Em The Testaments, Margaret Atwood leva o leitor de volta a Gileade, desta vez para revelar os bastidores da ascensão e da queda da teocracia puritana em uma narrativa polifônica e fragmentária.
Por meio de “manuscritos” deixados por três testemunhas que desempenharam papeis fundamentais na derrocada de Gileade, Atwood retorna ao momento do golpe que levou à queda dos Estados Unidos. Esses são eventos já narrados em The Handmaid’s Tale, mas agora enxergamos os movimentos que levaram à supressão dos direitos fundamentais das mulheres estadunidenses por meio do ponto de vista de uma figura imponente e elusiva na narrativa de Offred: Tia Lydia.
Indubitavelmente a narradora e personagem mais complexa e cativante entre as três, Lydia nos conta sobre sua vida pregressa como juíza, o momento de sua prisão, as violências que sofreu antes de ser considerada uma aliada pelo regime, e revela a tensão nos bastidores entre as mulheres que lideravam Ardua Hall. Sem revelar spoilers, podemos dizer que Lydia desempenha um papel importante tanto no estabelecimento das estruturas que governavam a vida das mulheres em Gileade, como na derrubada do regime, já anunciada em The Handmaid’s Tale.
A estratégia narrativa de Atwood é inteligente e arrebatadora: é difícil para o leitor se desengajar do texto. Se em The Handmaid’s Tale compartilhamos da sensação de sufocamento por meio da narrativa claustrofóbica de Offred e nos despedimos da aia sem saber ao certo qual foi o desfecho da sua partida da casa do Comandante Fred, em The Testaments a protagonista do livro de 1985 se faz presente de forma difusa. As duas outras vozes que se juntam à de Tia Lydia para narrar a obra pertencem às duas filhas de Offred.
Agnes Jemima, a filha mais velha separada da mãe quando esta fora capturada tentando fugir para o Canadá durante a instituição da ditadura de Gileade, se lembra apenas de sua vida nesta realidade: sua mãe adotiva Tabitha, seu pai (também adotivo) distante, o Comandante Kyle, e, mais tarde, sua madrasta inescrupulosa, Paula. Por meio da narrativa dela, aprendemos muito sobre a vida em Gileade para uma menina comum, criada em uma família de prestígio. Assim descobrimos que, ao contrário do que se poderia supor, esta não é, de muitas maneiras, melhor do que a rotina das aias que observamos no primeiro livro.
A terceira narradora é Daisy – ou melhor, Nicole – a filha de Offred e Nick, criada no Canadá por um casal membro do grupo de resistência Mayday. Alguns leitores reclamaram da angústia adolescente da garota, preferindo a narrativa de Lydia. A meu ver, ela oferece o contraponto ideal não apenas para a irmã mais velha, como para a ponderação e sabedoria da mulher mais velha. Pela maior parte de seus dezesseis anos, Nicole fora criada como uma garota normal no Canadá, Gileade surgindo para ela exclusivamente como uma realidade distante e opressora, um tema abordado no colégio. Assim, a garota oscila frequentemente entre o ressentimento por se descobrir uma figura icônica em Gileade e por jamais ter conhecido seus verdadeiros pais, e sua vida pregressa. Se Gileade era tudo que Agnes se lembrava de ter conhecido, para sua irmã mais nova, o lugar era visto como um absurdo ficcional, uma distopia sobre a qual ela esperava ler – como nós, os leitores – mas não vivenciar.
Como a própria autora observa em seus agradecimentos, The Testaments nasceu, em grande parte, dos questionamentos dos milhares de leitores apaixonados pelo universo que ela estabelecera em The Handmaid’s Tale há quase trinta e cinco anos. Assim, parece justo avaliar que Atwood é bem-sucedida em balancear respostas e novas perguntas, oferecendo ao seu leitor uma continuação coesa com o primeiro livro. É um presente a narrativa de Tia Lydia e o desenvolvimento da personagem, seu relacionamento com o Comandante Judd e com as outras Tias em Ardua Hall.
Igualmente importante é a forma como a autora comunica a reação da mulher oprimida: se as estruturas de Gileade procuraram despir mulheres de seus direitos mais básicos, foi através das frestas e pequenas exceções que justamente algumas das pessoas mais agredidas pelo regime conseguiram derrubá-lo.
Em tempos tão estranhos como os nossos, The Testaments é uma demonstração de resiliência inestimável para aquelas e aqueles que temem pela estabilidade das estruturas democráticas pelas quais lutamos com tanto afinco, por tanto tempo. Declarado vencedor do Booker Prize 2019 juntamente a Girl, Woman, Other de Bernardine Evaristo, The Testaments merece o hype em torno de sua publicação, com a classificação de “o evento literário do ano”. Assim como seu antecessor, este é um romance que permanecerá conosco por muitas décadas.
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Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.
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The testaments nos faz refletir sobre os dias de hoje. Apesar de ser uma obra de ficção, tem muito da realidade atual e funciona como um alerta a estranhas tentativas manifestadas em vários países de implantar um conservadorismo, usando a religião, com foco na supressão dos direitos das mulheres, conquistados a duras penas por nossas gurreiras antecsssoras. Estejamos alertas e vigilantes! É uma obra de ficção mas com muitas semelhanças com a realidade!