A edição de O retrato de Dorian Gray publicada recentemente pela Darkside Books foi organizada por Enéias Tavares, traduzida por Paulo Cecconi e anotada por Luiz Gasparelli Jr. Trata-se de um projeto de curadoria muito bonito. O editor faz uma escolha consciente ao selecionar o texto da novela publicada por Wilde na Lippincott’s Magazine em 1890, e não o romance de 1891, e a sustenta explicando que aquela foi “justamente a mais criticada e a usada no tribunal para condenar seu autor” (p. 20). O texto é contextualizado com a inclusão de cartas de Wilde a periódicos britânicos que atacaram a obra, assim como as resenhas e respostas agressivas dos editores das publicações.
Vale lembrar que a novela foi bem-recebida nos Estados Unidos por leitores e resenhistas, amplamente lida como uma narrativa de cunho moral (GILLESPIE, 2020 p. xii). Gillespie ressalta com isso que os cortes e edições de Stoddart demonstraram seu conhecimento das expectativas do público estadunidense, mas não daquelas do outro lado do Atlântico, onde a narrativa também foi serializada.
Dorian Gray como “um livro venenoso”
O texto de apresentação de Enéias Tavares, “A biografia de um livro venenoso” propõe Dorian Gray como tal, partindo tanto da imagem do chamado “livro venenoso” que Lord Henry empresta a Dorian no livro, quanto de “Pen, Pencil, And Poison” (1889), ensaio biográfico satírico de Wilde sobre Thomas Griffiths Wainewright, um crítico de arte e envenenador (texto também incluído na edição). Desta forma, O retrato de Dorian Gray é sugerido como um “veneno literário”: “Wilde comparou o livro que Henry empresta a Dorian, o livro dentro do livro, a um veneno que teria contaminado a percepção de seu protagonista, dando-se ou não conta de que seu próprio livro produziria efeitos similares” (p. 22)
“A biografia” delineia o contexto das publicações originais da novela e do romance e suas respectivas recepções, passando pela instrumentalização da obra em dois dos três julgamentos que Wilde enfrentaria ao longo da década de 1890. Cabe uma observação quanto ao processo de revisão de Wilde para a publicação da obra em livro em 1891, no entanto: “O editor George Lock exigiu uma série de mudanças – somadas àquelas já realizadas por Stoddart no manuscrito original” (p. 16).
Como Michael Patrick Gillespie aponta, apesar de defender implacavelmente sua obra, as críticas negativas à novela tiveram um impacto nas revisões realizadas por Wilde, para além de qualquer pressão editorial direta por parte da Ward, Lock & Company. O romance “mantém seus elementos narrativos essenciais. Porém, Wilde fez modificações que apresentam algumas de suas ideias mais desafiadoras de forma menos direta e ele incluiu um Prefácio que abordava por meio de declarações aforísticas as acusações de imoralidade direcionadas à novela” (GILLESPIE, 2020, p. xii).
A revisão do texto de The Picture of Dorian Gray para publicação em livro também traz modificações estruturais, com a inclusão e quebra de capítulos, além da adição de personagens e subtramas. Um detalhe pontual interessante é a alteração de última hora de “Ashton” para “Hubbard” como nome do emoldurador que visita Dorian. Wilde havia telegrafado ao editor avisando que seria necessário fazer uma “modificação urgente”: a razão ilustra tanto o humor wildeano quanto aponta para sua relação ambígua com afiliações e valores de classe: “Ashton é o nome de um cavalheiro”, enquanto “Hubbard cheira particularmente a comerciante”.
Como Robert Mighall ressalta, “Oscar Wilde, artista, irlandês, zombador dandíaco dos padrões de sua sociedade, era também um ‘cavalheiro’ e estava perfeitamente ciente do que isso significava, e defendia seu direito a este título” (MIGHALL, 2008, p. x). Essa ambiguidade essencial entre subversão e pertencimento foi um dos elementos que levou Wilde a processar o Marquês de Queensberry por difamação e, incidentalmente, ativado as engrenagens judiciais que levariam aos seus próprios processos.
Mighall também comenta sobre o meticuloso processo de revisão dos relacionamentos masculinos na obra por Wilde, o situando como uma reação à campanha de difamação promovida pela imprensa britânica:
De fato, um dos sinais mais reveladores de que Wilde não foi suficientemente circunspecto em sua descrição dos relacionamentos masculinos em seu romance foi a natureza de muitas das revisões que ele fez quando Dorian Gray foi publicado como livro em 1891. Wilde já havia feito uma série de mudanças no processo de transferência da obra do manuscrito original para o datilografado, cortando ou modificando o material ainda mais explícito: portanto, ele pode não ter ficado inteiramente surpreso com algumas das críticas mais diretas. Quando revisou o livro para a forma de volume, ele foi mais longe. Na versão de 1890, havia um grau muito maior de intimidade física entre os principais personagens masculinos. No Capítulo I, quando Basil Hallward conta a Lord Henry sobre seu lindo novo amigo, Henry coloca ‘sua mão sobre o ombro [de Basil]’. Wilde optou por omitir esse gesto aparentemente inocente ou inconsequente em 1891. Talvez ele tenha achado que tinha ido longe demais e não podia correr o risco de ser muito explícito ou ambíguo sobre essas relações. Assim, apesar de afirmar desafiadoramente que ‘ninguém sabe quais são os pecados de Dorian Gray’ em uma carta respondendo às insinuações do Scots Observer sobre o escândalo da rua Cleveland, ele escolheu dissipar um pouco do mistério em torno das atividades de Dorian quando revisou o romance no ano seguinte. (MIGHALL, 2008, p. xvi)
No entanto, como vimos, as modificações não se limitaram a essa esfera, mas contemplaram inclusões e um compromisso mais linear com o retrato enquanto alegoria da cultura materialista à qual Gray se submete, algo verificável em uma leitura comparativa entre as duas versões da cena final.
Como Gillespie ressalta, a novela de 1890 e o romance de 1891 foram as únicas versões “preparadas por e acompanhadas até a publicação pelo autor,” com “a versão revisada de 1891 representando as intenções finais de Wilde” (GILLESPIE, 2020, p. xv).
A edição de O retrato de Dorian Gray publicada pela Darkside Books é uma bela realização, uma ótima adição às bibliotecas de leitores de Oscar Wilde. O livro traz não apenas uma boa tradução da novela de 1890 como um considerável aparato contextual, incluindo, além dos elementos já citados no texto, poemas selecionados, ilustrações, fotografias do autor e uma breve biografia.
Agradeço à editora pelo envio de um exemplar de cortesia.
Referências
MIGHALL, Robert. Introduction. In: WILDE, Oscar. The Picture of Dorian Gray. London: Penguin Classics, 2008. (1891)
GILLESPIE, Michael Patrick (Ed.); WILDE, Oscar. The Picture of Dorian Gray. London: W. W. Norton & Co, 2020. (1891)
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2021. (1890)
Publicado por
Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.