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Resenha: All My Sons no The Old Vic6 min read

Sally Field não apenas corresponde, mas excede expectativas como Kate Keller em All My Sons no palco do The Old Vic. A direção precisa de Jeremy Herrin, assim como a parceria da atriz com Bill Pullman, produzem uma montagem que reitera a relevância da obra no século XXI. A crítica de Arthur Miller ao American Dream não poderia soar mais contemporânea em tempos de America First.

Baseada em uma história real que a sogra de Miller leu no jornal, All My Sons foi uma espécie de último esforço do dramaturgo, cuja primeira peça, The Man Who Had All the Luck, havia sido um fracasso na Broadway. Determinado a abandonar o teatro caso sua segunda tentativa também fosse um fracasso comercial, Miller viu All My Sons estrear em janeiro de 1947 com aclamação crítica e popular, o que garantiu que a peça tivesse uma extensa temporada de 328 apresentações, rendendo prêmios Tony ao autor e a Elia Kazan, o diretor.

Numerosos revivals e duas adaptações cinematográficas depois, All My Sons recebe duas novas montagens em 2019, uma no West End, que ora resenhamos, a outra na Broadway, em temporadas concomitantes. O inegável interesse neste texto particular de Miller já pode dizer algo sobre o momento político atual.

Na década de 1950, o dramaturgo foi convocado a prestar esclarecimentos perante o Comitê de Atividades Antiamericanas em parte devido à ligação com Elia Kazan (que havia sido membro do partido comunista), mas também pela crítica ao American Dream que sua peça carrega.

All My Sons confina seus personagens no jardim dos Keller e os força a confrontar as concessões que estariam dispostos a fazer para manter ou avançar em suas posições na sociedade. Até onde você iria pelo American Dream? No pós-guerra ou em 2019, a resposta para esta questão pode não ser tão simples quanto parece.

O espaço é um elemento crucial – a bela casa suburbana cujo conforto progressivamente se transforma em incômodo – para o desenvolvimento da tensão dramática em Miller. Na brilhante montagem de 2019 no The Old Vic, o cenário é um presente ao espectador. A sufocante casa dos Keller avança no palco em direção a plateia, tridimensional, bem iluminada. Ela pulsa como uma coisa viva e, desde os primeiros momentos, sinaliza, com uma árvore caída no quintal (derrubada por uma ventania), que a morte e o luto a assombram de alguma forma. O lar dos Keller abriga as contradições e as omissões de uma família fraturada pela perda do filho mais velho.

Cada membro da família lida com o luto da maneira que consegue, mas quando Ann (interpretada nesta montagem por Jenna Coleman), a noiva do filho perdido na guerra, faz uma visita à casa da família, as tensões reprimidas por Joe e Kate e, até certo ponto, Chris, vêm à tona com força total.

Kate enxerga Ann como a noiva de Larry, o filho mais velho pelo qual a mãe ainda espera, mas Chris pretende pedir a mão da jovem em casamento. Seguir em frente não é uma opção para a Sra. Keller. O desenrolar dos atos comunica à plateia que aceitar a morte do filho representa para Kate mais do que a perda de Larry, mas o desmoronamento da sua estrutura familiar como um todo.

Sally Field comunica a tensão que preenche a matriarca da família Keller com cada gesto trêmulo e olhar tenso que troca com Pullman no palco. Ela não apenas corresponde, mas excede as imensas expectativas daqueles que garantiram seus ingressos com meses de antecedência para esta temporada.

Subjacente ao drama de Ann e Chris, corre a relação de culpa e negação carregada por Joe Keller, que, fornecendo peças para os aviões militares durante a guerra, colocou a estabilidade financeira e a reputação de sua empresa antes da segurança física dos pilotos que embarcariam em aviões potencialmente inseguros. A consequência do envio de peças defeituosas foi a morte de 21 pilotos, jovens inocentes como Larry (desaparecido e dado como morto pela maioria dos personagens no início da peça) e Chris (que sofre da síndrome do sobrevivente).

Keller permitiu que seu sócio, Steve Deever, pai de Ann, levasse a culpa pelo ocorrido. No período em que os eventos da peça transcorrem, Steve segue preso, ostracizado por seus filhos e esposa. Novamente, aqui a parceria entre Pullman e Field é digna de nota. Ela é minuciosa na maneira como equilibra a firmeza característica com a crescente instabilidade que afeta a matriarca da família Keller, comunicando com seu corpo cada nuance da tentativa de Kate de impedir que seu lar desmorone como a árvore que plantaram em memória a Larry. Já Pullman está brilhante na pele do pai de família cuja obsessão com a necessidade de ser bem-sucedido e de assegurar um futuro para seus filhos impede que ele avalie com bom senso eventos presentes e passados. Os muitos silenciamentos que definem as relações familiares dos Keller enriquecem as interações de Field e Pullman, que comunicam sutilmente com seus corpos aquilo que seus personagens se negam a dizer. 

A balança em que Joe Keller mede suas ações flutua ao longo da peça até que, em dado ponto, a realidade e o peso de suas atitudes passadas são absorvidos pelo pai de Larry e Chris de uma só vez. Tudo isso é construído com maestria por Pullman, cujo desempenho no palco merece elogios também pela parceria com Colin Morgan, que acerta o tom na pele do filho mais jovem, noivo e irmão, cujo trauma acaba sempre se impondo entre ele e o seu impulso de seguir em frente.

Pouco a pouco, aquela casa que se aproximou de nós, nos dando acesso aos seus segredos e não-ditos esvazia-se de significado até se tornar uma mera sombra. Ao final da peça, ela se afasta, melancólica e deserta. Em um jovem século XXI, no qual a guerra parece estar sempre apenas a um tuíte de distância, e quando uma noção vaga de “comunismo” retorna como uma sombra que pode custar reputações, parecemos estar estranhamente próximos dos Keller e dos Deever em agosto de 1947.

A direção de Jeremy Herrin obtém o melhor de seus atores e nenhum talento parece ser desperdiçado. A diretora de casting, Jessica Ronane CDG também precisa ser mencionada pela façanha de ter reunido um excelente elenco de apoio que sustenta bem a tensão dramática da gradual alienação da família Keller da vizinhança. Max Jones, responsável pelo cenário e figurinos também merece menção honrosa por elevar a casa a personagem. Entre tantas adaptações e revivals, esta montagem de All My Sons é uma obra de arte contemporânea que reitera a importância de olhar para trás para compreender melhor o presente. Arthur Miller ainda nos diz muito, mantendo firme seu lugar na tradição dos grandes dramaturgos estadunidenses.

Publicado por

Marcela Santos Brigida
Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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