Girl, Woman, Other de Bernardine Evaristo foi publicado no início de maio de 2019 e os elogios da crítica especializada começaram a chegar quase imediatamente. Micha Frazer-Carroll, do The Guardian, celebrou a capacidade de Evaristo de tecer grandes questões com as quais frequentemente nos deparamos “em diálogos sem reduzir suas personagens a porta-vozes para um debate popular”. A resenha oficial da Waterstones diz “com tema caleidoscópico e tom incandescente, o panorama de Evaristo da mulher negra moderna ressoa com uma surpreendente diversidade de voz e caráter observada ao longo de um século de mudanças.”
A confirmação da apreciação crítica da obra mais recente de Evaristo veio com a publicação da seleção de finalistas do Booker Prize e a subsequente premiação da obra em outubro de 2019. Quando a obra foi publicada nos Estados Unidos, foi a vez dos resenhistas do The New York Times aplaudirem o nono romance de Bernardine Evaristo. No entanto, o que deveria ser – e, até certo ponto, foi – celebrado como a coroação da realização literária de Evaristo foi sublinhado pelo fato de que Girl, Woman, Other não foi o único livro a levar o Booker Prize 2019.
Em uma decisão controversa, os jurados dividiram o prêmio entre Evaristo e Margaret Atwood, a experiente romancista canadense sendo reconhecida por The Testaments, a esperada continuação de The Handmaid’s Tale.
Nas redes sociais, as reações foram imediatas. Muitos questionaram por que a comissão do Booker aceitou romper – sem justificativa plausível – com uma determinação estipulada pela própria organização da premiação. Aprovada em 1992, a regra dita que “o Booker Prize não poderá ser retido ou dividido”. Diversas explicações foram oferecidas por Peter Florence, presidente do júri do Booker 2019, mas estas não sanaram as questões levantadas e reiteradas por leitores no Twitter e reiteradas no Instagram.
Mesmo aqueles que gostaram de The Testaments sentiram que a divisão do prêmio se deu não por uma espécie de empate técnico na avaliação objetiva das obras em si, mas de uma pretensão de premiar Atwood pelo conjunto da sua obra, algo que o Booker Prize não se propõe a fazer. Ademais, há uma questão importante de representatividade que se coloca e que nos faz, mais uma vez, questionar o lugar das premiações literárias: Bernardine Evaristo foi a primeira mulher negra a ganhar o Booker Prize desde que a premiação foi criada, em 1969.
A primeira escritora negra a ganhar o Booker Prize em 50 anos de existência da premiação teve que dividir seu prêmio. Isso tem um peso simbólico difícil de calcular e um peso objetivo fácil de analisar. Atwood é uma escritora plenamente estabelecida, mundialmente conhecida por conta da adaptação de The Handmaid’s Tale pela Hulu , dona de um patrimônio líquido recentemente estimado em 20 milhões de dólares. A divisão simbólica do prêmio entre Evaristo e Atwood significou também a divisão prática dos £50,000 oferecidos ao vencedor. Para Evaristo, que descreveu a vitória do BP como life-changing, este é um valor que faz uma diferença mensurável, impactando sua vida profissional, embora uma autora estabelecida, para além da exposição e prestígio associados ao Booker.
Além disso, qual é a mensagem que o BP envia quando após aguardar cinquenta anos para premiar uma autora negra, o prêmio dela é dividido com uma autora que além de plenamente estabelecida, já fora reconhecida e premiada com o Booker Prize antes (em 2000, por The Blind Assassin)?
Girl, Woman, Other: uma resenha
Questionamentos e polêmicas à parte, como leitora eu não havia entendido por que as pessoas ficaram tão aborrecidas nas redes sociais por conta da divisão do BP. Afinal de contas, nós sabemos que premiações muitas vezes são mais regidas por políticas do setor e negociações entre grandes grupos editoriais do que por avaliações objetivas de mérito literário. No entanto, após ler Girl, Woman, Other, eu entendo a controvérsia.
The Testaments não é, de forma alguma, um livro ruim. Como leitora de Atwood, o considerei uma continuação satisfatória e bem-elaborada para The Handmaid’s Tale. Um bom livro, como defendi na resenha da obra aqui no Literatura Inglesa Brasil. No entanto, embora eu leia dezenas de bons livros todos os anos, poucos se comparam a Girl, Woman, Other.
O romance mais recente de Bernardine Evaristo é um livro que, enquanto professora, quero trabalhar em sala com meus alunos para falar sobre o que é o Reino Unido hoje e como este país chegou aqui. É um livro que pratica empatia em vez de apenas falar sobre ela, exercitando conceitos, ideias e posicionamentos de uma forma que chega a nós orgânica, mas cuja fluência sinaliza o trabalho árduo, artesanal da autora. É uma obra bem-planejada, bem-executada e que, em meio à torrente de novas publicações que chegam às livrarias todos os anos, veio para ficar.
Girl, Woman, Other é subdividido em seções que trazem como título o nome da personagem cujo ponto de vista seguiremos pelas páginas seguintes. Todas elas são conectadas de alguma forma e as suas histórias contam um pouco da história da Inglaterra que muitas vezes não ganha espaço na literatura mainstream. O romance explora espaços – especialmente na capital – que não fazem parte do roteiro da Londres literária tradicional. Passamos por Peckham, Tooting e ao chegar em Brixton lembramos do inevitável debate sobre gentrificação e a impossibilidade de pessoas comuns se tornarem donas de suas próprias casas em Londres no século XXI.
Nossas doze protagonistas, a maior parte delas mulheres negras cujas idades variam entre 19 e 93 anos, trazem histórias que nos dizem algo sobre a experiência de imigrantes ganeses, etíopes, barbadianos e de tantos outros países africanos e caribenhos que chegaram à Inglaterra na década de 1950. Suas vivências falam a nós dos desafios enfrentados por seus pais, seus filhos, filhas, irmãs, irmãos, cônjuges e netos. Uma das belezas da escrita de Evaristo é a forma como ela conecta os personagens e os revela sutilmente ao leitor. Do lado de cá da página entendemos melhor as dinâmicas das famílias – tradicionais ou não – às quais ela nos apresenta.
Evaristo explora aspectos como o racismo, a dificuldade de se adaptar ao clima de um país em muitos sentidos hostil à chegada e à permanência daquelas pessoas. No entanto, suas personagens insistem e para cada uma das mulheres fortes que se recusam a ceder, a Inglaterra muda um pouco com elas, uma nova Inglaterra é fundada, uma ressignificação do que é ser inglês se estabelece.
Também é brilhante e engenhosa a forma da obra. A estrutura do romance impede que o leitor se apegue a uma perspectiva única. Os coadjuvantes de uma seção se tornam protagonistas da seguinte e personagens cujos comportamentos, escolhas e atitudes pareciam absurdos, pouco razoáveis ou incompreensíveis em uma seção se revelam seres complexos cujas condutas têm suas próprias raízes e causas.
O capítulo 1, por exemplo, é subdividido entre Amma, Dominique e Yaz. Amma é uma diretora de teatro que, após décadas lutando muito por seu espaço, agora tem uma peça estreando no National Theatre e enfrenta as críticas de amigos que a acusam de ter se tornado parte do establishment. Em seus tempos de teatro independente, Amma era sócia de Dominique, uma grande amiga que acabou emigrando para os Estados Unidos e se viu presa em um relacionamento tóxico. Dominique é uma das muitas madrinhas de Yaz, filha de Amma concebida por inseminação artificial. O pai de Yaz é Roland, grande amigo de Amma, gay, casado, professor universitário, escritor e personalidade de TV. Ao longo do capítulo, vemos o mundo a partir da visão de Amma, que compartilha um pouco da sua história com o leitor: da juventude e sua gênese no teatro ao momento em que decidiu ser mãe. Vendo o mundo pelos olhos de Dominique, sentimos a inquietude da personagem, a forma como Londres não a satisfazia mais, o início de um grande amor que se transformou em um relacionamento tóxico e a importância da sororidade que a ajudou a sair de uma situação abusiva. Pelos olhos de Yaz, vemos Amma como mãe, o mundo como algo ainda muito novo e cheio de possibilidades. Ao longo do romance, nos reecontramos com Amma do ponto de vista de outras personagens e é como reencontrar uma velha amiga. A escrita de Evaristo conecta o leitor com essas vozes com muita competência.
Em um elenco de personagens interessantes, enfrentando seus próprios desafios e questões, destaco outra das madrinhas de Yaz, Shirley. Ela é professora em uma escola que recebe menos fundos do que deveria e cujos alunos sofrem um intenso processo de marginalização. Shirley é amiga de infância de Amma, mas também foi professora de Carole, atualmente vice-presidente de um grande banco, mas uma das jovens que sofreram com a precarização do sistema, e que sofre ainda hoje com manifestações de racismo estrutural.
Carole é filha de Bummi, que emigrou da Nigéria para a Inglaterra recém-casada porque seu marido acreditava que lá ele teria mais oportunidades de encontrar vagas compatíveis com sua formação acadêmica e lecionar em uma faculdade de Economia em uma universidade britânica. Embora Bummi, por sua parte, contasse com um diploma em matemática, ela não conseguia empregos na área e teve que trabalhar como faxineira até poupar o bastante para abrir sua própria firma de limpeza. Seu marido Augustine, já falecido à altura dos eventos narrados no livro, também teve que trabalhar fora de sua área, como taxista. Por isso, Bummi insiste que Carole não desista de Oxford quando a filha volta para casa nas férias profundamente ferida pelas demonstrações de racismo e classismo sofridas na universidade. A filha persevera, mas a experiência também muda Carole e isso machuca Bummi.
Quando acompanhamos a história do ponto de vista de Carole, sentimos as dores, as experiências e as limitações – a dificuldade de comunicação com a mãe após um evento traumático na adolescência – dela. Quando embarcamos na narrativa de Bummi, entendemos melhor aquela mãe como uma pessoa igualmente complexa, dona de suas próprias dores, de suas próprias convicções e de uma força e resistência sem par.
A forma como Evaristo narra as não apenas os eventos a partir de diversos pontos de vista, mas constrói experiências e estabelece vozes marcadamente diferentes entre si é uma demonstração da sua habilidade enquanto escritora de ficção. O último romance que li que trouxe tantas vozes tão bem construídas e autônomas foi Middlemarch, de George Eliot. Esta não é uma realização pequena. Evaristo oferece ao seu leitor a possibilidade de ver o mundo de pelo menos doze maneiras diferentes e abrir mão de julgamentos pré-concebidos ao abordar uma narrativa.
Girl, Woman, Other é uma obra que explora de forma revigorante os limites do romance contemporâneo com uma estrutura que produz algo frequentemente falta em nossos debates atuais: empatia. Conforme saltamos de uma narrativa para outra, é muito difícil não se deixar absorver pelos sofrimentos, alegrias e tensões quintessencialmente humanas construídas nas páginas dessa obra que merece todos os elogios e louros que vem recebendo. Além de lançar sobre a sociedade em que vive um olhar crítico e certeiro, Bernardine Evaristo propõe em seu último romance um exercício do qual todos nós nos beneficiaríamos no dia-a-dia: o desafio de não apenas se colocar – mas se abandonar e mergulhar – no lugar do outro.
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Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.
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