A sinopse de People Person no site da Waterstones começa com a frase: “se você pudesse escolher sua família… você não escolheria os Pennington”. No entanto, isso é exatamente o que os cinco protagonistas do segundo romance de Candice Carty-Williams fazem. Muito aguardado após a estreia da autora com Queenie, obra aclamada por crítica e público e abordada no clube do livro do Literatura Inglesa Brasil, People Person reafirma Carty-Williams como um dos grandes nomes da literatura britânica contemporânea.
People Person começa com Cyril Pennington, um homem jamaicano radicado em Brixton, Londres, que é pai de cinco filhos com quatro mulheres diferentes. Pai cronicamente ausente e um companheiro inconstante, Cyril decide reunir os filhos para apresentá-los em um momento em que a maioria deles está na adolescência. Ele declara que o objetivo da empreitada é evitar que eles se conheçam por acaso – todos vivem relativamente perto uns dos outros – e se envolvam romântica ou sexualmente. O encontro, conduzido com pouca ou nenhuma sensibilidade por Pennington, é embora insatisfatório em muitos sentidos, um marco na vida dos filhos. Entre as apresentações apressadas no jipe dourado que é o orgulho do pai e um sorvete no parque pago pela irmã mais velha, Nikisha (19), Prynce (9), Danny (17), Dimple (13) e Elizabeth (Lizzie para os íntimos, 13) têm pouco tempo para conversar.
“Um carro tão grande e não há espaço suficiente para todos os seus filhos?” Nikisha perguntou a Cyril.
“Parece que sim!” Cyril respondeu alegremente, a acidez da pergunta não captada por ele.
People Person – Candice Carty-Williams
Nikisha e Prynce são filhos de Bernice, uma mulher jamaicana com uma “língua que poderia te destruir”. A mãe de Danny é Tracy, “uma mulher branca de cabelo loiro escuro simpática e acolhedora, que morava no prédio perto da garagem de ônibus onde Cyril trabalhava”. Dimple é filha de Janet, uma mulher indiana-jamaicana “para quem ele tinha prometido o mundo e, adequadamente, havia a abandonado com uma criança”. A mãe de Elizabeth, Kemi, é uma “mulher iorubá orgulhosa e firme que estava comprometida com um relacionamento pleno e próspero com o homem que seria o pai de sua filha” e que o ignorou solenemente quando percebeu a falta de seriedade de Cyril. Dimple e Elizabeth foram concebidas em um intervalo de 15 dias.
Dezesseis anos mais tarde e um capítulo depois, encontramos Dimple aos 30 anos ainda tentando descobrir quem é. Ela é uma aspirante a influenciadora: tem poucos seguidores, mas grava vídeos e se comunica com eles constantemente. Neste momento, Dimple é apresentada ao leitor entre dois dos seus relacionamentos mais disfuncionais: aquele que ela nutre com a internet e o que administra com seu agora ex-namorado, Kyron. Após Pennington publicar um vídeo falando sobre o término de seu relacionamento no Instagram, o próprio Kyron aparece na casa dela irritado e inconformado não apenas com o rompimento, mas com o que os amigos vão pensar dele por causa do vídeo.
Obcecado pela ideia de que Dimple estaria escondendo outro relacionamento dele, Kyron primeiro é agressivo com um entregador de pizza que ele confunde com um interesse amoroso da ex-namorada e logo começa a agredir a própria Dimple. A cena é angustiante, mas Dimple consegue se defender. Kyron, no entanto, escorrega no chão sujo de óleo que a ex-namorada havia esquecido de limpar e bate a cabeça, caindo desacordado. Ao vê-lo imóvel e ensanguentado, Dimple presume que Kyron está morto, o que tenta confirmar ao tomar seu pulso. Com medo de chamar a polícia e ser incriminada – o rosto de Kyron estava arranhado – a criadora digital recorre à irmã mais velha. A ligação é apresentada como uma espécie de epígrafe no romance, precedendo o primeiro capítulo. Dimple é surpreendida quando abre a porta para não apenas Nikisha, mas também Danny, Lizzie e Prynce. Os irmãos agora enfrentam a perspectiva de, literalmente, enterrar um corpo juntos.
People Person poderia enveredar pelo caminho do thriller e, de fato, Carty-Williams flerta com convenções do gênero. No entanto, o incidente com Kyron se impõe como um dispositivo para a autora explorar e destrinchar os grandes temas de seu romance: os legados do trauma (como apontou Sharlene Teo), a reconstrução de vínculos familiares, violência contra a mulher e as formas – escancaradas e sutis – como racistas dispensam suas agressões, da polícia à vizinha que interroga Dimple sobre qualquer homem negro que veja nos arredores da casa de Kemi, passando por enfermeiras que afirmam que Kyron se parece com Denzel Washington e Idris Elba (ele não se parecia com nenhum deles, a narradora nos confidencia).
Embora os cinco irmãos protagonizem o romance, é Dimple que acompanhamos mais de perto. Ela mora com a mãe, com quem tem um relacionamento de codependência que é abalado quando Kemi percebe a reaproximação entre a filha e os (meio-, como ela insiste em ressaltar) irmãos. Carty-Williams constrói com sensibilidade as interações entre mãe e filha, que comunicam ao leitor o crescimento – ainda que tardio – de uma mulher que além de viver um momento de crise após o incidente com Kyron está em procura de seu próprio caminho.
Dimple é extremamente sensível. Seus momentos emotivos são recebidos pelos irmãos com graus variáveis de acolhimento, estranhamento e exasperação. É particularmente bonita a dinâmica de Nikisha com a irmã influenciadora. Como descobrimos ao longo do livro, a filha mais velha de Cyril aprendeu muito cedo a ser independente e, mais tarde, a cuidar de Prynce. Bernice tem algo em comum com Cyril, logo fica claro: ambos são pais ausentes. Nikisha, assim, desenvolve algo de maternal em suas interações com os irmãos. Por ser a mais velha, ela justifica, é seu dever administrar as situações. Embora ela adote uma abordagem prática e sem rodeios para basicamente tudo – da criação dos próprios filhos até a situação com Kyron – e tenha pouco da emotividade de Dimple, Nikisha oferece amor incondicional a todos os irmãos e está presente sempre que qualquer um deles precisa dela.
Com Cyril, ela é firme, não se deixando levar por argumentos manipulativos que derrubam Dimple. No entanto, Nikisha encara os laços familiares que conectam todos eles como inquebráveis. Quando a mãe de Cyril, Dolores, falece, Nikisha se apresenta para fazer a elegia da avó por ser a neta mais velha. Na proximidade com a irmã, Dimple parece aprender muito sobre si mesma e o leitor acompanha seu crescimento.
É inegável, no entanto, a centralidade da conexão entre Dimple e Lizzie. A primeira se sente rejeitada pela irmã que só é algumas semanas mais jovem porque ela própria nasceu prematura. Lizzie é a filha de Cyril que mais resiste ao vínculo com os irmãos. Alguns questionam a postura da médica em formação: ela se acha melhor do que eles, Danny, que é encanador, sugere. Ela é particularmente grosseira com Dimple, desdenhando do seu jeito de ser e a acusando de não assumir responsabilidade por suas ações. Enquanto os outros irmãos não culpam Dimple ou Nikisha (que foi quem efetivamente os chamou para lidar com Kyron), Lizzie deixa perfeitamente claro que não gostaria de ter sido levada a participar da trama envolvendo o ex-namorado da irmã.
Nas interações dela com os irmãos e, principalmente, com Dimple, descobrimos, no entanto, que a seriedade (e momentos de agressividade) de Lizzie é uma manifestação de um mecanismo de defesa. Em uma cena situada em sua casa, Lizzie é instada por sua esposa, Patrice, a deixar de lado seu desconforto com um elogio dispensado por Cyril a Dimple – mas não a ela própria – na festa de aniversário de Prynce. Pennington frequentemente é culpado de distribuir de forma desigual suas escassas manifestações de afeto: Prynce é abraçado, Danny não. Alguns receberam mais visitas do que outros ao longo da infância e da adolescência (embora nenhum tenha recebido pensão alimentícia). As falhas do pai prejudicam a comunicação e a relação das irmãs de mesma idade de forma mais profunda, no entanto. Ambas sentem que não são o suficiente, ambas compreendem mal o silêncio e as ausências da outra. Dimple anseia por uma relação mais estreita com a irmã que poderia compreender o que ela sentia porque ambas estavam vivendo as mesmas fases ao mesmo tempo, mas separadamente. Quando Elizabeth ignora uma tentativa de contato na adolescência, no entanto, a rejeição a afasta.
Um dos arcos mais ricos que o romance desenvolve, portanto, é o diálogo e a linguagem afetiva dessas duas pessoas imensamente diferentes, mas ao mesmo tempo muito parecidas. O tempo passa, Kyron fica para trás, mas os vínculos entre os cinco permanece: Delores “deserda” o filho e deixa a parcela que caberia a ele somente aos seus filhos. Assim, quando a casa da matriarca da família Pennington-Ricketts é desmontada aos poucos para ser vendida e vemos as irmãs de Cyril e ele próprio levando pequenos ou grandes itens que querem para si até o lar ficar esvaziado de lembranças, o legado da presença e da ausência da avó na vida dos netos é sentido com mais intensidade.
Delores levou, ela própria, uma vida difícil: rejeitada pelos pais por ter engravidado muito jovem, ela perdeu também o homem por quem se apaixonou em um acidente de carro. Delores emigra para a Inglaterra e se casa novamente, mas Cyril só se junta a ela aos 15 anos de idade, tendo crescido pensando ser filho da mulher que na realidade era sua avó. Os irmãos que conhece na Inglaterra são filhos do marido da mãe e ele se ajusta como pode.
Pennington é um homem inegavelmente falho, inteiramente humano: a narrativa não o julga, no entanto. Desde o início ouvimos que este é um homem que pensa em si mesmo “mais como uma people person do que como um pai”, aproveitando a vida, fazendo amigos, ouvindo música, dirigindo seu carro chamativo e flertando com diversas mulheres sem jamais se estabelecer em coisa alguma. Esse senso de impermanência, de superficialidade nas conexões, no entanto, sugere uma ansiedade mais profunda neste homem que, apesar de sua performance de leveza e alegria, frequentemente revela sua própria melancolia.
No início do romance, Dimple é questionada por Prynce por que ela, sendo tão tímida, almeja trabalhar como influenciadora digital. Sua resposta de que se vê como uma people person somente será aceita e compreendida pelo irmão muito mais tarde, quando por meio do vínculo estabelecido entre os cinco um novo significado poderá ser forjado para a expressão. Assim, Dimple, que frequentemente escuta que se parece fisicamente com Cyril, é capaz de quebrar o ciclo do trauma geracional que herda do pai. Da mesma forma, Danny o interrompe com o carinho que dispensa ao próprio filho, Marley. Isso não significa sugerir que as dores não estejam mais ali, mas sim que todos esses indivíduos escolhem produzir, por conta própria, um retorno a cada um dos outros, afetos que suas infâncias não lhes ofereceram. Por meio do amor incondicional que os une, Dimple finalmente abandona sua própria bolha e Elizabeth se permite confiar no carinho dos irmãos. A partir da eterna ausência/presença de Cyril, Nikisha, Danny, Dimple, Lizzie e Prynce constroem algo inteiramente seu, uma família conectada pelo sangue, de fato, mas também pela escolha consciente de se fazerem presentes.
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Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.