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Resenha: Queenie de Candice Carty-Williams (2019)Leitura em 8 minutos

A foto mostra uma pilha de livros QUEENIE de Candice Carty-Williams em uma das vitrines da livraria Waterstones Gower Street, em Londres.

Publicado na segunda semana de abril de 2019, Queenie, romance de estreia de Candice Carty-Williams rapidamente se tornou uma sensação literária. Resenhas positivas foram publicadas tanto pela crítica especializada (em veículos como o The Guardian e a Publishers Weekly) quanto por leitores no Goodreads e no Bookstagram. Carty-Williams foi elogiada tanto pela contemporaneidade das questões que seu romance de estreia aborda quanto pela sagacidade da sua protagonista e narradora.  

Quando seu relacionamento se desintegra após diversas agressões racistas veladas direcionadas a ela por parte da família do namorado, Queenie precisa reestruturar seu modo de vida. O último desses ataques, protagonizado pelo tio do companheiro, fez com que ela não mais aceitasse se calar. O choque da protagonista se dá não somente pela agressão em si, mas pelo fato de que Tom, seu namorado ao longo de três anos, não a defendeu. Muito pelo contrário: ele a critica por reagir de uma forma que ele classifica como exagerada e a culpa por estragar a comemoração do aniversário da mãe dele. Já na narração deste evento catalisador da separação, o leitor identifica o ruído presente na comunicação do casal.

Tom decide que a reação da namorada é a gota d’água após uma série de desentendimentos e pede que Queenie se mude do apartamento que eles dividem. Conforme a narrativa transcorre, fica claro que, de forma análoga aos vários homens com quem ela se envolve posteriormente, há, já neste relacionamento, uma desconexão elementar entre a forma como Tom percebe a aparência física de Queenie e a experiência de mundo e a identidade associadas ao corpo da namorada. Todas as interações com Tom surgem como uma espécie de concessão por parte dele. O namorado de Queenie parece imensamente orgulhoso de seu próprio esforço.

Darcy, uma das melhores amigas da protagonista, vem a sugerir que há uma desconexão também no lado de Queenie: o relacionamento simbolizaria um período e um espaço seguro, mas havia um vão entre a expectativa e a realidade em relação a Tom que jamais seria transposto.

O fato de Tom não procurar entender a identidade racial e social de Queenie e simultaneamente se queixar da forma como ela se recusa a se abrir é uma das formas interessantes como o romance  – narrado em primeira pessoa, do ponto de vista de Queenie – fala diretamente ao leitor. Nas entrelinhas não mediadas pela visão de mundo da protagonista-narradora, algumas faces diferentes da pessoa que ela romantiza se revelam em vislumbres breves.

Em um momento, Queenie deixa escapar que, durante a separação, Tom decidiu que ela deveria deixar o apartamento que o casal dividia porque ele era bem-sucedido em seu trabalho como programador e ela, como jornalista em início de carreira, tinha um salário insuficiente para manter aquele padrão de vida por conta própria.

O fim da relação se dá com o ambíguo acordo de “dar um tempo de três meses” que Queenie interpreta de uma forma e Tom de outra. No entanto, resta a dúvida se essa diferença de interpretação não teria sido ocasionada por uma simples mudança de postura por parte de Tom. Seria fácil ressignificar o acordo com base no novo rótulo que impôs a Queenie durante e após o rompimento: o de uma pessoa instável e pouco razoável.

Com a separação, o estilo de vida de Queenie muda radicalmente. Subitamente, ella precisa de um novo lugar para morar em uma das cidades mais caras do mundo. Além disso, sua situação no jornal em que trabalha atinge um ponto crítico enquanto Queenie tenta processar tanto um coração partido recente quanto traumas de infância duradouros. Por fim, a protagonista sente com urgência a necessidade de encontrar sua voz para denunciar o racismo estrutural em suas mais diversas formas e manifestações (algo que Carty-Williams faz com maestria em sua obra, por sinal), além de divulgar o movimento Black Lives Matter no Reino Unido.

Neste momento de crise em que o romance se desenvolve, Queenie cria um grupo de mensagens incluindo Darcy, Cassandra, sua amiga dos tempos de faculdade, e Kyazike. Como a única melhor amiga negra de Queenie, há algumas dimensões dos problemas que a protagonista compartilha com o grupo que somente Kyazike consegue compreender. Assim, Carty-Williams ilustra instâncias de sororidade e de sororidade negra de uma forma acessível para o leitor. O grupo em questão se chama The Corgis em referência à raça dos cães de estimação da Rainha Elizabeth, numa brincadeira entre o nome da protagonista, Queenie, e a palavra “Rainha” em inglês, Queen.

O humor subjacente à maior parte do enredo dá algumas rasteiras no leitor. Momentos em que o riso se choca rapidamente com uma ocorrência ou comentário sério são frequentes e Carty-Williams administra essas curvas no tom com elegância e competência.

Toda leitora deste romance certamente se identificará com o questionamento de Queenie sobre o que significa ser uma mulher adulta no mundo em que vivemos após ser assediada enquanto procurava um imóvel para alugar:

Eu trabalhei pelo resto do dia com um intervalo bem curto para visitar apartamentos. Eu pedi que corretoras mulheres me acompanhassem dessa vez e dei um jeito de levar a Kyazike comigo. Então é assim que você se torna uma mulher adulta? Tendo que prever – e providenciar de forma adequada um jeito de se esquivar de – assédio sexual?1

O romance é pontuado por momentos de imersão que se baseiam na escuta de experiências pessoais e localizadas que, mesmo com suas particularidades, ressoam com um alcance mais amplo. Um bom exemplo é a forma como Queenie discorre sobre a gentrificação de Brixton (tradicional bairro jamaicano de Londres) e a substituição de uma padaria jamaicana visitada por sua avó por uma hamburgueria frequentada por hipsters brancos de classe média alta.

Queenie é, de certa forma, alterizada no seu próprio espaço. Há um episódio em que ela e a brilhante Kyazike (pronunciado chess-keh) vão a uma boate neste distrito de South London e elas únicas pessoas negras no local. Quando uma garota branca toca no cabelo de Queenie sem autorização e é prontamente criticada por Kyazike, o segurança da casa praticamente expulsa as duas amigas, com pouco ou nenhum interesse pelo que precipitou a discussão.

O arco do romance em que a estrutura básica da vida de Queenie desmorona e precisa ser reconstruída do zero destaca de outras obras do gênero (e evidencia a inadequação das comparações do romance com Bridget Jones’s Diary) e ressalta a habilidade de Candice Carty-Williams já em sua primeira publicação. A relação de Queenie com os avós (especialmente com a avó), o conflito entre a geração Windrush e seus descendentes e, particularmente, a cena em que a a avó de Queenie lava as costas da neta enquanto conta sobre suas histórias de coração partido na Jamaica, atuam como um retrato impressionante e profundamente humano de um relacionamento que se transforma diante dos olhos do leitor. A crise de Queenie leva seus avós a repensarem os tabus que tinham sobre distúrbios mentais, por exemplo.

Outro destaque da obra é a relação de Queenie com sua sobrinha Diana e a percepção da protagonista, às vésperas de seu aniversário de 26 anos, que ela está em algum lugar entre ser propriamente jovem, como a sobrinha, e realmente madura, como gostaria de ser. Por fim, é muito bem-executado o desenvolvimento da reparação da relação de Queenie com a mãe, após uma infância e adolescência maculadas pelo trauma causado por um padrasto e marido abusivo com as duas.

Durante a crise, e antes de ir morar com seus avós, Queenie tem uma série de encontros casuais com homens que a objetificam (alguns beirando a violência sexual). Após sua recuperação, em uma tentativa de voltar a conhecer pessoas, ela sai com um homem que se revela, provavelmente, o pior deles. O encontro lamentável revela muito ao leitor sobre o desenvolvimento de Queenie, no entanto. Por pior que sejam as circunstâncias, Queenie agora tem as ferramentas necessárias para se defender. Ela não apenas o rejeita após perceber com quem estava lidando, mas também enfrenta as ideias racistas do homem a quem ela viria a se referir pelo epíteto “o neonazista” com firmeza e propriedade.

O desfecho desse romance bem-estruturado celebra os elos de Queenie com suas raízes jamaicanas, seus laços com sua família e a rede de suporte que as mulheres mais importantes da sua vida lhe proporcionam. Queenie sai coroada rainha de si, uma pessoa capaz de romper com o ciclo de violência que havia aprendido a naturalizar.  Esta é uma obra que reflete o nosso momento trazendo doses equilibradas e certeiras do particular e do universal para proporcionar uma grande experiência de leitura para qualquer tipo de pessoa, onde quer que esteja no mundo e em qualquer momento de sua vida. Aguardaremos ansiosamente pelos próximos passos literários de Candice Carty-Williams!

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Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

2 comentários em “Resenha: Queenie de Candice Carty-Williams (2019)Leitura em 8 minutos

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