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The Flatshare de Beth O’Leary: uma carta de amor ao otimismo7 min read

Em seu romance de estreia, Beth O’Leary propõe um desafio a seus leitores: e se, em meio a todas as dificuldades, as coisas derem certo? Você ousaria esperar o melhor? Em The Flatshare (Quercus Books, 2019), os protagonistas aprendem que de crises e momentos de ruptura algo efetivamente bom pode surgir. O romance é uma carta de amor ao otimismo.

Embora o rótulo de “a nova Jojo Moyes” conferido à autora pela Cosmopolitan soe batido e quase um pouco indelicado – a “velha” Jojo Moyes publica seu novo romance, The Giver of Stars, em outubro, afinal de contas – não é absurdo afirmar que leitores da autora de Como eu era antes de você provavelmente apreciarão o estilo narrativo de O’Leary.

Tiffanny Moore – ou Tiffy, como seus amigos a chamam – tem algo de Louisa Clarke. Um senso de moda peculiar, uma atitude positiva quase inabalável diante das dificuldades e uma paixão considerável por customização aproximam as protagonistas de Moyes e O’Leary. Em uma passagem de The Flatshare, Tiffy alude ao bestseller internacional, sinalizando que O’Leary é leitora da autora a quem é agora comparada:

“Thanks so much for your letter. It made me cry, which puts you in the same category as Me Before You, my ex-boyfriend, and onions.” (p. 118)1

Ainda assim, para além das comparações e analogias, O’Leary merece destaque por seus próprios méritos.

The Flatshare

Tiffy Moore acaba de sair de um relacionamento complicado e, com seu ex-namorado a pressionando para que ela se mude do apartamento que dividiam, se vê forçada a contemplar os desanimadores prospectos imobiliários para uma editora assistente em Londres. Tiffy trabalha para a Butterfingers Press, uma editora especializada em publicações de artesanato e DIY, que paga a ela menos do que o living wage.

Quando Tiffy confronta as alternativas desanimadoras que se encaixam na sua faixa de preço, uma oportunidade quase ideal aparece. Um anúncio oferece o aluguel de um apartamento em Stockwell por inacreditáveis 350 libras. Contudo, há um problema. Embora ela e o futuro colega tenham horários de trabalho diferentes, o que significaria que os dois jamais estariam no apartamento ao mesmo tempo, eles teriam que dividir não apenas as áreas comuns da residência, mas também o único quarto e a cama.

O autor do anúncio é o enfermeiro Leon Twomey. Ele trabalha em uma clínica de cuidados paliativos durante o turno da noite e fica em casa exclusivamente das 9h às 18h. Logo, Tiffy teria o apartamento somente para si durante às noites e fins de semana, os quais Leon pretende passar na casa da namorada, Kay. Ele precisa do dinheiro extra para seguir cobrindo os honorários do advogado de seu irmão, Richie, condenado injustamente por assalto à mão armada.

Com a intermediação de Kay, que não quer que Leon e Tiffy se conheçam pessoalmente, a sublocação é acordada e Moore assina um contrato de seis meses. Embora não se encontrem pessoalmente, Leon e Tiffey estabelecem um relacionamento epistolar por meio de post-its colados por todo o apartamento. Logo, o lacônico e reservado enfermeiro se vê compartilhando informações pessoais e observações sobre o seu dia no trabalho, estimulado pela natureza alegre e cativante de Tiffy.

Aos poucos, os universos dos dois começam a se alinhar e os laços se estreitam. Enquanto isso, Leon precisa lidar com o desinteresse do advogado de Richie pelo caso do irmão e Tiffy, com os traumas deixados pela relação com seu ex-namorado abusivo. As estranhas e repentinas – supostas meras coincidências – aparições de Justin onde quer que ela esteja se tornam gradativamente mais preocupantes e perturbadoras. Conforme a distância se consolida, Tiffany percebe o quanto aquele vínculo a machucou e distorceu sua visão da realidade e de si mesma. Algumas das melhores passagens do livro são aquelas em que a rede de apoio da protagonista – seus amigos Gerty, Moo e Rachel – procura acompanhar e auxiliar Tiffy na reavaliação de um relacionamento psicologicamente abusivo e na reconstrução da sua independência.

O humor e a perspicácia de O’Leary também são um ponto alto do romance. No trabalho, Rachel está editando um livro de DIY intitulado Crochet Your Way. Katherin, a autora, se torna uma celebridade da noite para o dia quando uma influencer chamada Tasha Chai-Latte retuíta umas das criações da mestre do crochê.

Em uma cena que se passa no hospital em que Leon trabalha, Katherin oferece uma oficina de crochê aos pacientes. Lá, um dos personagens mais desagradáveis do romance, Martin, pede para Tiffy tirar uma foto com Holly (uma menina de 8 anos que é uma das pacientes mais queridas de Leon) para explorar ao máximo a atenção que a imagem da “criança doente” pode angariar para a editora na internet. Perspicaz, a garota se impõe e coloca o relações públicas da Butterfingers Press em seu devido lugar. O comentário subjacente à cena, que sinaliza aspectos tóxicos da cultura das redes sociais e da publicidade online, é inteligente e sagaz sem soar panfletário.

O enredo principal, que acompanha o desenvolvimento do relacionamento entre Tiffy e Leon, é envolvente e bem-construído. A autora é bem-sucedida em seu intento de elevar as expectativas do leitor quanto ao primeiro encontro dos dois, que repetidamente é postergado, seja pela timidez de Leon, seja por conta das circunstâncias. O efeito negativo de estabelecer o primeiro encontro como o evento mais esperado do romance, no entanto, é o inevitável anticlímax que se segue após os estágios iniciais do relacionamento entre os colegas de quarto.

Ainda assim, é difícil não se envolver com a narração em primeira pessoa que intercala capítulos na voz de Tiffy e de Leon. Nesse sentido, O’Leary foi habilidosa ao estabelecer duas vozes marcadamente distintas entre si que permanecem consistentes ao longo do livro.

Também merece destaque a relação que Tiffy desenvolve com Richie, o irmão de Leon. De certa forma, é a amizade que ela desenvolve com o irmão que faz com que o enfermeiro baixe a guarda o suficiente para se afeiçoar a ela. O’Leary constrói bem as trocas entre Tiffay e Richie, de forma que a relação não parece forçada e o vínculo e o interesse dela em provar a inocência do irmão de Leon soem genuínos.

The Flatshare é, inegavelmente, um romance bastante previsível em seu enredo principal. No entanto, é nas sutilezas e na construção dos personagens que O’Leary faz sua obra valer a pena, fidelizando o leitor. É bonita e bem-elaborada a maneira como Tiffy lida com o trauma deixado pelo relacionamento com Justin. Fica claro que não há solução mágica ou instantânea para apagar as marcas deixadas pelo abuso.

De forma subjacente, a autora apresenta uma crítica pungente ao quão fácil é uma pessoa ser condenada injustamente quando lhe faltam os recursos necessários ou o interesse do sistema em, de fato, elucidar os fatos. As relações de amizade também são um deleite para o leitor, com destaque para as pequenas idiossincrasias da transição do relacionamento entre Gertie e Mo de amigos para um casal, assim como a forma em que Tiffy precisa redescobrir seu lugar na dinâmica do trio.

No fim das contas, Beth O’Leary pede aos seus personagens – e ao leitor – um pouco mais de otimismo como antídoto para dificuldades e desafios, grandes e pequenos. Em meio às avalanches de notícias ruins que chegam a nós todos os dias de forma ininterrupta, é um sopro de ar fresco a proposta de The Flatshare de que, às vezes, coisas boas simplesmente acontecem.

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Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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