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Resenha: Now We Shall Be Entirely Free de Andrew Miller

Now We Shall Be Entirely Free de Andrew Miller em edição brochura

Now We Shall Be Entirely Free de Andrew Miller

Now We Shall Be Entirely Free
Andrew Miller (Sceptre, 2018)
Gênero: Romance histórico

Curiosamente pouco conhecido fora do Reino Unido, Andrew Miller vem publicando romances pela Sceptre desde 1997. Em 2011, o autor ganhou o Costa Award por Pure. Seu oitavo romance, Now We Shall Be Entirely Free, foi publicado em agosto 2018 e eleito livro de ficção do mês pela Waterstones em junho de 2019, ocasião em que a obra ganhou uma nova edição em brochura. Um mestre da ficção histórica, Miller se reafirma em seu novo livro como um grande contador de histórias.

Now We Shall Be Entirely Free se inicia quando o Capitão John Lacroix, é levado para casa em Portsmouth quase morto. A narrativa se desenrola ao longo do ano de 1809 após a malsucedida campanha de Sir John Moore na Espanha durante as Guerras Napoleônicas. À medida em que Lacroix se recupera aos cuidados de sua criada, Nelly, o oficial decide que não irá retornar à guerra.

John guarda um segredo traumático que vai sendo sugerido e desvelado ao longo da narrativa. Após a visita de um enviado do exército, Lacroix toma ciência que as forças armadas não poderão, de forma alguma, abrir mão do seu retorno. Sentindo-se esmagado pelas circunstâncias e pela sua incapacidade e resolução em não retornar, John decide deixar Portsmouth e assumir a posição de desertor.

Anunciando apenas que precisa de tempo para se recuperar dos problemas de saúde que lhe afligiram, Lacroix entra em contato com sua irmã Lucy em Bristol, explicando que gostaria de passar um tempo nas Hébridas. Com o auxílio do marido dela, William Swann, Lacroix faz contato com um capitão que concorda em leva-lo junto à sua tripulação até Glasgow. Assim, o protagonista embarca no navio Jenny com os poucos pertences que reunira antes de deixar Portsmouth e o violino de seu pai. Parcialmente surdo após sua atuação na Espanha, o ex-capitão ainda mantém vivo o seu gosto pela música.

Embora tente deixar o trauma do combate para trás, a guerra parece sempre perseguir e alcançar John Lacroix. Uma série de infortúnios pontuam suas aventuras. Durante sua jornada para Glasgow, oficiais embarcam no Jenny em busca de outro desertor, um membro da tripulação. John ajuda os homens a esconder a presença do amigo e, em troca, o capitão Browne nada diz sobre o fato de seu passageiro ter se apresentado como John Lovall aos militares. Em Glasgow, Lacroix é atacado por uma gangue de ladrões e perde a maior parte de seus pertences e dinheiro.

Os capítulos que acompanham a jornada de John Lacroix/Lovall rumo às Hébridas são intercalados com outros que narram a viagem de uma dupla enviada em caráter não-oficial por autoridades do exército britânico para assassiná-lo.

Durante a caótica campanha em território espanhol, um grupo de soldados britânicos ataca uma pequena vila, roubando pertences, queimando casas e a igreja local, assassinando os homens e estuprando as mulheres. Relatos sobre o ocorrido chegam às autoridades espanholas e britânicas e, a fim de proteger a aliança entre os dois países, as testemunhas são ouvidas na tentativa de identificar o oficial responsável pelo ataque.

Supostamente escondido com os habitantes da vila em uma colina próxima, o Cabo Calley, um soldado britânico, alega identificar um retrato de Lacroix como o líder do grupo. Acompanhando por Medina, um oficial da cavalaria espanhola, ele é incumbido com a tarefa de assassinar Lacroix, refazendo cada passo do protagonista com exatidão inquietante e deixando um rastro de violência e sadismo por onde passa.

Sem saber que está sendo perseguido, Lacroix/Lovall escapa por um fio de seus algozes diversas vezes ao longo do romance. Miller estabelece um ritmo eletrizante para seu jogo de gato e rato.

Após diversas viagens, desventuras, experiências com ópio e com a “nova polícia” de Glasgow, Lacroix finalmente chega a uma ilha em que pode se estabelecer de forma mais ou menos definitiva. Em uma das muitas cenas absurdas e cômicas do romance, ele desembarca perto da costa montado em uma vaca, sendo bem recebido pelos habitantes locais. John se torna hóspede na casa dos Frend.

Composta por três irmãos, Cornelius (que proporciona boa parte da comicidade do romance), Jane e Emily, a família vive em uma espécie de “comunidade” – interpretada por alguns resenhistas como uma seita – com regras de conduta bem diferentes do padrão da Inglaterra georgiana. Aguardando o retorno de um homem identificado somente como Thorpe – pai do bebê que Jane espera – os irmãos abrigam John e ele logo passa a integrar o dia-a-dia peculiar da casa, entre cantorias e escavações arqueológicas. Ainda ignorando o fato de que Cally e Medina estão no seu encalço, Lacroix cria uma rotina agradável com os amigos.

Um dos pontos altos da escrita de Miller transparece na construção de Emily, a irmã caçula dos Frend, por quem John se sente quase que instantaneamente atraído. Com uma personalidade que remete às heroínas de Jane Austen – espirituosa, dada a andanças pela ilha, com opiniões fortes sobre tudo e todos que a cercam e plenamente consciente da precariedade da sua situação (uma mulher já passando da idade ideal para o casamento, vivendo sob a proteção do irmão excêntrico) –, Emily convive com o agravamento gradual de um problema de visão. Ela sofre de glaucoma, é mais tarde sugerido.

Emily e John desenvolvem um elo imediato intensificado pela quase-surdez de um e pela quase-cegueira da outra. As particularidades da forma como os dois se comunicam tornam possível uma intimidade não observada entre ninguém mais ao longo do romance.

Conforme a visão de Emily se deteriora, urge a necessidade de um diagnóstico. Com seus irmãos incapacitados de lhe acompanhar, ela parte para Glasgow acompanhada de John para conversar com um especialista. A proximidade da jornada intensifica e complica a relação da dupla. Alguns dos melhores diálogos do romance se dão nesta seção e embora Lacroix seja um homem sem nenhuma grande qualidade ou marca que o distinga de seus pares, o leitor – como Emily – é estranha e inegavelmente atraído pelo protagonista, de forma que se torna impossível não torcer por ele conforme o inimigo se aproxima.

Embora muitos dos eventos que compõem o enredo de Now We Shall Be Entirely Free, tomados individualmente, soem pouco verossímeis, o conjunto dos pequenos absurdos e idiossincrasias compõem um todo satisfatório. Do horror da guerra e da morte, jornadas marítimas, delírios de ópio, violência e insanidade e encontros com figuras dúbias a noites ao relento ou em hospedarias pouco recomendáveis, comunidades alternativas, avanços da medicina e a formação de laços de amor e amizade, o conjunto da obra torna a ficção histórica de Miller – com todas as licenças que toma – cativante à sua própria maneira.

Uma ficção histórica repleta de ação, suspense, humor e toques de absurdo, Now We Shall Be Entirely Free proporciona uma experiência de leitura agradável para fins de entretenimento sem deixar de oferecer questões interessantes para discussão. Longe de ser um romance livre de defeitos, o livro de Andrew Miller é ainda assim uma obra recomendável a qualquer um interessado em thrillers, romances de guerra, ficção histórica britânica e romances improváveis. O humor caracteristicamente inglês do autor também permeia e enriquece essa história que, após tocar em tantas questões e flertar com tantos gêneros, retorna ao seu belíssimo título para reafirmar ao leitor o seu grande tema: a liberdade e todos os obstáculos que ousamos ou não enfrentar para chegar até ela.

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