando móveis fáceis de montar, batendo boca, tomando vinho branco quente em copos de plástico. Vendo todos os amigos irem embora, seguirem em frente, mudarem-se para Nova York, Paris, enquanto ela ficava para trás, trabalhando no mesmo escritório apertado, travando as mesmas quatro discussões inúmeras vezes com o mesmo homem. Incapaz de lembrar de como achava que a vida seria. Não houvera uma época em que tinha algum sentido para ela, estar viva, estar vivendo? Mas qual?

É precisamente nos amigos que permanecem em trânsito – Alice, Simon – que Eileen encontra suas referências de felicidade. Os anos em questão também não foram satisfatórios para eles: Alice no auge do sucesso literário, mas a caminho de seu esgotamento emocional e Simon vivendo em Paris com uma namorada em um relacionamento estável e com um bom emprego, mas profundamente infeliz. A faixa dos vinte anos para esses personagens (embora Simon seja cinco anos mais velho) é, afinal, um período de frustração de expectativas antigas: Alice, que acredita ser importante se provar especial, se sente aprisionada pela própria exposição. Eileen, que após anos de rejeição, encontra popularidade e prestígio na universidade, tenta fixar e declarar sua própria felicidade após Aidan dizer que a ama: “Tudo na vida é de uma beleza incrível (…) Nem acredito que é possível ser tão feliz”, ela escreve em um tom curiosamente artificial para Alice. Sua busca por estabilidade é afoita e o relacionamento com Aidan se desgasta nessa pressa. O rompimento chega por iniciativa dele em um momento de vulnerabilidade para Eileen, quando Alice estava internada após sua crise nervosa.

Alice e Eileen: o relacionamento chave

É no afastamento físico entre Eileen e Alice que Beautiful World, Where Are You produz sua procura por um mundo belo. As trocas entre as duas amigas traduzem essa busca na afirmação de uma vivência que extrapole os padrões restritivos da experiência individual no contexto do capitalismo tardio. A primeira subversão que as duas efetivam é precisamente seu pensar-em-conjunto, uma negação do individualismo em prol de uma noção mais aberta de subjetividades que se reconhecem no outro. É pensando com Eileen que Alice articula seu desgosto pelo absurdo dos modos de produção e as demandas às quais eles atendem:

Fui à lojinha hoje comprar alguma coisa para almoçar, e de repente tive uma sensação estranhíssima – uma consciência espontânea da improbabilidade desta vida. Quer dizer, pensei em todo o resto da população humana – da qual a maioria vive no que voce e eu consideramos uma pobreza abjeta – que nunca viu ou entrou em uma loja dessas. E isso, isso, é o que o trabalho deles todos sustenta! Esse estilo de vida, para gente como nós! Todas essas diversas marcas de refrigerante em garrafas plásticas, e todas essas ofertas de almoço embalado, e doces em sacos lacrados, e docinhos assados na loja – é isso, o auge de todo o trabalho do mundo, de toda a queima de combustíveis fósseis e de toda a labuta extenuante nos cafezais e nas plantações de cana-de-açúcar. Tudo por isso! Essa lojinha de conveniência!

Alice prossegue, narrando como sentiu tontura ao pensar na exploração humana envolvida no processo necessário para disponibilizar “várias opções de almoço, todas embaladas em diversas camadas de plástico descartável”. A passagem é relevante não apenas porque introduz o tema da produção de plásticos no romance, uma questão que toma destaque no debate das duas amigas em torno da decadência da experiência estética, mas porque retorna nosso olhar para a campanha de marketing de Beautiful World, Where Are You.

Ao longo da narrativa, Alice declara que talvez nunca escreva outro romance, critica a estrutura do romance euroamericano e denuncia a insinceridade de colegas autores que escrevem romances sobre a “vida comum” que alegam experienciar, quando na realidade habitam em bolhas de privilégio. Ela responsabiliza a estrutura de funcionamento da indústria editorial pelo fato de agora não conseguir mais ler romances contemporâneos. Todas as interações que se dão nessa arena lhe parecem integrar um grande mercado, fazendo com que Alice enxergue somente seu vínculo com Eileen e Simon como genuínos.

Sally Rooney como produto: a comodificação de Beautiful World, Where Are You

 Tornar-se uma romancista de sucesso comercial e crítico corrói a relação de Kelleher com sua própria escrita, consciente como está do fato de que seus livros e ela própria foram transformados em mercadorias: “O que quer que eu saiba fazer, qualquer talento insignificante que eu possa ter, as pessoas esperam simplesmente que eu o venda – e falo literalmente, vender por dinheiro, até eu ter muito dinheiro e não me restar talento. E então é isso, estou acabada, e a próxima escritora vistosa de vinte e cinco anos com uma crise psicológica iminente aparece”.

Nas semanas que antecederam o lançamento de Beautiful World, Where Are You, a Farrar, Straus & Girous virou piada no Twitter ao produzir um press kit destinado a blogueiros e influenciadores contendo uma edição em capa dura do romance, quatro cartões postais, três lápis personalizados, um apontador, uma tote bag com ilustrações de Manshen Lo e, inexplicavelmente, um chapéu bucket amarelo com os dizeres “Beautiful World, Where Are You”. Uma discussão acalorada em torno da comodificação da obra antes mesmo de sua publicação não impediu ou mesmo desacelerou o processo. Quando a editora anunciou um sorteio da caixa contendo os itens em seus perfis no Instagram e no Twitter, não faltaram candidatos.

Do outro lado do Atlântico, o site oficial de BWWAY administrado pela Faber Books oferecia ingressos para oficinas de caligrafia (£42.27) e de fabricação de velas (£57.90). Esses eventos aconteceram na loja pop-up dedicada ao livro, situada em 17 Great Eastern Street no distrito de Shoreditch, em Londres. A loja, que funcionou ao longo de toda a semana que se seguiu à publicação do romance, também oferecia brindes exclusivos como cartões postais, bottons e tote bags personalizadas, cocktails de cortesia em horários específicos e café servido em copos de plástico descartáveis personalizados com as ilustrações de Manshen Lo para a capa do livro.

Rooney participou de apenas um evento de lançamento na Waterstones Piccadilly e de uma conversa com Emma Dabiri no Southbank Centre promovida pela London Review of Books. Edições autografadas do livro só puderam ser obtidas na pré-venda da Waterstones em janeiro, na forma de edições especiais vendidas exclusivamente em livrarias independentes no Reino Unido e na Irlanda e no evento de lançamento no dia 07 de setembro. Na falta de edições exclusivas, a loja pop-up estabelecida pela Faber vendia livros carimbados com as ilustrações de Manshen Lo.

“Se cruzei com alguém autêntico no caminho, ele estava tão bem disfarçado na multidão de ególatras sanguinários que não o reconheci.” – Alice Kelleher em Beautiful World, Where Are You

Se a participação de Sally Rooney na promoção de seu terceiro romance foi limitada, a narrativa conversa com a condução da campanha por parte de suas editoras de forma brilhante. Cada um dos esforços de divulgação do livro antes, durante e nos dias que se seguiram ao seu lançamento, dialogam com práticas que Alice e Eileen responsabilizam pela impossibilidade de o ser humano experienciar a beleza. Esse sufocamento está diretamente conectado às crises que as personagens enfrentam ao longo da narrativa.

A procura de Alice e de Eileen por um mundo belo

Em um e-mail em que descreve sua frustração por não ter “todas as respostas”, em que questiona: “o que eu já dei ao planeta para pedir tanto em troca?” e que conclui em sua própria insignificância: “eu poderia me desintegrar em um monte de poeira que o mundo não daria a mínima, e é assim que tem que ser”, Eileen apresenta uma teoria a Alice. “Os seres humanos perderam o instinto para a beleza em 1976, quando o plástico se tornou o material mais comum que existe”. A proposta da editora retoma a denúncia anterior de Alice do absurdo que define os esforços despendidos na produção de embalagens de plástico que – tal como os copos personalizados de Beautiful World, Where Are You – seriam descartadas após o uso, apenas para atender às demandas de uma loja de conveniência. Em resposta ao e-mail da amiga, Alice concorda com a premissa de que os seres humanos perderam o instinto para a beleza, mas discorda a respeito do marco temporal, o situando em 1989, na queda do Muro de Berlim. Ela conclui: “Não somos uns bebês azarados por termos nascido quando o mundo acabou? Depois disso, o planeta já não tinha mais chance, e não havia chance para nós”. De certo modo, Beautiful World, Where Are You é a narrativa de como essas duas mentes trabalham juntas para encontrar sentido – beleza – no mundo que ocupam juntas para além do pessimismo de que compartilham.

Simon e Felix são personagens cruciais para o desenvolvimento de Eileen e Alice. Eles fazem parte de um processo de ressignificação tanto das relações afetivas em que elas envolvem, quanto de características pessoais que elas precisam revisitar para se apropriarem da beleza do mundo em que habitam. Eileen tem de abdicar de sua zona de conforto tremendamente desconfortável para se abrir a um relacionamento com Simon. É se enxergando na alteridade de Felix e no contraste que ele oferece que Alice se permite ressignificar sua relação com o mercado editorial e retornar aos seus compromissos sem permitir que a indústria a consuma. No entanto, é no organismo vivo da troca entre as duas amigas que o romance consolida o seu projeto.

Em uma participação na coluna Books that Made Me do The Guardian em abril de 2020, Sally Rooney respondeu à categoria “livro pelo qual eu gostaria de ser lembrada” da seguinte maneira: “Acho que não me importo muito em ser lembrada. Eu nunca penso nisso. Mas, como qualquer pessoa, sempre quero que a próxima coisa que faça seja a melhor que já fiz”. Classificar e hierarquizar romances em termos de “melhor” ou “pior” é um exercício no mínimo subjetivo e em geral bastante problemático. No entanto, é seguro afirmar que Beautiful World, Where Are You é um esforço bem-sucedido. Rooney não cai na armadilha de ensaiar um retorno aos padrões de Conversations with Friends ou de Normal People, nem decepciona leitores acostumados à sua voz e estilo narrativo. O livro tem fôlego próprio em seu emaranhado afetivo cuja afirmação que sobressai, ao final de todos os conflitos é a da vida em si.

Alguns comentários no Twitter sublinharam o fato de os e-mails de Eileen e de Alice se estenderem em discussões políticas e em torno de eventos de impacto social, com estes elementos muitas vezes se sobrepondo tanto a trocas sobre questões pessoais quanto à familiaridade entre as duas. Entendo, no entanto, que é precisamente essa investigação intelectual e o foco em questões pessoais que não atravessam o relacionamento das duas, que possibilita a reconstrução da relação da dupla.

O não-dito ocasiona uma briga quando as duas enfim se encontram pessoalmente. Eileen se sente rejeitada pela ausência física de Alice, primeiro em sua mudança para Nova York, durante a qual cortou contato com a amiga, depois em seu retorno para Dublin, quando pediu para Simon que não contasse a Eileen que estava de volta. Mesmo com tantos abalos, Eileen se endividou para visitar Alice no hospital enquanto ela própria enfrentava uma crise pessoal. O gatilho final é a descoberta – por meio de Felix, não Alice – de que a mudança para o condado de Mayo provavelmente seria definitiva.

Em conflito tanto com Alice quanto com Simon, Eileen chora porque acredita que tendo se aberto ao conflito, não é amada por nenhum dos dois. É justamente a sinceridade de Eileen, no entanto, que permite que Alice experiencie sua própria crise pelo olhar de outra pessoa e compreenda o processo como não individual, mas compartilhado com as pessoas que a amam. As duas fazem as pazes e após se confrontarem com a impossibilidade de recuperar a experiência da juventude, quando moravam juntas ou ao menos perto, expõem uma intimidade que atravessa suas próprias noções de identidade:

Eileen passou o braço nos ombros de Alice. Se voce não fosse minha amiga, não sei quem eu seria, ela declarou. Alice pousou o rosto no braço de Eileen, fechando os olhos. Sim, ela concordou. Também não sei quem eu seria. E na verdade teve uma época em que eu não sabia. Eileen contemplou a cabecinha loura de Alice, aninhada na manga de seu robe. Eu também não, ela admitiu. Duas e meia da madrugada. Lá fora, o crepúsculo astronômico. A lua crescente próxima à água escura. A maré voltava como uma marola cíclica sobre a areai. Outro lugar, outra época.

É nesse espaço de trocas que Alice e Eileen encontram um mundo belo que podem habitar. No capítulo final, encontramos as personagens fisicamente afastadas novamente, vivenciando um lockdown durante a pandemia do COVID-19. Alice, no entanto, voltou a escrever. Vivendo com Felix e pensando com Eileen, ela descobre um método próprio de escrita que dialoga, mas não serve, às demandas do mercado. Eileen, por sua vez, está com Simon, e, após descobrir que está grávida, decide ter o bebê. A editora, que ao longo do romance já havia sinalizado diversas vezes seu desejo de ser mãe, pondera sua escolha em diálogo com a amiga: “Alice, será que essa é a pior ideia que já tive na vida?”. Ela pontua que o bebê provavelmente nasceria durante a pandemia, e o fato de que nem ela, nem Alice têm “convicção de que a civilização humana que conhecemos vai perdurar além da nossa existência”.

A análise que se segue, no entanto, revela que assim como o retorno de Alice ao seu exercício criativo pode ser lido como uma afirmação da vida – ela pontua que quando fica frustrada com sua falta de produtividade, se recorda que Feliz, Alice e Simon estão vivos e isso lhe deixa feliz – a escolha de Eileen também o é. A editora pondera que independentemente de sua escolha, “centenas de milhares de bebês” nasceriam no mesmo dia em que o seu bebê hipotético, e que lutar pelo futuro deles é tão importante quanto lutar pelo futuro de seu filho.

Com essa mentalidade, Eileen avalia que gostaria de ficar ao lado dessas crianças e de suas mães na busca de um futuro – de um mundo – melhor. Sua análise retorna, por fim, à sua relação com Alice: embora ambas tenham tido uma infância difícil, a editora declara: “Mas, Alice, ainda fico tão contente de termos nascido”. Na conclusão de Beautiful World, Where Are You, a investigação das duas mulheres em torno de onde podem encontrar um mundo belo que possam habitar revela que este não está disponível em um passado nostálgico pré-capitalista, mas nas pequenas ações e tomadas de posição que elas exercitam todos os dias, mesmo em meio ao caos. Eileen e Alice, pensando juntas, descobrem que seu poder de agência pode ser transformador. Ao assinar sua última carta, Eileen declara: “Tampouco é a vida que eu imaginava para mi mesma. Mas é a vida que eu tenho, a única. E, a o te escrever esta mensagem, estou muito feliz.”

Desta vez, nós acreditamos nela.

Publicado por

Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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