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In Our Mad and Furious City de Guy Gunaratne: Londres para além do cartão postal12 min read

In Our Mad and Furious City de Guy Gunaratne em formato de e-book acompanhado por um mapa de North London destacando a região de Neasden.

A violência definiu esta cidade. Os que aqui vivem, os nascidos e criados, crescem com ela, como uma irmã mais velha. Naquele dia final em que as chamas consumiram as cúpulas da nossa Mesquita, nós todos estávamos além de qualquer possibilidade de salvação. A fúria era como uma febre no ar.1 – Guy Gunaratne, In Our Mad and Furious City

 

Em In Our Mad and Furious City, romance de estreia do escritor britânico-cingalês Guy Gunaratne, o leitor acompanha 48 horas das vidas dos jovens amigos Selvon, Ardan e Yusuf, residentes da região de Neasden, em North London. Os acontecimentos que compõem o enredo principal da obra se desenrolam em um momento de crise em que a realidade atravessa a ficção, acirrando tensões religiosas e raciais. Um jovem negro e muçulmano assassinou um soldado britânico em plena luz do dia.

O romance não oferece esses dados, mas sabemos que o assassino é Michael Adebolajo, a vítima é Lee Rigby e crime se deu 2013. O jovem muçulmano justificou suas ações apontando a violência perpetrada por soldados britânicos em ocupações militares de países majoritariamente muçulmanos. As palavras de Adebolajo, que classificavam a vítima como um infiel, foram gravadas em vídeo e propagadas pelo mundo todo com o auxílio da internet.

Este evento – que desencadeia manifestações, embates e inquietações sociais que afetam os protagonistas do romance – foi também o gatilho para Guy Gunaratne escrever esta obra singular e marcante, que ganhou o Jhalak Prize e o Dylan Thomas Prize de 2019.

Londres para além do cartão postal

In Our Mad and Furious City é um romance tanto sobre as pessoas quanto sobre a cidade. Em entrevista a Rodrigo Carvalho concedida durante o Globo News Literatura, Gunaratne disse que a região onde cresceu, o distrito de Neasden, sempre lhe pareceu um local que figurava nos itinerários das pessoas como um ponto de passagem, não um destino final. No seu romance, Londres pulsa intensa, mas não como a cidade do Big Ben e dos chás da tarde glamourosos em Covent Garden. Nossos protagonistas passam longe dos teatros do West End e das boutiques exclusivas de Chelsea. Esta é uma Londres que, se muitos londrinos veem apenas de relance, a maioria dos turistas não vê de forma alguma. Pela literatura, Gunaratne oferece estilhaços de uma experiência antes inacessível para muitos e expande o entendimento da capital britânica para além do cartão postal.

Na entrevista a Carvalho, o autor falou sobre o efeito que a cena do assassino, já apresentado nos noticiários como terrorista, exerceu sobre ele, enquanto filho de imigrantes que cresceu naquela região de North London. Assim como o trio de In Our Mad and Furious City, Gunaratne foi tirado de sua zona de conforto pela identificação com aquela figura:

“O que foi mais chocante para mim foi a forma como ele se portava, o dialeto que usava. É algo muito familiar para mim. Ele parece ter vindo da mesma escola que eu, ter crescido com a mesma cultura que a minha. E essa identificação foi muito perturbadora. E eu achei que valia a pena explorar isso. Essa identificação com um monstro. Você vê esses radicais islâmicos, normalmente homens jovens, que cometem esse tipo de crime e é muito fácil retratá-los como monstros, como inumanos.”

Um mesmo espaço e experiências radicalmente distintas

É essa identificação involuntária com o monstro que afeta os personagens do romance de estreia de Gunaratne de maneiras diferentes.

Yusuf tem ascendência paquistanesa, mas é nascido e criado em Londres. Seu pai, já falecido, era o imã da mesquita local. Fica claro para o leitor desde o início que uma espécie de ruptura se deu entre Yusuf e seu irmão, Irfan. O novo líder da mesquita segue a linha Muhajiroun, que implica em um entendimento da religião bastante diferente daquele defendido pelo pai de Yusuf.

Abu Farouk e seus seguidores rejeitam qualquer tentativa de conviver pacificamente com aqueles percebidos como infiéis. A comunidade muçulmana local sofre de forma ainda mais intensa (por conta da islamofobia) o preconceito e as agressões que afligem (na forma do racismo e da xenofobia) os não-brancos de origens diversas que residem na região.

Após o assassinato do soldado britânico, que se dá antes do início da narrativa, manifestações são organizadas e atos de violência são empreendidos por pessoas brancas de extrema direita para tentar expulsar tudo que é percebido como estrangeiro ou diferente daquela região de Londres. Vidraças quebradas, pessoas agredidas, palavras de ordem proferidas. A posição de enfrentamento radical pregada pelo novo imã, acirra os ânimos e os irmãos Yusuf e Irfan se sentem cada vez mais cercados pelos muitos olhos do líder religioso na região.

Abba dizia que nós íamos deixar o Conjunto Habitacional assim que ele deixasse de ser imã. As coisas já não estavam tão claras. Não agora que ele tinha morrido. A Mesquita onde ele passava a maior parte do seu tempo não era mais um lugar que eu via como sendo nosso. E com os problemas do Irfan em casa e essas marchas que todo mundo esperava que se espalhassem pela cidade, parecia que tudo podia acontecer. Nada mais era uma certeza.2

 

Selvon é de origem caribenha e não mora no conjunto habitacional em Neasden, algo que ele reitera mentalmente diversas vezes ao longo de suas corridas. No entanto, ele próprio concede que talvez fosse correto admitir que embora não morasse, ele talvez vivesse ali: o lar de seus melhores amigos, o lugar onde ele era conhecido, onde se exercitava e passava muitas horas do seu dia. Selvon é disciplinado e focado em sua meta de abandonar aquele local e deixar a casa de seus pais.

Ele foi aceito na universidade de Brunel e pretende morar nos dormitórios em Central London. Uma inquietude constante faz com que ele reitere repetidamente sua necessidade de sair daquela região e desenvolver uma vida propriamente sua em outro lugar. A perspectiva de continuar ali o sufoca.

Esse Conjunto Habitacional tem uma loucura nele, todo mundo sabe disso. Isso não me afeta, não. Mas toda vez que eu corro aqui, eu penso nos meus amigos que moram nesses apartamentos subsidiados com toda essa imundície acumulada. Na minha cabeça, esse lugar é dono de uma parte de mim também, todo silencioso e cinzento. Faz parte de mim por associação, né. Porque eu pego o ônibus com o Ardan e o Yoos e eles me conhecem. E eu corro aqui. E jogo bola aqui. Apesar de morar numa casa de verdade com uma família de verdade. É aqui que eu corro e sou conhecido. Por enquanto.3

 

Ardan é filho de irlandeses e vive com a mãe, Rachel. Embora todos os protagonistas se interessem por Grime, o gênero musical é a obsessão de Ardan, a forma como ele se expressa, uma espécie de talento oculto. Ele passa horas experimentando e compondo suas próprias rimas, mas é só com o incentivo de Selvon que cria coragem para expor seus versos. Sensível e sempre acompanhado de seu cachorro, Max, ele é o mais inseguro entre os três amigos.

Eu dou uma olhada no Mike Akers e na galera dele perto dos halteres. A maioria deles estudaram na St Mary’s, que nem o Selvon e eu. Alguns eram da nossa turma. Só que eles não gostavam de grime quando tudo começou. Eles cooptaram a música depois e começaram a mandar umas rimas fracas sem dar a mínima. Pagãos. A gente que começou com isso, com a música. Moldamos ela, não foram eles. Grime é o nosso lance.4

Imigrantes de primeira geração

Neste romance polifônico, a história é contada em primeira pessoa pelos três amigos e, no caso de Selvon e Ardan, a narrativa de seus pais também é ouvida. Através das vozes desses imigrantes – Nelson, de Montserrat no Caribe, Rachel, de Belfast na Irlanda do Norte – entendemos melhor os processos diaspóricos que permitiram que os protagonistas convergissem naquele lugar.

Rachel conta sobre sua juventude em Belfast na década de 1970, destacando o momento em que descobriu que sua família – pai, mãe e irmãos – eram membros do IRA e forma como a violência ali podia ser fortemente genderizada.

Foi a violência que a acompanhou ao longo de toda a sua vida. Após romper com a família e se mudar de forma definitiva para Cricklewood, em Londres, Rachel se casou com John, de Donegal, e apanhou do marido até o dia em que ele a abandonou com o filho. É com uma delicadeza singular que Gunaratne constrói as nuances que distinguem as lembranças do abandono a partir dos pontos de vista de Rachel e de Ardan. A relação corrompida entre mãe e filho e as tentativas de reaproximação por parte dele figuram entre as passagens mais memoráveis do romance.

A voz de Nelson, por sua vez, é a mais cativante. A sutileza com que Gunaratne construiu este personagem, por si só, já tornaria este romance merecedor de todos os prêmios que vem colecionando. Nelson chega em Londres cheio de sonhos e apaixonado pela cidade. É dolorosa a cena em que ele percebe que a metrópole, que aquele país como um todo, não o amava de volta.

Este entendimento chega até ele em uma noite em que pergunta a um amigo o que significavam as iniciais “KBW”, pichadas na parede de um beco. A compreensão de que se tratavam das iniciais para “Keep Britain White5 é um balde de água fria. Nelson é forçado a acordar para a dura realidade do relacionamento cheio de contradições que desenvolverá com a Inglaterra ao longo dos anos.

Após se envolver com uma célula do movimento negro que se engajava em um enfrentamento violento das forças racistas ali presentes, Nelson chega à conclusão que aquele não é o seu lugar. Ele é um homem pacífico, e sua recusa absoluta de se engajar com a violência o distingue em um livro que gira em torno de ações e reações violentas. Nelson recusa a fúria.

É um dos pontos altos de In Our Mad and Furious City o momento em que ele retorna a Montserrat para reencontrar Maisie, o amor de sua vida, e percebe que, mesmo diante de todos os problemas, é em uma “ilha mais fria” que eles terão um futuro pela frente. Nelson reivindica Londres, sua complicada identidade britânica e o seu direito de estar e permanecer ali.

In Our Mad and Furious City é um romance corajoso que ousa erguer espelhos para as múltiplas realidades da Londres do século XXI. Elogiando a obra, o presidente da comissão do Dylan Thomas Prize, que premiou o romance de estreia de Gunaratne, Prof. Dai Smith CBE, declarou:

“De vez em quando, surge uma obra de ficção que usa voz, estilo e história, como somente obras da imaginação podem fazer, para nos deixar entrar, para nos faz ver, para exigir que nós entendamos vidas e circunstâncias que raramente recebem o foco das atenções na nossa cultura e sociedade contemporâneas.”

É precisamente este o modo como o romance de Gunaratne chega ao leitor: nos deixando entrar, nos fazendo ver e exigindo que entendamos modos de vida radicalmente distintos dos nossos. Ele estabelece, no entanto, com muita sensibilidade, possíveis pontos de contato entre os dois lados da página. Acompanharemos com entusiasmo os próximos passos literários de Gunaratne após uma estreia que certamente figurará entre os livros mais memoráveis da nossa década.

Publicado por

Marcela Santos Brigida
Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

1 comentário em “In Our Mad and Furious City de Guy Gunaratne: Londres para além do cartão postal12 min read

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