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Resenha: Persuasão (Netflix, 2022)Leitura em 26 minutos

Resenha de Persuasão da Netflix. Na imagem, Dakota Johnson usa um vestido cinza e um colar estilo Henrietta Maria.

Escrevendo a respeito da recepção crítica de obras de Jane Austen no cinema, Sidney Gottlieb reclamou em 2002 que muitas adaptações literárias vinham sendo abordadas – não apenas por leitores, mas também por críticos profissionais – como heritage films sem valor estético para além de seus estatutos de adaptações. Isto é, o discurso se limitava a aferir até que ponto as obras audiovisuais eram fiéis às obras literárias, de que maneira os roteiros tratavam o texto adaptado e a caracterização dos personagens. Isto, Gottlieb argumentou, não era um problema por si só, mas sim a falta de atenção aos elementos e técnicas cinematográficos dos filmes em questão. “Precisamos suplementar e complementar a abordagem literária dos filmes de Austen, concentrando-nos em como eles criam efeitos visuais e emocionais poderosos, estabelecem padrões estruturais e formais complexos e evocam códigos e contextos cinematográficos que nos afastam do reino da ‘autêntica adaptação literária’”, ela argumentou. Para ilustrar seu argumento, a crítica produziu uma análise extensiva das técnicas exploradas por Roger Mitchell na adaptação de Persuasão lançada pela BBC em 1995. Esta obra, Gottlieb garante, remota tanto a Jane Austen e tradições literárias quanto a “uma tradição cada vez mais rica de técnicas e textos cinematográficos”.

Toda adaptação é uma interpretação particular de um ou mais artistas. No audiovisual, contamos com a colaboração não apenas de roteiristas e diretores, mas também de atores, diretores de elenco, figurinistas, diretores e compositores de trilha sonora e outros membros da equipe de produção. Orgulho e Preconceito de Joe Wright é tão famoso pela cena da chuva e pelos sorrisos tímidos de Matthew MacFadyen quanto pela trilha sonora de Dario Marianelli.

Para além do individual e do coletivo, adaptações são sempre informadas pelas sensibilidades do momento em que são produzidas. Toda leitura é localizada e a influência do contemporâneo não se limita a produções que se propõem a modernizar elementos da narrativa. Se leitores por vezes são acusados de rejeitar estas últimas, um breve histórico derruba este argumento rapidamente. Após um boom entre os anos 1990 e início dos anos 2000, com produções aclamadas como As patricinhas de Beverly Hills (1995) de Amy Heckerling, Romeu + Julieta (1996) de Baz Luhrmann, 10 coisas que eu odeio em você (1999) de Gil Junger, e O diário de Bridget Jones (2001) de Sharon Maguire introduzindo uma geração a obras canônicas por meio de releituras ousadas, nos últimos anos produções modernizantes voltaram a ganhar espaço nos circuitos do cinema arthouse e no mainstream. Tais adaptações sempre geram repercussão. Inegavelmente, ainda assim, não é o elemento de modernidade que gera críticas da maioria dos leitores e expectadores. Modernizar não é sinônimo de entregar uma produção de qualidade e algumas iniciativas são mais bem-sucedidas do que outras.

Enquanto A Vida Extraordinária de David Copperfield (2019) de Armando Ianucci traz uma releitura brilhantemente dickensiana em sua abordagem enquanto se afasta da estrutura do texto do autor em vários momentos, o esforço de Martin Owen com Twist (2021) não foi tão feliz. Estrelado por Dev Patel, A lenda do cavaleiro verde (2021) preserva o tom do melancólico poema medieval com diversos pontos de afastamento do enredo da obra adaptada. Mulherzinhas (2019) de Greta Gerwig se apresenta como uma releitura do romance de Louisa May Alcott que explora as ambiguidades das personagens explorando a dimensão metaficcional do filme. Emma (2020) de Autumn de Wilde amplifica o humor da protagonista e da narrativa em uma produção que lê Austen com atenção enquanto reafirma uma assinatura autoral para o filme. Sanditon imagina os desdobramentos do último romance (não concluído) de Austen com humor e considerável liberdade sem alienar leitores. Por que, então, a adaptação de Persuasão da Netflix dirigida por Carrie Cracknell não se alinha com as produções bem-sucedidas em seus projetos de modernização?

Analisando Persuasão (2022) enquanto filme

Persuasão (2022): Anne, Louisa, Henrietta e Mary olham pela janela.

A primeira questão a responder, retornando a Gottlieb, é: Persuasão é um bom filme? Poderíamos argumentar que esta é uma questão subjetiva. Após estrear com uma média de 27% no “tomatômetro” do Rotten Tomatoes com onze resenhas de críticos cadastradas, o filme da estreante no cinema Carrie Cracknell subiu para 36% com 78 resenhas cadastradas (a média entre o público geral enquanto escrevo este texto é mais alta, 60%) ao longo da semana que precedeu o lançamento da produção na plataforma da Netflix. A avaliação baixa também é refletida nas resenhas publicadas em veículos como The Guardian (1 & 2), The Independent, EW, Mashable,  Penguin e DiscussingFilm.net.

Algumas peças jornalísticas criticaram leitores de Jane Austen que supostamente não estão abertos a adaptações que modernizam a obra da autora. A diretora Carrie Cracknell se aborreceu com as críticas ao trailer, pedindo que estas fossem articuladas somente após o lançamento do filme. Já a atriz que protagonizou o filme, Dakota Johnson, pediu que a produção fosse encarada como um “cover”, sugerindo que basta que aqueles que não gostaram do trailer não assistam. No entanto, como a já veterana Johnson certamente sabe, críticas virão: é parte do processo de recepção. Ademais, será mesmo que são apenas os leitores de Jane Austen que estão articulando críticas ao filme? Como Mary Ann O’Farrell observou (2009), o janeite é um alvo fácil: na época da estreia de Orgulho e Preconceito (2005) foi Joe Wright que responsabilizou as fãs nada razoáveis de Austen pelas críticas a algumas escolhas pouco ortodoxas que fez em seu filme. Será que se trata da mesma situação aqui? Leitores conservadores que não aceitam que sua Jane Austen está recebendo uma leitura diferente (algo que Cracknell também sugeriu)? Persuasão de Cracknell dialoga bem, afinal de contas, com uma tradição cinematográfica mais ampla como Gottlieb defendeu que o filme de Mitchell fez?

Seguindo o conselho de Cracknell e aguardando a estreia do filme, primeiro em alguns cinemas e festivais, e agora na Netflix, temos a oportunidade de comparar leituras, elogios e críticas não apenas de fãs dos envolvidos na produção e de leitores de Jane Austen, mas do público geral e da crítica especializada. O veredito segue não sendo exatamente positivo. É verdade que encontrar elogios a Persuasão de Cracknell não é difícil: basta fazer uma busca por termos ligados ao filme no Twitter. Para além do volume altíssimo de críticas, há não poucos admiradores. O filme certamente encontrará ainda mais: ele é feito para dialogar com o nosso momento (curiosamente, uma série de entrevistadores perguntaram a Dakota Johnson se podemos associar o enredo de Persuasão ao contexto do colapso de Roe vs Wade) e, mais especificamente, com nossas formas de produzir conteúdo na internet. Como já foi observado em outras resenhas, trata-se de um filme feito sob medida para viralizar que certamente o fará. A questão é: ele se sustentará para além deste momento e desta realização?

Persuasão de Cracknell abre e se encerra com uma cena de Anne e Wentworth sentados na grama, indubitavelmente um casal, unidos e alinhados. Vemos os dois se beijando antes mesmo da primeira fala ser proferida por Anne: I almost got married once. A isso se segue um resumo do que os separou até que encontremos Anne no presente. Now I’m single and thriving. I spend my time drinking fine wines, enjoying warm baths, and lying face down on my bed. Embora defensores do filme tenham sugerido que a adaptação focalizou as sensibilidades da Geração Z para atrair jovens leitores, é mais preciso dizer que o filme aparentemente projeta e parodia comportamentos – ou uma certa percepção destes – e jargões de millennialsdo Twitter. Essa leitura é apoiada pelas palavras da própria diretora do filme:

A ideia com a modernização da linguagem foi tornar a psicologia dos personagens um pouco mais acessível para um público mais jovem e um novo público para Jane Austen. O livro é um romance lindo, mas bastante formal; estávamos procurando maneiras de abrir isso e atrair um novo grupo de pessoas para a história. Eu acho que isso permite um humor brilhante e lança alguns dos personagens da vida de Anne como personagens narcisistas e, em nossa versão, quase um pouco millennial em suas auto obsessões. Eu realmente gosto dessa brincadeira e desse tipo de frescor. – Carrie Cracknell

Considerando que os millennials mais jovens têm 26 anos em 2022 e os mais velhos passam dos quarenta, as ambições de Cracknell parecem um tanto deslocadas. É evidente que a Geração Z está incluída nos planos como público-alvo, mas a premissa de que mudar a linguagem do romance – facilitar, como ela sugere – é necessário para que o público jovem compreenda a premissa do enredo é, no mínimo, de uma condescendência míope para alguém que até aqui havia trabalhado exclusivamente no teatro. Se a linguagem do teatro shakespeariano é mantida viva por professores, artistas e divulgadores culturais há mais de quatro séculos (vale aqui conferir iniciativas do Globe Theatre e o trabalho que Akala fez para popularizar Shakespeare no contemporâneo), é curiosa a ideia de que Jane Austen, morta há pouco mais de 200 anos, precisaria de simplificações. Para além disso, a “psicologia” dos personagens não é de forma alguma comunicada por um filme que reescreve a maioria dos pontos de tensão do romance e descarta tantos outros.

Dakota Johnson como Anne Elliot com geleia em cima da boca.

Enquanto filme, Persuasão não sustenta seu próprio chiste como Emma de Autumn de Wilde faz. Não é fácil precisar em que a “formalidade” do romance que incomodou Cracknell consiste. No entanto, considerando as muitas tentativas de comicidade do filme, pode-se supor que ela se refere à melancolia e ao desconforto psicológico de Anne Elliot, cujo monólogo interior acompanhamos de perto. O romance é, de fato, engraçado em diversas ocasiões, especialmente no que envolve a falta de self-awareness de Sir Walter Elliot e Elizabeth. Vemos Anne por trás de sua polidez via discurso indireto livre e o aborrecimento está ali: com a falta de bom senso do pai, com a perturbação causada por Mrs. Musgrove, com as atenções indesejadas de Mr. Elliot.

Como tal sutileza não parece ter sido compreendida pelos roteiristas e pela equipe criativa por trás do filme (que já promete adaptar outras obras de Austen), o que recebemos é uma comédia pastelão: Anne se sujando de comida, Anne rolando na terra, Anne gritando o nome de Wentworth na janela e, pasme, se sujando outra vez. A protagonista acusa Mary de ser uma narcisista, mas algumas cenas depois declara na mesa de jantar, diante da família Musgrove e de Wentworth que Charles a pediu em casamento antes de cortejar a irmã. Como ela própria declara no início do filme, Anne Elliot está sempre bebendo ou carregando uma garrafa de vinho para algum lado.

Construções confusas no filme de Carrie Cracknell

As tentativas desajeitadas de evitar qualquer tipo de rivalidade feminina no filme colocam Anne como grande amiga das garotas Musgrove, porém mais adiante no filme Mary declara que a irmã não tem amigos. Anne e Louisa são muito próximas. No início Miss Musgrove tenta juntar Wentworth e a protagonista, mas Louisa se apaixona espontaneamente (após uma cena bizarra em que Anne toca piano e todos rodopiam enlouquecidos pela sala) e pede permissão de Anne para flertar com ele. No entanto, todo o clímax do filme depende de um mal-entendido que se baseia em uma não-comunicação impensável para amigas tão próximas. Por que Louisa, recuperada de seu acidente, não escreveu para Anne para dizer que estava melhor e que havia se apaixonado por Benwick? No romance elas não mais se comunicam após Lyme porque jamais foram próximas. Louisa e Henrietta preferiam Anne a Mary como esposa para Charles por uma questão de conveniência pessoal: Anne faria mais e perturbaria menos. Mary ocupa espaço demais.

Louisa, destituída de sua vaidade impetuosa, também não parece ter qualquer razão específica para saltar duas vezes: o acidente parece gratuito. É neste sentido que falar de Persuasão de Cracknell sem falar de Persuasão de Austen se torna impossível. Toda a estrutura do filme é baseada em um blefe que não se sustenta: podemos apresentar o enredo de Jane Austen sem recorrer às palavras de Jane Austen ou mesmo… ao enredo de Jane Austen. O resultado é um filme tedioso com uma protagonista hipócrita: tudo aquilo que esta Anne constante e duramente critica em sua família, em certo ponto declarando que a melhor coisa que Mr. Elliot fez foi “humilhá-los” com o incidente de Elizabeth, acaba se revelando uma característica própria. Para contraste, ao ter acesso, via Mrs. Smith, a uma carta em que Elliot debocha do baronete, Anne de Austen “não conseguiu superar de imediato o choque e a humilhação de ver aquelas palavras usadas para se referir a seu pai” (trad. Fernanda Abreu, editora Zahar).

Persuasão de Cracknell foi anunciado pela Netflix como “baseado na história de amor atemporal de Jane Austen” e a proposta de que o filme procura modernizar Austen tem sua base na forma como a produção empunha com orgulho seus muitos anacronismos. Wentworth fez uma “playlist” para Anne. Ela declara que não confia em Mr. Elliot porque ele “é um dez, eu nunca confio em um dez”. Toda vez que uma carta – inclusive a carta – aparece fica evidente que se trata de uma folha de papel sulfite A4 dobrada ao meio em uma era em que papel ainda era fabricado a partir de trapos de algodão. Em dado ponto, Anne debocha de sua irmã respondendo em italiano a tudo que Mary diz, mas aparentemente a protagonista também vê o futuro: ela pede “um cappuccino, por favor”. Mary diz que é an empath, e, na já infame frase do trailer, Anne declara que ela e Wentworth are worse than exes; we’re friends. Figurinos, penteados e maquiagem também oscilam entre o historicamente apropriado e o absurdo frequentemente.

Anne Elliot quebra a quarta parede: Carrie Cracknell declarou que esta foi uma solução criativa para que o espectador tivesse acesso ao monólogo interior de Anne. No entanto, considerando que pouco há de Austen no monólogo do filme, um texto que raramente coincide com o livro, o dispositivo parece um tanto dispensável, especialmente na maneira como é executado. Capitaneada pelo sucesso de Fleabag, a quebra de quarta parede se tornou um lugar comum em produções recentes. O dispositivo pode ser brilhantemente executado e enriquecer a história: foi o que Phoebe Waller-Bridge fez em sua série, baseada em um monólogo escrito e estrelado por ela. Neste filme, no entanto, o uso é excessivo e cansativo, além de amplificar as características mais desagradáveis desta versão particular de Anne Elliot. É verdade que estamos falando daquela que é provavelmente a protagonista mais introvertida – e observadora – de Jane Austen. A Anne austeniana, ao contrário da Anne cracknelliana, pensa antes de falar e é precisa em suas atitudes porque mesmo em sua melancolia ela sustenta o peso de suas decisões e escolhas. A nova Anne não assume responsabilidade alguma, optando por culpar sua família e Lady Russell.

Diretores que adaptaram Persuasão anteriormente trabalharam à sua própria maneira o silêncio de Anne, provando que ela não precisa ser reconcebida para fazer sentido no cinema. Como Gottlieb observou, na adaptação de Mitchell as expressões de Amanda Root e os olhares que ela lança para o Wentworth de Ciarán Hinds comunicam, com sutileza, ansiedades e oscilações. É verdade que muito é deixado para a interpretação do espectador, mas não é esta uma qualidade? A câmera, argumenta Gottlieb, desempenha o papel do narrador austeniano. Já no filme de Adrian Shergold (2007), Anne tem um diário.

Que Persuasão de Cracknell se proponha a adaptar (e que não haja dúvida de que o filme reivindica o lugar de adaptação – isso já foi declarado pela diretora) uma “história de amor atemporal” já nos diz algo: por muito tempo os romances de Jane Austen foram reduzidos a seus arcos românticos. Entre os mitos mais famosos a respeito da autora, assinalam Claudia Johnson e Clara Tuite, está a ideia de que a romancista não escreveu sobre a guerra. Foi assim que Austen entrou para o cânone, afinal, como uma autora que escrevia sobre as vidas da pequena nobreza, seus casamentos e afetos. Como Raymond Williams apontou em O campo e a cidade (1973), no entanto, nessas construções, cada uma delas particular em forma e abordagem, habitam algumas das principais preocupações sociais e políticas da virada do século XVIII para o XIX. Despolitizar Austen é uma ação extremamente conservadora e, no entanto, é exatamente isso que o roteiro de Alice Winslow e Don Bass faz, talvez por desconhecimento, talvez por ansiedade cultural em relação ao contemporâneo.

Como alguns já apontaram, Persuasão de 2022 é inapto em suas tentativas de inserir falas que tornem personagens facilmente identificáveis como feministas: Louisa, a melhor amiga de Anne ao longo dos primeiros 40 minutos de filme e depois desaparecida, fala mais ou menos meia dúzia de frases soltas para indicar que estamos assistindo a uma adaptação feminista de Austen. Em uma interação igualmente estranha Wentworth declara para Anne que ele sente muito que o mundo lhe negue um lugar no mundo público: ele acha que ela seria uma ótima almirante (!). Entre tantas tentativas, no entanto, Mrs. Croft, “uma figura que Mary Wollstonecraft certamente teria aprovado” e que “mostra como as mulheres podem ser contentes quando estão à vontade com o mundo e confiantes em suas próprias habilidades como ‘criaturas racionais’” (Fiona Stafford, 2009) tem pouquíssimo espaço no filme.  

Persuasão de Cracknell: uma história de amor atemporal?

Persuasão (2022) funciona, então, como “história de amor atemporal”? É difícil entender a dinâmica de Wentworth e Anne nesta obra. Veja bem, no livro Anne está resignada a não poder reivindicar qualquer atenção, cortesia ou renovação do afeto de Frederick porque ela está sempre consciente do fato de que foi ela quem o rejeitou. Ela assume a responsabilidade porque, ao final do romance, reivindicará ter estado correta em sua postura aos 19 anos porque ela deveria respeitar a opinião de uma pessoa que, com a morte de sua mãe e ausência do pai, ocupava o lugar dos dois. Por isso, Anne observa à distância, resignada e infeliz enquanto Wentworth flerta com Louisa e Henrietta. Ela só ousa nutrir esperanças quando é informada, pelo Almirante Croft, que Benwick e Louisa estão noivos.

A relação dos protagonistas é fria e distante, ao ponto de ninguém nem sequer imaginar alinhar os dois romanticamente. Wentworth mantém a distância tanto por ressentimento quanto por não saber, por sua vez, que Anne jamais o esqueceu. Neste filme, no entanto, não há tensão. Desta forma, é difícil entender o que, de fato, mantém o casal afastado nesta versão particular de uma história de amor atemporal. Já na cena do (re)encontro o interesse dos dois fica patente. Louisa tenta “aproximar” os dois e Anne se recusa a se sentar do lado de Wentworth em um jantar por razões difíceis de compreender. Trata-se de uma mulher de 27 anos, não de uma garota: a maturidade de Anne é sem igual na obra austeniana. A Anne de Cracknell é extrovertida e até grosseira às vezes, mas nesta ocasião ela simplesmente não se senta perto de Wentworth, circula a mesa a esmo e no fim das contas acaba dizendo que Charles a pediu em casamento antes.

Frederick se ofende com a desfeita: ele declara que Louisa é um upgrade em relação “à pessoa que não quis se sentar” ao seu lado. Depois disso as relações ficam estremecidas, mas em uma cena na praia – original do filme – o casal protagonista declara seus sentimentos, mas Anne e Wentworth decidem ser amigos. É difícil compreender as motivações dos personagens a essa altura, mas o arco romântico se torna de fato bizarro com a chegada de Mr. Eliot, por quem Anne parece se interessar genuinamente. Após uma série de mal-entendidos em Bath baseados na noção equivocada de que Wentworth estaria noivo de Louisa e não Benwick – que incluem Mr. Eliot convidando Wentworth para o casamento com Anne e, na sequência, a pedindo em casamento – o protagonista escreve a carta, lida por Dakota Johnson, mais uma vez, olhando para câmera. Anne corre atrás de Wentworth e encerramos o filme onde começamos, no capim. Trata-se de um enredo mal executado que se sustenta em um melodrama alheio ao livro. É entretenimento interessante? Não exatamente, mas, como já foi observado, certamente encontrará seu público. Não é algo que difira das muitas produções genéricas com a etiqueta da Netflix. É um bom filme? Não.

Persuasão (2022) enquanto adaptação

Ainda assim, resta uma questão a ser encarada. Defensores do filme avant la première pedem que leitores de Jane Austen não reclamem, não assistam ou simplesmente não se expressem. Assistam aos filmes já produzidos, este não é para vocês. Para quem é, podemos perguntar? O nome de Jane Austen atrairá leitores de Jane Austen da mesma maneira que os de Elena Ferrante, Sally Rooney ou Charles Dickens atrairão os seus. Podemos falar do filme enquanto filme, mas a discussão que tange quão bem-sucedidos os envolvidos na produção foram em trabalhar com a obra cujo nome é usado e cujo enredo é… desdobrado faz parte do processo de recepção. Os comentários nesse sentido são frequentemente etaristas e excludentes. Leitores de Jane Austen irão, obviamente, assistir e se manifestar. É evidente que usar no trailer as falas mais abertamente anacrônicas e pouco características da personalidade dos personagens do livro, especialmente de Anne, foi uma estratégia de marketing para atrair engajamento para o lançamento, ainda que por meio da indignação e críticas negativas. A reação faz parte.

Isso não significa dizer que Persuasão não tenha acertos. A ideia do coelho de estimação de Anne poderia ter sido mais feliz se o pet não fosse esquecido no meio da narrativa e se o vínculo tivesse recebido alguma atenção para além de Dakota Johnson segurar o animal no colo em algumas cenas. Richard E. Grant está excelente como Sir Walter Elliot. Embora colourblind casting seja uma prática muito debatida, sem consenso, por pesquisadores negros (veja ROYSTER, Francesca. The Chicago Shakespeare Theater’s Rose Rage. Chicago: The Chicago Shakespeare Theater, 2003; WILSON, August. The Ground on Which I Stand. Callalloo, Baltimore, v. 20, n. 3, p. 493-503, 1997.), foi um prazer ver algumas das escolhas da direção de elenco: Nikki Amuka-Bird, embora recebendo pouco espaço, estava excelente como Lady Russell. Ben Bailey Smith traz um Charles mais carismático do que sua contrapartida literária e Henry Golding trabalha bem com a construção bizarra de Mr. Elliot que recebeu. No entanto, é importante ressaltar que, ao contrário do que algumas resenhas equivocadas já afirmaram, esta não é a primeira adaptação austeniana com um elenco que não é composto exclusivamente de pessoas brancas. Para além do fato de que Sanditon está no ar atualmente com Georgiana como uma das protagonistas, há outros exemplos de colourblind casting que precedem ambas as produções.

Uma adaptação mais conservadora do que o livro

Por trás de todo o confete e anacronismos que declaram esta uma leitura moderna de Austen, no entanto, conscientemente ou não, esta é provavelmente a adaptação mais conservadora de Persuasão, um argumento defendido por Brandon Taylor. Em seu foco na história de amor atemporal e no shock value de Anne Elliot urinando atrás de uma árvore enquanto escuta a conversa de Wentworth e Louisa, Persuasão de Cracknell exclui completamente o foco principal do romance de Austen: a dimensão de classe. Que relações e tensões de classe são o centro do romance é ponto pacificado pela crítica especializada. A discussão em geral gira em torno do alinhamento da própria Austen por trás de sua narrativa, algo a que jamais teremos acesso.

Radical ou conservadora, no entanto, Austen está discutindo classe – como fez tantas vezes – mas em Persuasão ela se alinha à modernidade, a uma Inglaterra burguesa que se consolida. A crítica ao ócio de Sir Walter Elliot e de Elizabeth não é ressentimento: a vaidade dos dois vem de aspirações aristocráticas – embora Sir Walter seja tão somente um baronete – que são reafirmadas pela procura de renovar as relações com Lady Dalrymple. Não se trata apenas de interagir com uma parente nobre, mas sim de tornar a família Elliot relevante em Bath. No filme é dito que Lady Dalrymple sequer conhece os Elliot. Este não é o caso no romance: as relações estavam estremecidas por desídia pessoal de uma maneira que espelha o próprio afastamento de Mr. Elliot. Anne suspeita dele por mudar seu comportamento subitamente, não porque ela o considera atraente demais para se interessar por ela ou por sua família. A suspeita não é infundada e aqui precisamos discutir o corte que de fato desata qualquer conexão narrativa com Austen: Mrs. Smith.

Enquanto Mr. Elliot e Elizabeth perseguem convites de Lady Dalrymple, Anne vai visitar Mrs. Smith, uma amiga de escola que vive humildemente em Bath. Sir Walter fica indignado que Anne prefira a companhia de uma ninguém, mas ela é firme em manter seu compromisso, um contraste crucial. Mais adiante, Mrs. Smith será a pessoa que revelará a Anne o verdadeiro caráter de Mr. Elliot, um antigo amigo de seu falecido marido. Embora tenha tomado dinheiro emprestado de Mr. Smith diversas vezes antes de se tornar rico com um casamento mercenário, Mr. Elliot se recusa a ajudar a viúva, arruinada financeiramente pela prodigalidade que definiu parte da vida do casal, a vender uma propriedade de Smith situada na Índias Ocidentais. Ela revela que, embora rico e não precisando de Kellynch Hall para nada, Mr. Elliot se torna obcecado pela ideia de herdar o título de Sir Walter. Para Mrs. Smith, William de fato se interessou por Anne, mas decide se aproximar da família para tentar impedir uma união entre o patriarca da família e Mrs. Clay, que termina o romance como amante de Mr. Elliot (não sua esposa).

As tensões de classe são navegadas no romance também pela relação de Anne com Kellynch: a ideia de se casar com Mr. Elliot, apresentada por Lady Russel, quase seduz Anne quando a amiga defende que a protagonista poderia ocupar o mesmo lugar que sua mãe ocupou, visitando as pessoas da paróquia e administrando a propriedade de forma responsável. A absoluta falta de interesse de Anne pelo primo a impede, no entanto. Sinceridade de sentimentos se sobrepõe a interesses mercenários: Anne se recusa a se trair e a ser persuadida novamente. Da mesma maneira que ela rejeitou o aceitável Charles Musgrove aos 22 anos, ela não poderia aceitar qualquer homem que não Wentworth.

O romance é permeado por tensões de classe: Mary é a única a verbalizar de forma pouco polida que não quer ver a família Musgrove estreitando laços com os Hayter por meio do casamento de Henrietta e Charles (temos três no romance; Hayter – rebatizado no filme, Musgrove e Smith), mas o desconforto de um casamento talvez desvantajoso paira até que as expectativas de Hayter se tornem mais certas e estáveis. Para além disso, o romance demarca a diferença de classe que existe mesmo entre os Elliot e os Musgrove e, mais radicalmente, entre a landed gentry e a nova classe dos oficiais da Marinha que ascenderam – para o horror de Sir Walter – a partir do trabalho e do serviço a favor do Império Britânico. A mobilidade social é parte de uma mitologia burguesa da qual este baronete não toma parte.

A narrativa de Austen é radical no sentido em que a ponderada Anne se alinha à Marinha, que é pensada como uma comunidade da qual ela poderia ter feito parte caso tivesse aceitado Wentworth. Ela sofre de um arrependimento profundo ao observar e, gradualmente, provar um pouco da vida que poderia ter levado. É importante ressaltar que Anne não exalta apenas os membros ricos da Marinha: Harville é um de seus amigos queridos e sua felicidade não é menosprezada pelo narrador em relação à dos prósperos Crofts. A cena em que Anne revisita Kellynch após a locação e reconhece que não poderia afirmar a superioridade da administração de sua família em relação à do Almirante e de sua senhora é crucial para o seu desenvolvimento e sua percepção de mundo. Dois irmãos de Austen fizeram parte da Marinha Britânica, seu conhecimento a respeito ao discutir esta comunidade não era desprezível. Excluir absolutamente todas as tensões de classe, ou, pior, reduzi-las a um capricho de Mary, é abrir mão de uma estrutura que poderia, por sua vez, render discussões ricas em um projeto de ler Austen a partir do contemporâneo. No entanto, Bass, Winslow e Cracknell optam por uma comédia romântica sem um centro de gravidade.

A respeito do romance, por fim, vale lembrar que Wentworth é provavelmente o protagonista austeniano que precisa passar pela curva de aprendizado mais íngreme da obra madura de Jane Austen, ultrapassando até mesmo Mr. Darcy. Enquanto um homem declaradamente orgulhoso de suas realizações e de sua self reliance, ele precisa conhecer e se apaixonar por Anne novamente, retraçar os próprios passos equivocados, se desculpar e, enfim, declarar a própria vulnerabilidade. O Wentworth do filme de Cracknell declara para Anne reiteradamente o quanto está interessado e disponível para ela. Na viagem a Uppercross para dar a notícia do acidente de Louisa aos seus pais (quase totalmente ausentes nesta adaptação), ele declara para Anne que o interesse da jovem era unilateral. Tanto é verbalizado, sem pausa, que resta pouco para a imaginação e pouco espaço para desenvolvimento. Anne e Frederick são exatamente os mesmos e terminam exatamente no mesmo lugar onde começaram: a metáfora da cena inicial ao menos é apta.

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Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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