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“Somos todos Tartuffe”: John Donnelly adapta a comédia de Molière10 min read

Programa e texto da peça Molière, the Imposter, uma adaptação da comédia de Molière por John Donnelly.

Tartuffe (the Imposter)
Lyttelton stage, National Theatre, 30 de abril de 2019
De Molière, em versão de John Donnelly
Direção: Blanche McIntyre

Nesta releitura, John Donnelly adapta o subtexto da comédia de Molière para abrir canais de comunicação com o público para discutir questões contemporâneas. O ritmo imposto ao desfecho, assim como a performance precisa de Denis O’Hare desestabilizam a sensação de ordem restabelecida ao final da peça.


Em sua resenha de Tartuffe, o crítico teatral (e biógrafo de Harold Pinter) Michael Billington sublinhou que Donnelly “adaptou a peça para a atualidade a fim de sugerir que pagaremos um preço pelas desigualdades grotescas presentes na nossa sociedade”. De fato, a sátira à hipocrisia religiosa da obra de Molière dá espaço para a crítica social nesta montagem.

Em nova versão situada em 2019, Tartufe, The Imposter se passa na mansão de Orgon em Highgate, afluente bairro de Londres. A configuração original dos papeis se mantém, mas pequenos toques os transportam para a Londres contemporânea de forma perspicaz. A Mariane de Kitty Archer é consumista, aparentemente superficial – e consciente da própria superficialidade. Após um dos enfrentamentos em que ela se sai surpreendentemente bem na tarefa de deixar claro para o pai que não aceitará se casar com Tartuffe, a jovem aleatoriamente ameaça deixar a casa de Orgon para se juntar aos Médecins Sans Frontières.

Valere é um poeta que – numa visão de mundo condicionada por suas próprias limitações, transparece ao espectador – acredita que compor versos rimados é um construto burguês e capitalista. Hari Dhillon merece destaque por sua rendição de Cleante, aqui um advogado com sotaque nova-iorquino que tenta puxar Orgon de volta aos limites do razoável, enquanto ele próprio se questiona quanto à natureza da atração exercida por Tartuffe. A Pernelle de Susan Engel é irretocável, evocando e recriando a personagem clássica que se encanta por Tartuffe no palco do National Theatre.

Denis O’Hare dá vida ao personagem-título, incorporando com habilidade as idiossincrasias do Tartuffe do século XXI. Ele surge como uma espécie de guru cuja orientação religiosa ou filosófica jamais fica realmente clara, uma miscelânea de mantras, provérbios, ioga e meditação. Sua figura evoca de leve o guru de Como Ser Legal de Nick Hornby. Orgon se apega ao “amigo” de forma obsessiva, numa relação com subtons homoeróticos.

Retomando a resenha de Billington, o crítico observou de forma certeira que, nas mãos de Donnelly, a comédia “se torna um estudo sobre culpa burguesa” por meio da questão, sempre latente, da possibilidade de Tartuffe ser uma espécie de “xamã urbano genuíno”. Como o próprio personagem sublinha, ele jamais afirma ser aquilo que não é e a entrega de Orgon acontece de forma quase gratuita.

Embora o assédio de Tartuffe a Elmire (Olivia Williams) exerça a mesma função daquela proposta na comédia de Molière, isto é, a instância final que lançará por terra a máscara do “Impostor”, a acusação que ele faz à esposa de Orgon – a de que os amigos que a visitavam em casa não passavam de uma série de amantes – é confirmada por ela própria. Assim, a plateia vê suas própria lealdade oscilar ao longo da peça. O título de impostor não é facilmente imposto a Tartuffe simplesmente porque, por mais repulsiva que sua figura possa parecer, seu carisma é reforçado pela consistência de tudo o que ele diz. É por iniciativa própria que Orgon decide transferir seus bens ao amigo e é dele a ideia de casar o protagonista com Mariane. É Orgon que aliena sua família e ignora os conselhos de Cleante.

Se o eixo central da peça é, como observou Billington, a “fome de Orgon pela expiação dos pecados dele e de sua classe”, ao longo da peça descobrimos que o milionário de North London envolveu seus negócios em esquemas ilegais. Embora não fique claro qual é a natureza das contravenções, o patriarca é assombrado por suas más ações e procura expurga-las através de sua relação com Tartuffe. A fim de preservar seus bens de uma possível – ou provável – penhora, Orgon transfere tudo que possui para o protagonista. Porque ele confia mais no guru do que em sua própria família é uma das questões levantadas pelos outros personagens quando, de forma previsível a todos menos Orgon, Tartuffe decide expulsar a família da mansão e reivindica-la para si próprio.

É no clímax da peça que o comentário social de Donnelly transparece de forma mais vibrante. Valere chega à mansão e avisa que um mandado de prisão foi expedido para Orgon, que é acusado de traição: “Você será preso como um criminoso comum, seu nome será arruinado, você jamais terá como desafiar Tartuffe no tribunal”, ele diz. Valere oferece dinheiro para ajudar o futuro sogro a escapar, revelando-se, ele próprio, um membro da burguesia que dizia rejeitar. Sua condição surpreende à própria Mariane, que pensava que ele era um poeta pobre, motivo da rejeição do pai ao pretendente. Antes de aceitar a oferta, contudo, Orgon conclui: “É isso! Minha prestação de contas!”, numa exclamação que soa quase como uma expressão de alívio.

Em meio às celebrações da reconciliação de Mariane e Valere, Tartuffe chega com policiais para levar Orgon embora e, acusado pela família, se defende reiterando que ele é o único homem honesto ali presente, que nunca mentiu e que somente reivindica o que agora é seu pela lei. No denouement, o farsesco toma conta do palco e o policial anuncia que, na realidade, prenderá Tartuffe e não Orgon. Tartuffe quebra a quarta parede como fizera no início da peça para pedir socorro à plateia, seus amigos, mas é lembrado por Elmire que trata-se tão somente da plateia, e que nada pode ser feito para salvá-lo.

Cleante questiona o desfecho dos eventos e policial anuncia que o ocorrido chegou aos ouvidos da Primeira Ministra e que, grata à “lealdade” de Orgon, ela fez vista grossa aos esquemas ilegais do patriarca com muita boa vontade. Os protestos de Cleante em relação à legalidade da ação reiteram para a plateia que não se pode enxergar como real restabelecimento da ordem o desenlace final da peça; se o homem colhe o que plantou, a regra certamente também valeria para Orgon. Enquanto o policial responde ao advogado com um lacônico “mais ou menos”, Tartuffe é trazido de volta ao palco gravemente ferido, uma sombra da figura que conhecemos na primeira cena da peça distribuindo flores à plateia. Cuspindo sangue e dentes quebrados, Tartuffe lê uma confissão escrita para ele onde tanto reconhece seus malfeitos quanto pede perdão por eles: “And for the safety and protection of this great nation, / We must never get ideas above our station.”1.

O grande crime de Tartuffe é uma sede de ascensão social que é indesejável mesmo hoje, na era do capitalismo meritocrático. Um homem como ele deve saber qual é o seu lugar mesmo quando um milionário consumido pela culpa voluntariamente lhe oferece tudo que tem. Não há mobilidade possível, nem para cima, nem para baixo. Após as celebrações – convenientemente rimadas – da suposta restauração da ordem e da reunião de Valere e Mariane, a plateia quase escapa ilesa antes que um golpe final desestabilize qualquer noção de final feliz para Tartuffe.

 
Cleante
Let us dwell on the universal law –2

Orgon
One rule for the one per cent – 3

Tartuffe
And another for the poor. 4

 

Se a peça original termina com a prisão de Tartuffe, Donnelly alonga a ação para sublinhar a “lei universal” da desigualdade: uma regra para o 1% no topo e outra regra para os pobres. Além disso, a obra de Molière conclui-se com o anúncio de Orgon de que Valere e Mariane poderão se casar: a última palavra é do patriarca. Em Donnelly, é Tartuffe o último a falar, e é à plateia que ele se dirige, uma última vez. Ignorando a noção de que a plateia não teria poder de agência, Tartuffe faz um apelo final que reverberará em seus ouvidos muito após chegarem em suas casas:

Tartuffe
But if you will – just before you shuffle from your seats,
Through the foyer, out into the cold and empty streets
Of London – city of riches, poverty, and all other extremes –
Turn your mind to those less fortunate, those like me. 5

Considerando-se que Londres é uma metrópole profundamente desigual, com uma imensa população de rua, com diversos bairros já gentrificados e outros em pleno processo de gentrificação, o recado do protagonista não poderia soar mais contemporâneo: quantos daqueles ali presentes não passariam pela miséria sem pensar duas vezes no caminho de volta para casa? No entanto, o discurso de Tartuffe, entregue com maestria por O’Hare, não acaba ali. Mais do que pedir compaixão, o protagonista deixa claro que a aparente restauração da ordem não significava um ponto final:

Tartuffe
And later still, in the warmth of your beds, consider this
Strange and troubling thought, one not so easily dismissed
That you know, in the unsettled silence, to be the truth – 6

A reckoning comes. Expect us. For we are all Tartuffe. 7

Desafiando a “lei universal”, as palavras de Tartuffe e a sua ameaça inquietante prolongam a peça para além do palco. Suas palavras assombram: o outsider não é tão facilmente apagado. Com essa nota ominosa e profundamente séria, entregue com Tartuffe ainda ferido e cambaleante, a adaptação de John Donnelly eleva-se a uma obra de arte para o nosso tempo: a violência da normalização do absurdo é uma realidade plenamente tangível.

Se não pelo carisma ou pelas flores, o protagonista acaba por nos persuadir pelo saber que compartilhamos sobre os muitos séculos de impunidade para o “um por cento”. Neste momento final, estamos mais perto dele do que jamais poderíamos estar de Orgon: Somos todos Tartuffe.

Referência das citações:

DONNELLY, John; MOLIÈRE. Tartuffe (the Imposter). London: Faber & Faber, 2019.

Publicado por

Marcela Santos Brigida
Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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