Um resumo da polêmica
Antes mesmo de American Dirt ser publicado, o livro já era anunciado com os louros de um best-seller. Recentemente, foi divulgado que Jeanine Cummins – escritora estadunidense autora de um memoir publicado em 2004, A Rip in Heaven, e de mais dois romances – recebeu uma oferta de sete dígitos da Flatiron Books para a publicação da obra. Além disso, uma adaptação para o cinema já está sendo produzida por Charles Leavitt e Imperative Entertainment. As primeiras páginas do livro são ocupadas por numerosos elogios de autores famosos como Stephen King e Sandra Cisneros colecionados desde o início da campanha de marketing da obra, em 2018. Antes de mais nada, fica claro que, para o grupo editorial, American Dirt não é apenas um livro, mas um grande investimento.
A imensa campanha de divulgação do romance atingiu seu ápice na véspera do lançamento oficial da obra, no dia 20 de janeiro de 2020, quando as contas oficiais de Oprah Winfrey nas redes sociais anunciaram a obra como a mais recente seleção para o seu famoso clube do livro. Na postagem do anúncio, que inclui um vídeo da apresentadora, Winfrey elogia a obra e a descreve como “heart-wrenching page-turner, and you won’t be able to put it down”. No dia seguinte, ela conversou com Cummins no programa CBS This Morning.
Em meio a tantos elogios, uma campanha de divulgação massiva por parte da editora e de seus parceiros (da minha parte, recebi pelo menos três e-mails da Waterstones focalizando American Dirt antes do lançamento do livro), parecia que a obra estava destinada a ocupar não apenas o topo das listas do mais vendidos, mas também as shortlists das grandes premiações literárias. No entanto, a longa série de elogios a American Dirt foi interrompida pela resenha da escritora mexicana-estadunidense Myriam Gurba.
O ponto que marca a ruptura entre a torrente de elogios e uma tomada de posição crítica em relação a obra é também definido pela problemática confusão entre publicidade e crítica. A resenha de Gurba havia sido comissionada pela Ms Magazine, que se recusou a publicar o texto por considerá-lo “negativo demais”. Aparentemente, a revista havia comissionado mais uma peça de divulgação, não necessariamente uma avaliação crítica da obra. A resenha foi subsequentemente publicada pela Tropics of Meta.
Após a publicação do livro, outros/as autores/as de origem latina começaram a se manifestar em relação à construção problemática do romance e a particularmente problemática Nota da Autora. Tais manifestações culminaram na publicação de uma carta aberta na Literary Hub direcionada a Oprah Winfrey e assinada por 138 autores que pedem que ela reconsidere a escolha de American Dirt para seu clube do livro.
Por que American Dirt é problemático?
A reação instantânea da Flatiron Books e da editora britânica de Cummins, a Headline, à avalanche de críticas expressas por autores e leitores de origem latina ou não foi de damage control. Em um longo artigo publicado no The Guardian, a Headline simplifica a questão e sugere que a forte reação contra American Dirt estaria enraizada puramente no fato de Jeanine Cummins não ser uma autora latina (curiosamente, Cummins se identificou como branca até 2016 e só passou a declarar-se como “branca e latina” quando começou a trabalhar em American Dirt) e que ela estaria sendo acusada de apropriação cultural. No entanto, é fácil demonstrar que o problema do romance é mais complexo e tem um alcance mais amplo do que a etnia com a qual a autora se identifica. Da minha parte, eu sintetizaria os problemas de American Dirt em cinco tópicos:
(i) um olhar distanciado que alteriza os personagens e a realidade retratada repetidamente.
(ii) Cummins não precisaria ser imigrante ou mexicana para compor personagens que o são, mas a empatia que ela declara sentir não se transfere para sua escrita.
(iii) Cummins explora a dor e o sofrimento dos personagens de forma igualmente distanciada, que fetichiza e sensacionaliza tal dor e tal sofrimento.
(iv) As generalizações e simplificações sobre a cultura, a política e a vida no México que permeiam toda a narrativa evidenciam problemas na pesquisa realizada pela autora.
(v) Cummins e sua editora invisibilizam uma série de escritores de origem latina que escreveram sobre os mesmos tópicos que ela aborda ao apresentar a história da travessia dos migrantes como um tema que ainda não havia sido explorado na literatura.
O teor das críticas
Em sua resenha, Myriam Gurba critica a construção da protagonista de American Dirt, Lydia: “Que Lydia fique tão chocada com as realidades cotidianas de seu país (…) dá a impressão de que Lydia não pode ser uma mexicana crível. Na verdade, ela percebe seu próprio país pelos olhos de uma turista americana amedrontada”. David Bowles considerou o livro “prejudicial, apropriador, incorreto, trauma-porn melodrama”. A carta a Oprah Winfrey sintetiza o problema:
Nas opiniões informadas de muitos escritores imigrantes mexicanos e latino-americanos, American Dirt não foi bem-imaginado nem escrito com responsabilidade, a pesquisa não foi efetiva. Acredita-se ampla e fortemente que o livro explora, simplifica e desinforma, muitas vezes errando ao pender para a fetichização do trauma e para a sensacionalização da migração e da vida e cultura mexicanas. Além disso, agora existem acusações de uso pesado do trabalho de outros escritores latinx.
Tal fetichização parece ser confirmada pela tone-deafness da editora, que promoveu um jantar para promover American Dirt que usava réplicas de muros de concreto envoltos em arame farpado como enfeites de mesa. À época do evento, Cummins compartilhou fotos dos ornamentos em sua conta no Twitter encantada com a produção da Flatiron, efetivamente dando seu selo de aprovação ao espetáculo promovido pela editora, que desde então se desculpou pelo ocorrido.
Como acreditar que uma escritora que transforma o símbolo da opressão de seus personagens em adorno e o replica de forma não-crítica na internet compreende, de fato, a seriedade e a extensão de tal opressão? O problema, mais uma vez, não é necessariamente a etnia de Cummins, mas o fato de que o seu olhar está contaminado pela linguagem que ela alega combater. Se as escolhas de mau gosto de sua editora não lhe pareceram absurdas sem que a comunidade literária do Twitter precisasse apontá-las dessa forma, logo transparece por que sua escrita tropeça nas questões que centenas de autores e leitores vêm apontando ao longo das últimas semanas.
American Dirt: a problemática Nota da Autora
Antes resenhar o romance propriamente dito, é necessário discutir a infeliz nota da autora ao final do livro. Em um texto breve, Jeanine Cummins repetidamente tenta antecipar reclamações e problemas que poderiam ser elencados após a publicação do romance e rebatê-los a priori. O resultado é, como toda a obra, problemático.
Em primeiro lugar, Cummins alega ter hesitado antes de escrever essa história, sentindo que a mesma deveria ser escrita por alguém que tivesse uma vivência das experiências do livro: imigrantes, mexicanos. Ela chega ao ponto de declarar que gostaria que o livro tivesse sido escrito por alguém browner – mais moreno – do que ela, mas que era uma história que não estava sendo contada. Cummins alega que as histórias que chegam a nós são sempre as dos membros dos cartéis (?) e nunca as das vítimas da violência.
Supostamente, após a insistência das pessoas que ela entrevistou durante a pesquisa para o livro, Cummins teria decidido “ser uma ponte”. A escritora emprega tokenismo para tentar reivindicar a história: cita o marido, que foi imigrante ilegal nos Estados Unidos (ele é irlandês e branco, é importante notar) e que sua avó porto-riquenha – por ela descrita como “uma mulher linda e glamorosa de uma família rica” – emigrou para os Estados Unidos (legalmente) e sentiu na pele o preconceito em relação a pessoas de origem latina. No entanto, novamente, o problema de Cummins não é sua experiência de vida ou aquela dos membros de sua família, mas o olhar sob o qual construiu sua narrativa, como veremos a diante.
Sobre a nota da autora, a carta a Oprah diz:
Como Cummins coloca na nota da autora para American Dirt: “Na pior das hipóteses, percebemos [migrantes] como uma multidão invasora de criminosos que drenam recursos e, na melhor das hipóteses, como uma espécie de massa morena desamparada, empobrecida e sem rosto, pedindo ajuda à nossa porta. Raramente pensamos neles como seres humanos como nós.” Surge uma pergunta dolorosa e central: quem é esse nós imaginado por Cummins, quem são eles? Nós, que assinamos abaixo, não vemos uma massa morena sem rosto. Nós mesmos não somos sem rosto, nem somos sem voz.
Deve constar que o trecho que escolhi traduzir como “massa morena” é originalmente escrito por Cummins como “brown mass”, uma expressão que tem potencial para soar ainda mais ofensiva. No entanto, para além das metáforas infelizes da nota de Cummins, a afirmação mais problemática da escritora é a de que ela atua como uma “ponte”, contando uma história que ninguém mais contou ou quer contar.
Toda a campanha de marketing em torno de American Dirt apresenta este romance fortemente sensacionalista e alterizante como uma grande inovação que “humaniza” imigrantes aos olhos do público-alvo imaginado pela editora. Os membros de tal público, supomos, se enquadram no curioso nós de Cummins, esse coletivo que vê uma “massa morena”. De fato, parece que para alguns a empatia só é possibilitada quando filtrada pela escrita de Cummins. Entre os elogios que precedem a obra no livro, temos Tracy Chevalier dizendo que American Dirt a “fez entender melhor por que alguém deixaria o lar que conhece e ama para sobreviver”. A afirmação é curiosíssima, já que a própria frase da romancista parece conter o entendimento que ela diz ter-lhe sido conferido pela leitura do livro de Cummins: para sobreviver. E aqui chegamos enfim ao grande problema: os autores “mais morenos” que Cummins invoca em sua nota, os quais ela diz ter desejado como autores do livro que ela escreveu, os que supostamente se omitiram e não contaram a história dos migrantes, vêm escrevendo sobre o tema há décadas.
Escritores de origem latina escrevem sobre imigração e diáspora nos mais diversos campos e ficção é certamente um em que essa escrita é mais manifesta. No entanto, é raro que tais escritores recebam a atenção, a estratégia de marketing e o financiamento que Cummins, uma autora branca com uma concepção problemática da migração e uma construção ainda mais questionável da cultura mexicana, recebeu, apagando, ao longo de sua campanha de divulgação, mais uma vez, todo um acervo escrito pelos autores que ela supostamente gostaria de ver recebendo destaque.
Notavelmente, nenhum desses autores contou com o impulso oferecido por uma seleção para o Clube do Livro da Oprah. Embora a carta não tenha sido respondida até o momento da publicação deste artigo, outra celebridade já retirou seu selo de aprovação de American Dirt. Salma Hayek, premiada atriz mexicana, se desculpou publicamente por elogiar e recomendar o livro e confessou tê-lo feito sem ler a obra. Quantas celebridades não fazem o mesmo? Isso nos diz algo sobre a estrutura do mercado editorial contemporâneo e do problema da influencer culture não apenas atravessar, mas, por vezes, dominar os rumos das conversas sobre literatura nas redes sociais.
American Dirt: uma resenha
Quando me propus a ler American Dirt, decidi que seria mais sensato adiar a leitura das resenhas – elogiosas e negativas – acerca do romance. Diante da agressiva campanha de marketing em torno da obra e da reação intensa nas redes sociais, algumas informações acabaram chegando. No entanto, ainda assim foi impressionante, após terminar a leitura, perceber que muitas das minhas impressões já haviam sido expressas em resenhas: a fetichização do sofrimento, o uso da white gaze, alterização e um flagrante desconhecimento das noções culturais mais básicas sobre o México (leia mais sobre isso clicando aqui) foram aspectos que identifiquei repetidas vezes ao longo da leitura e que vi apontados nas resenhas do romance. David J. Schmidt resume bem a questão. Cummins parece saber muito pouco sobre o México:
Parte disso [das críticas] diz respeito ao fato de o romance ser mal escrito; outros se opõem ao fato de que a Cummins não fala espanhol e parece ter pouco conhecimento do país que ela descreve.
Mas a questão central aqui não é que um autor não mexicano tenha escrito um livro sobre o México. É que a indústria editorial apoiou um escritor anglo desinformado, em vez de um escritor/a latino ou latina bem informado. Isso é ultrajante, manifestamente injusto e deve deixar qualquer pessoa sensata enjoada.
Como leitora, minha primeira preocupação era avaliar se, apesar de problemático, American Dirt era um livro bem-executado, se, ao menos, me ofereceria uma boa experiência de leitura. Infelizmente, não foi o caso. Escrito em inglês, o romance salpica diversas expressões em espanhol de forma mais ou menos aleatória ao longo da narrativa. Se a intenção de Cummins ao empregar essa técnica era conferir um senso de autenticidade, o efeito foi o oposto. A prática, cansativa e sem propósito claro por si só, tem resultados embaraçosos.
Em uma passagem, Lydia diz: “I’m sorry to disappoint you, but we are alive. Estamos vivos.”. Levando-se em consideração que o livro se passa predominantemente no México e é povoado por personagens hispanohablantes, não devemos presumir que todo o diálogo que é escrito em inglês, por ser a língua da autora, estaria transcorrendo em espanhol? O trecho transcrito acima é, de fato, parte de uma conversa entre dois personagens mexicanos. Que função a repetição da frase em espanhol desempenha? Ela teria dito estamos vivos duas vezes? Há uma diferença de tom? Qual é a função desses estilhaços de texto em espanhol?
Para além disso, a prática demonstra a falta de conhecimento da autora em relação à língua e seu conhecimento superficial da cultura que se propõe a retratar. Em uma passagem, por exemplo, um personagem cumprimenta Luca, o filho de Lydia, dizendo ¿Qué onda, güey?. Embora tanto “qué onda” quando “güey/wey” figurem entre as expressões coloquiais mexicanas mais comuns, conhecidas inclusive nos Estados Unidos por conta do intenso intercâmbio cultural, Luca não entende a expressão que, por alguma razão, Cummins descreve como sendo exclusiva do norte do México:
Luca não sabe exatamente o que “qué onda, güey” significa porque ele não conhece ninguém que fale assim, mas ele entende o bastante para saber que é um cumprimento amistoso, então responde dizendo olá.
Que Cummins não conheça a expressão só não é mais inacreditável que o fato de que nenhum revisor tenha apontado absurdo da frase. Qualquer um que tenha assistido uma telenovela no idioma original, um filme mexicano ou presenciado qualquer situação conversacional informal reconheceria a expressão. Na minha geração, fãs da novela Rebelde (Televisa) se lembrarão desta exata frase – um cumprimento informal – nas vozes dos alunos do Elite Way School, uma escola frequentada predominantemente por adolescentes de classe alta residentes na Cidade do México, a mais de 3000 quilômetros de Tijuana, a cidade de onde veio o menino que usou a expressão em American Dirt.
Para além da falta de conhecimento de Cummins, que perturbou a experiência de leitura e a suspensão de descrença até mesmo de uma pessoa com limitado conhecimento da cultura e da geografia do México, outro problema foi que, embora todas as peças de publicidade da Flatiron anunciassem o livro como a page-turner thriller (adiemos aqui a discussão da escolha problemática de usar o termo thriller para categorizar um livro com essa temática), tive muita dificuldade para me manter ao menos entretida pela história.
No fim das contas, o grande problema de American Dirt, de um ponto de vista puramente estético e que ignore todas as implicações éticas em torno da publicação, é que o livro simplesmente não é bem-escrito. Jeanine Cummins poderia se esquivar das questões problemáticas em torno do romance se tivesse partido de uma premissa firme executada com competência. No entanto, Cummins falha em diversos níveis na construção da sua narrativa e o romance não impressiona.
Delineando os problemas de American Dirt
ALERTA: DESTE PONTO EM DIANTE A RESENHA CONTÉM SPOILERS DE AMERICAN DIRT
American Dirt narra a fuga de Lydia, dona de uma livraria em Acapulco, e de seu filho Luca, de apenas 8 anos de idade, após 16 membros da família deles serem assassinados em um ato de retaliação executado pelo cartel sobre o qual o marido de Lydia – também assassinado –, o jornalista Sébastian vinha escrevendo. O romance começa no dia do massacre e acompanha os dias que se seguem. Durante esse período, mãe e filho tentam escapar – sempre por um fio – do alcance do chefe do cartel Los Jardineros. Acompanhamos passo-a-passo a jornada da dupla conforme eles alcançam cada um dos objetivos que Lydia delineia: deixar Acapulco, deixar o estado de Guerrero, rumar para o norte utilizando o trem de carga conhecido como La Bestia como meio de transporte, atravessar a fronteira e encontrar familiares que residem em Denver.
O romance é composto por uma sucessão de eventos traumáticos descritos em minúcias – justificando a classificação de trauma-porn melodrama – por um narrador que sensacionaliza o sofrimento dos personagens que acompanha.
Em uma cena em que uma criança passa mal durante a travessia para os Estados Unidos, a morte do menino de apenas 10 anos é descrita quase como um espetáculo. O uso de uma palavra em espanhol no meio do parágrafo reforça a sensação de que Cummins alteriza e se distancia de seus personagens, os colocando atrás de uma vidraça que assegura a distância entre eles e o público leitor que ela alveja alcançar. A estrutura narrativa se assemelha à de programas produzidos pelo Discovery Channel em que um voice-over descreve imagens do cotidiano de animais selvagens. A descrição é sádica, violenta e, portanto, justifica um alerta de gatilho:
Ele tosse e resmunga, balança a cabeça e se apoia nos joelhos, e o sol bate na parte de trás da sua cabeça. Seu cabelo preto come e engole o calor do sol, sua cabeça está tão quente, seu pescoço está queimando e Beto quer fazer uma piada. Ele tenta pensar em uma piada que possa fazer sem usar palavras, sem gastar um fôlego precioso. Isso dói. É tão assustador. Uma enorme pressão no peito, gigante1. Um elefante, um hipopótamo, os enormes pneus de um caminhão Mack esmagando o lixo no el dompe. Isso esmaga seus pulmões. Uma avalanche de lixo. Ele não consegue respirar. Não consigo respirar. Não há piadas.
A que propósito serve essa descrição? Cummins provavelmente diria que quer “humanizar” a “massa morena” que ela descreve em sua nota ao final do livro. Assim, retornamos à questão da carta a Oprah: quem é esse nós que precisa de uma descrição gráfica de uma criança se contorcendo de dor até a morte para conseguir enxergá-la como um ser humano?
Para além disso, a construção dos personagens é rasa e, por vezes, caricata em um nível cômico. O grande vilão de American Dirt é Javier, conhecido como La Lechuza – A Coruja – o chefe do cartel Los Jardineros. Ele é apresentado como um narcotraficante assassino que tem um gosto particular pela literatura e pela ópera. Além disso, Javier é eloquente e gentil. Compõe poemas ruins que compartilha apenas com sua filha, Marta, e com Lydia. A soma dessas características transparece como a tentativa de Cummins de construir um personagem complexo (e Lydia observa diversas vezes o quão difícil é conciliar as contradições de Javier), mas de forma isolada ou em conjunto, as duas faces de La Lechuza – o assassino torturador e o intelectual bem-educado – são baseadas, como a maior parte dos aspectos de American Dirt, em clichês já explorados à exaustão.
Por alguma razão, Javier um dia surge na livraria de Lydia em Acapulco e compra alguns dos livros favoritos dela. Os dois começam a conversar e formam uma ligação profunda. Algumas vezes, é sugerido que Lydia teria se apaixonado por ele. O interesse de Javier fica claro desde o início. Surrealmente, ela só descobre que Javier e La Lechuza são a mesma pessoa quando se depara com as fotos que ilustrariam o artigo que o marido estava escrevendo sobre o líder do cartel.
Quando Lydia sobrevive ao ataque que mata toda a sua família, “La Lechuza” aparentemente segue a perseguindo de forma implacável. Ela sempre escapa por um tris. No entanto, quando os dois têm um embate hollywoodiano mais adiante no livro, é sugerido que ele nunca teve intenção de matá-la. A escrita do diálogo dos dois é desajeitada e estranhamente sentimental. Não apenas as motivações e os objetivos de Javier permanecem confusos, mas nunca realmente chegamos perto de algum tipo de complexidade psicológica para Lydia.
Outros problemas de American Dirt incluem erros de continuidade. Em dado ponto, Lydia diz que ensinou inglês ao filho até o ponto em que o conhecimento dele ultrapassou o dela e eles passaram a estudar juntos. Mais adiante, no entanto, Lydia diz ser fluente em inglês já que a língua havia sido sua minor na faculdade, anos antes do filho nascer. Cummins também usa metáforas desastrosas, como uma passagem em que Luca, ao olhar para o rosto inchado de Lydia (após chorar pelas mortes dos familiares) diz que parecia que “sete pescadores havia lançado seus anzóis nela e começado a puxar ao mesmo tempo”.
Os Estados Unidos como solução
Por fim, em American Dirt, os Estados Unidos surgem como a solução mágica para os problemas de Lydia e de Luca. A divisão binária entre México como Estado falido e tomado pelo crime organizado, pela miséria e pela precariedade e Estados Unidos como a terra da lei e da ordem é estabelecida no início do romance, reiterada diversas vezes pelos próprios personagens e confirmada pelo desfecho.
Comentários sobre a problemática política imigratória do país surgem na voz de personagens secundárias e são relatadas brevemente, não descritas de forma gráfica ou vivenciadas pelos personagens em momento algum. Notas sobre o quão precária a vida seria no México surgem não apenas no enredo, mas são reiteradas nas vozes dos personagens repetidamente.
No capítulo sete, o narrador observa que “eles raramente saem de Acapulco agora, e Lydia, como a maioria das mulheres nos estados mais precários do México, nunca viaja sozinha de carro”. Mais adiante, ao refletir sobre a atuação dos cartéis em Acapulco, Lydia conclui que “ninguém pode ficar em um lugar brutal e manchado de sangue”. No capítulo onze, Lydia considera que é “incomum em uma cultura em que filhos adultos cuidam dos pais idosos que sua mãe tenha uma conta poupança” (!) o que nos faz questionar como idosos sequer recebem suas aposentadorias no México imaginado por Cummins.
O livro também é permeado por longos trechos em que o narrador comenta sobre a criminalidade no México e a impossibilidade prática de se viver no país. Em um longo parágrafo no capítulo quinze, é dito que o México não é mais seguro para jornalistas “nem mesmo que a Síria ou o Iraque”, arrastando os dois outros países para o argumento problemático da autora. É interessante que a Arábia Saudita – ditadura que é vista como nação amiga pelo governo estadunidense – não figure entre as nações citadas por Cummins como perigosas para jornalistas, omissão que soa especialmente flagrante após o caso Jamal Khashoggi. Qual exatamente é o argumento por trás dessas descrições? Outros países latinos também não escapam do olhar alterizante de Cummins. Em uma cidade hondurenha “A UTI está sempre ocupada, mas não tão superlotada quanto o necrotério.”
No capítulo 26, a oposição México x EUA (e a superioridade estadunidense) é sintetizada em uma cena em que um menino mexicano olha para as duas bandeiras, uma de cada lado da fronteira, e afirma que o grande problema é que a bandeira estadunidense estava sempre brilhante e sempre hasteada mais alto, enquanto a mexicana estava tão desbotada “que o vermelho havia virado cor-de-rosa”.
“É como se não tivéssemos orgulho, como se nem nos importássemos”, diz Beto. “Quer dizer, por que a bandeira deles tem que ser tão mais alta? Quão difícil seria conseguir um mastro mais alto?”
Lydia olha para cima e vê que ele está certo. A bandeira mexicana aqui parece esfarrapada e desbotada pelo sol, e a vermelha, branca e azul aparece imaculada atrás dela, como se tivesse sido substituída naquela manhã.
Como nada mais é dito acerca da questão, não fica muito claro exatamente que função essa passagem cumpre no romance se não reiterar a noção que Beto sugere, de que a superioridade prática estadunidense é simbolizada pelo orgulho de uma bandeira reluzente.
Essa noção é reiterada nos capítulos seguintes, em que Lydia conclui, sobre Javier, que “Somente em el norte seu poder será diminuído. Em el norte, onde não há impunidade para homens violentos.” Um pouco mais adiante, quando é informada acerca da atuação de grupos de vigilantes voluntários na fronteira, formados por cidadãos estadunidenses, Lydia novamente surpreende o leitor com a total ausência de postura crítica em sua visão dos Estados Unidos enquanto mexicana: “Ela pensou que em el norte, ela precisaria se preocupar mais com a Patrulha de Fronteira, com a possibilidade de Luca ser tirado dela e menos com homens aleatórios armados que executam seus próprios decretos”.
No mesmo capítulo, Luca se decepciona com estradas estadunidenses que se assemelham a estradas mexicanas em sua precariedade: “A estrada não se assemelha ao que Luca imaginou que encontraria nos EUA. Ele achava que todas as estradas aqui seriam largas como uma avenida, pavimentadas com perfeição e alinhadas com vitrines fluorescentes. Essa estrada é como a pior estrada mexicana que ele já viu.”. A decepção do menino não é absoluta, no entanto: “Eles estão nos Estados Unidos agora, e tudo já parece um cenário de filme, mas com animais do deserto reais que podem matá-lo, como escorpiões, cascavéis e leões da montanha. Luca experimenta um pântano de confusão formidável e nauseante.”
Nos Estados Unidos, o maior incômodo de Lydia e Luca é a ausência de um visto, mas eles são rapidamente acolhidos, ela consegue um emprego e o menino se sobressai imediatamente na escola – o trauma desaparece instantaneamente e a diretora do colégio onde ele estuda se oferece para apresentar Lydia a um advogado que vai ajudá-la a regularizar sua situação. É curioso até mesmo que Lydia tenha conseguido matricular Luca em um colégio, considerando-se que ela deixou Acapulco às pressas, sem nenhuma documentação do menino (razão pela qual eles não puderam simplesmente pegar um avião para o norte do país). No entanto, todos os seus problemas antigos parecem ter ficado do outro lado da fronteira. Estamos a dois passos do American Dream que Cummins diz ter problematizado ao longo do processo de pesquisa para o livro.
Mesmo diante de todos os problemas de American Dirt, não há como auferir as intenções de Jeanine Cummins ao escrever a obra. Há diversas passagens preocupantes para além daquelas traduzidas e transcritas ao longo deste texto. Em um trecho inserido de forma desajeitada na narrativa, em um diálogo que de forma alguma se conecta com o enredo, um personagem secundário chamado Nicolás alerta Lydia, sugerindo que ela passe longe de uma cidade pequena no Arizona conhecida pelos extremos aos quais chegaram a xenofobia e o racismo de parte de sua população. Com a intenção de culpar imigrantes pelo crime, um homem assassinou uma criança de nove anos e seu pai. O plano e o crime foram descobertos e expostos.
O que se segue é um longo parágrafo em que o narrador critica a postura de Nicolás por não compreender “como a vergonha desse assassinato ainda pesa na pequena cidade”, defendendo, de certa forma, o direito a redenção de assassinos xenófobos cujo arrependimento parece ter se originado exclusivamente do fato de terem sido pegos:
Mas como Nicolás é um jovem liberal e politizado que nunca esteve em Arivaca, ele não observou como a vergonha desse assassinato ainda pesa na pequena cidade. Ele nunca esteve perto de uma tragédia tão bárbara, nunca experimentou um choque tão primitivo que o sacode até o âmago de suas crenças. Em suma, Nicolás nunca teve uma mudança fundamental de postura. Portanto, ele não sabe como a terceira lei de Newton pode ressoar em um lugar como este: para toda maldade, existe uma possibilidade igual e oposta de redenção.
Falando sobre seu personagem na série da Netflix You, Penn Badgley questionou a popularidade de Joe Goldberg, dizendo que a grande questão que a série e a recepção da mesma nos colocam é até onde estamos dispostos a ir para perdoar homens brancos maus. É um clichê e um problema histórico no sistema judiciário estadunidense a defesa do direito a redenção – ignorando a extensão do crime – para homens brancos e a condenação instantânea de quaisquer membros de minorias, independentemente de idade ou circunstância.
Estranhamente, uma pessoa que se propõe como uma “ponte” e certamente como uma aliada, aplica um esforço considerável na tentativa de criar oportunidades de redenção para tais figuras. É impossível saber qual exatamente foi a intenção de Jeanine Cummins ao escrever American Dirt, mas como diz a carta de 138 escritores a Oprah Winfrey, “boas intenções não produzem boa literatura, particularmente quando a execução é tão falha e o resultado é tão prejudicial”.
Que American Dirt seja um romance medíocre em tantos níveis e que tenha sido cobiçado pelo mercado editorial ao ponto de Cummins receber um pagamento antecipado de mais de um milhão de dólares é uma lição sobre privilégio por si só. Toda a narrativa do romance é contaminada pelo olhar preconceituoso (ainda que este preconceito seja não-intencional) de uma mulher estadunidense que julga seu país superior àquele que retrata de forma rasa e distorcida.
A reação da autora às críticas negativas também é decepcionante. Junto com sua editora, ela simplifica as reações afirmando que são críticas ligadas exclusivamente à sua etnia. American Dirt não oferece uma abordagem nova ou uma mudança de perspectiva. American Dirt é uma obra que mede duas culturas e professa uma delas como superior enquanto sugere que a única solução para os muitos e complexos problemas que o México enfrenta é um processo migratório que o próprio país de destino procura inibir de todas as formas possíveis. É difícil entender de que lado, exatamente, Cummins se coloca ao escrever esse livro que reitera velhos estereótipos e se apresenta como novidade. No fim das contas, American Dirt é mais um capítulo de uma longa história de colonização cultural.
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Publicado por
Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.
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