Klara and the Sun é o oitavo romance de Kazuo Ishiguro, publicado seis anos após seu último livro, The Buried Giant. A obra é situada nos Estados Unidos em um futuro não especificado e, como é típico em obras de Ishiguro, oferece uma experiência de leitura que se fia fortemente na potência de sugestão do subtexto.
Klara é um androide. Ela e seus pares são vendidos em lojas como “amigos artificiais” para crianças e adolescentes que, percebemos conforme a narrativa se desenrola, vivem em constante isolamento. As poucas interações sociais são planejadas, agendadas e acontecem em ambientes controlados, com a presença dos pais em cômodos subjacentes. A educação acontece à distância por meio de videochamadas e mesmo as interações familiares parecem algo rígidas, as manifestações de carinho de alguma forma incomunicáveis.
Seguimos a narrativa pela perspectiva de Klara, que logo descobrimos ser uma Amiga Artificial particularmente sensível e observadora. Ela desenvolve uma relação de carinho com Josie, a adolescente de quem deve cuidar e se torna obcecada pela ideia de salvar a menina. No mundo de Klara and the Sun, manipulação genética é uma realidade e, somos informados, uma necessidade para aqueles que desejem ser socialmente aceitos.
Há apenas uma faculdade que recebe uma pequena quantidade de jovens que não passaram pelo processo de manipulação a cada ano. No entanto, para além dos custos, os riscos são altos: a irmã de Josie morreu em decorrência de uma doença causada pelo procedimento e ela corre o risco de sofrer o mesmo destino.
Acompanhamos as reações e as inseguranças daqueles mais próximos a Josie diante da possibilidade de perdê-la. Há um debate ético e filosófico delineado de forma muito sensível por Ishiguro ao longo da narrativa que interroga a subjetividade das nossas identidades. Em certo ponto, é afirmado que não há nada tão particular em Josie que a tecnologia não possa replicar. Seus pais se dividem entre se apegar a essa possibilidade para fugir da reincidência do trauma e se revoltar diante da banalização da experiência humana.
Klara, curiosamente uma materialização física desse discurso tecnológico asséptico e impessoal, oferece uma terceira via ao se recusar a aceitar a iminência do inevitável. Movida a energia solar, a androide desenvolve uma relação com o astro que ultrapassa a mera alimentação.
Exposta na vitrine da loja certo dia, Klara pensa testemunhar a morte de um morador de rua e de seu cachorro, imóveis na calçada e ignorados pelos transeuntes. A experiência proporciona uma forte emoção que ela tem dificuldade de codificar. A empatia pela dupla é intensificada quando o sol ilumina os dois amigos que, revigorados pelo calor, voltam a se mover após horas parados. A cena alivia Klara. O incidente a leva a desenvolver uma relação quase religiosa com o Sol, se dirigindo diretamente a ele em algo como orações. Klara pede a salvação de Josie em troca de uma promessa à qual ela se apega mesmo quando todos desistem de acreditar na recuperação da menina.
Klara and the Sun foi escrito antes da pandemia, mas dialoga fortemente com o nosso momento, sugerindo de forma inquietante que já experienciamos em nossa própria realidade aquilo que até pouco tempo chamávamos na literatura de distopia. O livro tece um comentário extremamente sensível sobre o que constitui o tecido da experiência e da natureza humana e sobre os limites entre o razoável e o absurdo. Klara é sem sombra de dúvidas uma das minhas personagens favoritas dos últimos tempos. Gostaria muito de ver Ishiguro premiado por essa obra.