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Resenha: The Wall de John Lanchester (2019)

A imagem mostra uma praia em Devon, na Inglaterra.

Devon, provável localização de Ilfracombe 4 em The Wall. | Foto de Nick Shepherd

Lançado no início de 2019, o romance distópico de John Lanchester atraiu atenção imediata do público leitor e da crítica especializada anglófona não apenas pelo histórico do autor em questão, mas pela sugestividade do seu título. The Wall evoca tanto o muro de Donald Trump na fronteira dos Estados Unidos com o México quanto, no contexto político imediato em que seu autor se insere, as tensões relativas ao Brexit.

Publicado às vésperas da data inicialmente tida como prazo para a saída do Reino Unido da União Europeia (o livro saiu no dia 17 de janeiro, a data do divórcio oficial entre RU e EU seria no dia 29 de março), The Wall, é um romance que se passa numa Grã Bretanha distópica, cercada por um muro que se impõe ao longo de toda a sua extensão para impedir tanto a entrada de imigrantes ilegais quanto o avanço do oceano. Assim, Lanchester escancara tensões que fizeram com que 2019 se iniciasse como um ano marcado pela ebulição de disputas políticas acerca do entendimento que a sociedade ocidental faz e fará de conceitos como democracia, controle de fronteiras, aquecimento global e identidade nacional.

Em sua resenha de The Wall, Johanna Thomas-Corr classificou a obra do escritor e jornalista John Lanchester como uma “uma fábula ambiental que consegue ser simultaneamente inquietante e bastante divertida”. Como a resenhista aponta, trata-se de uma distopia que, como é peculiar ao gênero, apresenta uma configuração que manipula e extrapola ansiedades contemporâneas.

Algumas dessas preocupações são facilmente transponíveis para a realidade de qualquer país ocidental no século XXI, como a elevação dos níveis dos oceanos e o crescimento do populismo e de retórica anti-imigração. Outros são mais localizados e peculiarmente britânicos. O quinto romance de Lanchester soa como uma alegoria literária dos medos crescentes sobre a possível escassez generalizada que um Brexit sem acordo pode gerar.

 

Faz frio no Muro. É a primeira coisa que todo mundo te diz, e a primeira coisa que você percebe quando é enviado para lá, e é sobre o que você pensa o tempo todo quando está lá, e é do que você se lembra quando não está mais lá. Faz frio no Muro.1

John Lanchester, The Wall

Quando o leitor é introduzido àquele que atua como cenário principal e quase como um personagem por si só, não fica claro o que ocasionou a ida de Joseph Kavanagh – protagonista e narrador do romance – para o Muro. A primeira sensação que temos é a de que se trata de uma espécie de campo de trabalhos forçados. A impressão é reforçada pela informação oferecida de antemão por Joseph de que ele terá que passar dois anos ali. Trata-se de uma pena a ser cumprida? De certa forma, sim. O delito do protagonista e de seus companheiros de vigia, no entanto, se resume ao fato de terem nascido após o cataclisma identificado somente como The Change no romance. A Mudança, logo entendemos, acarretou uma elevação significativa dos níveis dos oceanos, obliterando praias e litorais no mundo todo.

No contexto do Reino Unido, foi construído um imponente Muro, cujo nome oficial é National Coastal Defence Structure ou NCDS, que serve tanto para proteger a ilha de possíveis avanços do oceano quanto para manter The Others – Os Outros, imigrantes – do lado de fora. Essa estrutura cobre toda a ilha da Grã-Bretanha.

No início, Kavanagh é estacionado em Ilfracombe 4, unidade que logo percebemos ser localizada no sul da Inglaterra, provavelmente em Devon, devido ao fluxo intenso de tentativas de invasão. No decorrer da narrativa, ele é transferido para o norte, na Escócia.

Kavanagh atuará como Defensor – Defender – no Muro em implacáveis turnos de 12 horas. Ele é inserido numa unidade com outros Defensores e logo se familiariza com os colegas. Eles logo estabelecem uma rotina mais ou menos agradável, por mais inóspitas que sejam as suas condições. Quando o leitor é introduzido a Joseph, ele já passou por um rigoroso regime de treinamento e está tecnicamente preparado para enfrentar a missão que lhe foi imposta. O que está em jogo, no entanto, impede que a monotonia que ocupa as longas horas que ele passa em seu posto em busca de movimentos suspeitos no oceano seja, de fato, absoluta.

A existência de Kavanagh em Ilfracombe 4 é pontuada por uma ansiedade constante e inevitável: a pena para Defensores que falhem em sua missão, isto é, que permitam que o Muro fique vulnerável a ponto de deixar um invasor entrar é dura. Para cada imigrante que entra e se imiscui na sociedade britânica, um Defensor é punido com o exílio. Num gesto de exacerbação das inseguranças contemporâneas que circulam noções de identidade nacional e pertencimento, os servidores que falham em sua missão no Muro são lançados ao mar. Em um bote com poucos mantimentos, no que se resume numa pena de morte de facto, os Defensores expulsos ficam à deriva, sem saber como encontrar um porto seguro e se tal local de fato existe.

Não há treinamento para esta possibilidade. Com conhecimentos limitados sobre como operar uma embarcação em alto mar (numa ironia, talvez, em relação à herança da Grã-Bretanha como uma nação marítima), o futuro de um Defensor  exonerado fica nas mãos do acaso.

Um universo instigante, mas raso

Ao longo do romance, o leitor tem mais acesso à estrutura militar daqueles envolvidos na proteção do Muro do que à forma como a sociedade britânica pós-Mudança vive de fato. Encontros com civis são raros e permeados por uma espécie de incompreensão mútua, especialmente quando Defensores interagem com membros de gerações anteriores. A relação deles com seus pais são especialmente complicadas, como Kavanagh observa.

Os pais se sentem culpados por integrar a geração “que destruiu o mundo” e pelo fato de que, ao contrário de seu filho, eles não foram obrigados a servir no Muro. Esse contraste se dá pelo simples fato de que, quando tinham a idade de Joseph, não havia Muro para proteger.

Após uma visita particularmente tensa (os Defensores passavam duas semanas no Muro e duas semanas de folga, quando eram livres para ocupar seu tempo como quisessem), os pais de Kavanagh se distraem assistindo a programas de surf na televisão. Esta mostra de um mundo pós-Mudança, conquanto perspicaz, é o mais perto que chegamos de uma descrição mais particular de um universo tão radicalmente diferente daquele que habitamos em 2019. The Wall peca pela falta de detalhes. Somos apresentados a um universo unidimensional e essa fragilidade enfraquece a suspensão de descrença do leitor.

Embora bem-escrito – e com um ritmo que Lanchester conduz com maestria – falta a The Wall um certo polimento e aprofundamento das peculiaridades que constituem a nova ordem política e social que domina o universo em que o romance se desenrola. The Wall estabelece um ânimo que prepara o leitor para um mergulho que nunca se concretiza.

Mesmo as personagens que subvertem a ordem existente e que desestabilizam as estruturas do mundo onde Kavanagh e outros defensores habitam são lamentavelmente rasas. Quando uma traição que implica numa reviravolta no romance é perpetrada, não surpreende ao leitor a revelação da sua autoria, da mesma forma que ecoa de forma previsível o discurso que justifica tais ações. Se resta clara a crítica a políticas anti-imigração, evidenciada e reforçada à exaustão pelo Muro como alegoria, a revelação das verdadeiras intenções do ente militar que possibilita a violação da fronteira interrompe, enfim, a já combalida suspensão de descrença do leitor.

Isso acontece porque é pouco crível, mesmo para o leitor que tem acesso limitado à estrutura política imaginada por Lanchester, que em uma sociedade marcada pela vigilância em todos os níveis, cuja juventude aponta como sua experiência de amadurecimento mais significativa o serviço compulsório no Muro, escapariam aos serviços de inteligência as negociações entre um alto funcionário do exército britânico e invasores. Da mesma forma, as elucubrações do traidor sobre políticas imperialistas de governos passados soam genéricas, não como o resultado de uma experiência particular. É esse generalismo que impede que The Wall seja um grande romance.

Como Johanna Thomas-Corr apontou em sua resenha, embora a premissa do romance seja interessante e envolvente, o texto desenvolve um universo que “está longe de ser estranho o bastante” e que “o desconforto do ambiente raramente escorre para um nível humano”:

 

O que a Mudança teria feito com a psiquê de um país, com o seu folclore, sua língua? Quem são as suas celebridades? Como a cultura do passado se relaciona com a cultura do presente? Nenhuma dessas questões parece ter sido integralmente imaginada.2

 

Essa estranheza, Thomas-Corr defende, é esboçada na cena em que os pais de Joseph Kavanagh sentam absortos diante da TV assistindo a um programa sobre surf, mas Lanchester se desvia desse tipo de peculiaridade em favor da descrição da experiência dos turnos de Kavanagh na primeira metade do romance – um exercício interessante por si só, mas que rende uma experiência de leitura cansativa –, das cenas de combate e das desventuras dos protagonistas, agora apátridas em alto-mar.

A focalização da rotina de vigilância e das cenas de combate produzem um efeito compartilhado entre leitor e narrador de monotonia entrecortada por golpes de violência e desorientação. A rotina diária de Kavanagh nem parece uma narrativa, mas uma imagem estática, como ele próprio brinca ao declarar que os dias no Muro são como um poema concreto. No entanto, essa estratégia narrativa perde sua força também pelos questionamentos com que o leitor se depara ao refletir sobre o jogo estratégico de The Wall, como bem observado por Jonathan McAloon.3

O mundo de Lanchester é agoniante justamente por encenar de forma radical as piores angústias de um cidadão comum no início do século XXI. Ele faz isso a partir de imagens assombrosas desenhadas no imaginário do leitor, e pela descrição minuciosa das sensações de Joseph Kavanagh em seus piores momentos de agonia. Embora, a princípio, seja fácil seguir a voz de Kavanagh e absorver sua realidade, o personagem – assim como o universo distópico contra o qual ele trava uma luta diária pela sobrevivência – resta opaco pela ausência de nuances.  

Ainda assim, o efeito gerado pelo autor – com suas vantagens e desvantagens – parece resultar de uma escolha intencional. Hábil ao delinear um Reino Unido Pós-Mudança, o escritor e jornalista se revela, mais uma vez, um observador sagaz do momento e da sociedade em que habita. No entanto, o esforço do autor de tornar este universo o mais acessível possível, polindo quaisquer possíveis arestas antes mesmo que essas se manifestem de forma plena e economizando em particularidades, tem seu preço. Uma versão mais hermética de The Wall, com um alcance menor, teria também o potencial de ser um livro melhor, se projetando para o futuro – para o atemporal – com mais eficácia. Tal como se apresenta, é uma obra bem-escrita, com valor documental interessante para um analista da ficção em prosa do nosso tempo. No entanto, o romance corre o risco de ser rapidamente ofuscado pelas várias obras do gênero lançadas recentemente e ainda programadas para serem publicadas neste ano.

Momentos de crise são terrenos férteis para distopias. The Wall é um belo thriller, uma experiência de leitura agradável, se não plenamente satisfatória. Lanchester, um grande jornalista, tem o potencial para se tornar também um grande romancista se procurar dissociar de forma mais livre suas alegorias daquilo que elas representam no mundo real. O tempo dirá.

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