Você já deve ter ouvido muitos comentários sobre Pobres Criaturas. O novo filme de Yorgos Lanthimos é imperdível não apenas pela performance dos atores, mas também pela história que levanta reflexões sobre gênero e tensões políticas globais. Para quem ainda não assistiu, convido a adentrar no mundo de Bella Baxter. Não é necessário ter conhecimento prévio do livro de Alasdair Gray, basta estar aberto para explorar uma história incomum que certamente provocará reflexões, mantendo um humor bem dosado do início ao fim.
Os brasileiros foram presenteados no primeiro dia de fevereiro com o lançamento de Pobres Criaturas nos cinemas, cerca de 5 meses após a estreia no hemisfério norte. Durante esse período, o filme recebeu uma chuva de elogios de veículos jornalísticos. Kyle Buchman do The New York Times deixou as pessoas curiosas ao escrever que Emma Stone e Yorgos tinham nada e ao mesmo tempo tudo em comum. Wendy Ide do The Guardian descreveu Pobres Criaturas como um carnaval de estranheza infinitamente fascinante. As performances de Emma Stone e Mark Ruffalo foram destacadas pelo The New Yorker como estando entre as melhores de 2023. O filme foi aclamado como o melhor de 2023 pelo Los Angeles Times, Variety, The Guardian e IndieWire. Como era de se esperar, no dia 23 de janeiro, Pobres Criaturas foi indicado ao Oscar em 11 categorias, incluindo “Melhor Filme”. Para aqueles que acompanharam a expectativa desde o segundo semestre de 2023, a ansiedade era grande para assistir ao filme tão elogiado e finalmente fazer parte deste fenômeno cinematográfico.
A inspiração por trás do filme veio de Poor Things (1992), o romance do escritor britânico Alasdair Gray. O diretor Yorgos Lanthimos soube aproveitar bem a história de Gray e torná-la ainda mais instigante. A personagem de Emma Stone, que está grávida, tenta tirar a própria vida ao pular da Tower Bridge em Londres. No entanto, o seu corpo é resgatado pelo Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe) que a traz de volta de uma maneira totalmente inesperada. Ele transplanta o cérebro do bebê para o corpo da mãe e depois a reanima. O experimento do cientista é batizado de Bella Baxter, mesmo sobrenome do médico que a criou.
Poor Things (…) nunca foi seriamente considerado como material óbvio para um filme antes do diretor Yorgos Lanthimos entrar em cena. É um livro curioso e labiríntico, narrado por pelo menos quatro narradores de vários graus de confiabilidade, documentando uma visão única da mitologia de Frankenstein: o amadurecimento de Bella Baxter, uma jovem impulsionada pelo cérebro de seu próprio bebê que aprende sobre feminismo, justiça social e costumes sexuais na Glasgow vitoriana. Lanthimos corresponde às sensibilidades de [Alasdair] Gray como um primo próximo. (John Nugent do Empire)
Não demora muito para que o telespectador fique encantado com Bella, sensação essa que também é dividida por muita indignação e frustração devido à falta de transparência do doutor e do estudante Max (Ramy Youssef) que se recusam a revelar o que aconteceu com Bella. Ela desconhece todos os eventos da sua vida pregressa.
Leva bastante tempo para que Bella e os telespectadores finalmente tenham a resposta de quem foi Bella antes do experimento de Godwin. Até lá, ela embarca em uma viagem de navio com o advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), passando por Lisboa, Alexandria e, por fim, Paris.
No começo da trama, a maioria das cenas são em preto e branco, filmadas predominantemente a partir de uma lente olho de peixe. Depois que Bella viaja com o advogado, as cores ficam extremamente vivas e coloridas. A iluminação e técnica da câmera em Pobres Criaturas são utilizadas com maestria. Enquanto o filme estava em preto e branco, Bella estava presa na casa de “God”, como ela costuma o chamar, já que o nome do doutor começa com deus, além dela enxergá-lo como deus por tê-la criado. Depois que sai da casa de Godwin, ela finalmente descobre o mundo, explorando tanto os aspectos positivos quanto negativos.
Toda a beleza que Bella vislumbra em Lisboa a deixa encantada, e com razão, as cores vivas deixam tudo muito magnético, muito diferente de como era antes com o seu “deus”. Mas tudo se torna ainda mais interessante porque estamos conhecendo o mundo na perspectiva da jovem e adulta Bella. Em Lisboa, ela fica hipnotizada pelo fado, canção popular em Portugal. E é quase impossível não se encantar junto com ela.
Já em Alexandria, Bella descobre a dura realidade do mundo. Se em Lisboa não faltava beleza, em Alexandria ela se depara com uma imensa pobreza. São contrastes que formam a identidade de Bella e onde conhecemos as suas primeiras opiniões filosóficas. A caminho da cidade egípcia, a protagonista conhece Martha von Kurtzroc (Hanna Schygulla) e Harry Astley (Jerrod Carmichael), juntos eles são como uma espécie de guia para Bella. Na companhia dos dois, Bella amadurece e se desenvolve intelectualmente. Agora ela passa a conversar em frases completas, mostrando que o seu desenvolvimento está acontecendo.
Love and Friendship do estadunidense Ralph Waldo Emerson é apresentado a Bella e ela começa a desenvolver opiniões críticas sobre o mundo. Enquanto isso, Harry é responsável por fazê-la repensar as ideias que estão fervilhando em seu pensamento, mostrando novas perspectivas que ela ainda não é capaz de compreender. Até que seu novo colega faz Bella enxergar com os próprios olhos a vida cruel que muitos jovens e crianças passam. A cena de Bella se conectando com essa realidade é uma das mais emocionantes e reflexivas.
Já em Paris, Bella e Duncan enfrentam o seu ponto mais baixo. Ela perceberá que o trabalho sexual é a chave para pagar as contas. Agora mais crítica, Bella tenta aplicar as suas ideias socialistas e feministas no bordel de Swiney (Kathryn Hunter). O interessante em Paris é a relação que Bella começa a desenvolver com Toinette (Suzy Bemba), que a faz questionar alguns mistérios sobre a sua vida antes de ser Bella.
Pobres Criaturas é uma obra incrível e que vale a pena ser assistida. Ainda que o resenhista Manohla Dargis do The New York Times tenha definido o filme como uma “humanização de um monstro” e com “ideias tênues e progressivamente monótono”, defendo que a obra de Lanthimos é um filme completo e que cumpre aquilo que se propõe a desenvolver. Como dito pelo resenhista Geoffrey Macnab do The Independent, Bella Baxter é alguém por quem você não vai conseguir deixar de torcer, do início ao fim. Talvez o desfecho do filme não agrade a todos, mas ainda assim é satisfatório.
Ainda que Bella seja uma personagem ingênua e infantilizada no começo da história, ela jamais deixa de fazer aquilo que tem vontade. Ela recusa ser vitimizada e não cede aos homens que tentam tirar vantagem dela. Apesar do desconforto que o filme naturalmente traz, Pobres Criaturas causa um impacto muito reflexivo a quem assiste. Ainda que Bella tenha tido um início de história terrível, é comovente embarcar nas suas aventuras e crescer junto com ela.
Publicado por
Graduando em Letras: Inglês/Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Curador de conteúdo do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil, tendo atuado anteriormente como bolsista entre o período de 2022-2024, sob orientação da Profa. Dra. Marcela Santos Brigida. Oferece aulas de monitoria de Cultura Inglesa no Instituto de Letras da UERJ, sob orientação da Profa. Patricia Marouvo. Co-organizou o livro Dickens in Brazil: A Tale of Two Cities in Students Voices (Kellynch Press, 2024). Pesquisador da obra da escritora estadunidense Raven Leilani e tem interesse no romance contemporâneo em língua inglesa.