Em entrevista ao Radio Times, Frances O’Connor, diretora e roteirista de Emily, declarou que seu filme não pretende se apresentar como um biopic, ou seja, como uma obra biográfica sobre a autora de Wuthering Heights. Assim resta a questão: tendo a obra se distanciado de basicamente tudo que se sabe a respeito da vida de Emily Brontë e de sua família, Emily ao menos executa de forma satisfatória a visão de sua criadora?
Excluída a problemática em torno das figuras históricas abordadas, o que resta é um enredo romântico sustentado por clichês: uma jovem criativa e excêntrica não é compreendida pelas irmãs e pelo pai. Uma rivalidade já existente entre ela e a irmã mais velha é acirrada pela chegada de um pároco atraente. A protagonista e o jovem se envolvem e, em paralelo, um vínculo afetivo com subtons incestuosos se estabelece entre ela e o irmão, que por sua vez também tem um relacionamento difícil com o resto da família. O pároco rompe o romance subitamente. Em um rompante de fanatismo religioso declara que existe algo “ímpio” na mulher com quem dormiu diversas vezes. Ela quase enlouquece. Após a crise, a protagonista decide deixá-lo e ir para a Bélgica com a irmã. Em uma reviravolta cruel, o pároco entrega uma carta ao irmão da protagonista, mas o documento não é entregue. Ela parte, o pároco morre de cólera. À beira da morte, o irmão finalmente entrega a carta para ela. Inspirada pelos eventos tempestuosos, a protagonista escreve seu grande romance quase de uma vez só! A obra se torna um grande sucesso e ela finalmente conquista a admiração do pai, origem das disputas com a irmã mais velha. A protagonista também morre. A irmã mais velha, por sua vez, é inspirada por algumas palavras ditas no leito de morte a escrever seu próprio romance.
Emily (2022): a proposta da diretora
Frances O’Connor não pretendia fazer um filme biográfico. O tema do filme, ela declarou, é: “Como você encontra sua voz quando não consegue se ver refletido em nenhum lugar?” e “como você, enquanto artista, se conecta com quem realmente é quando quem você realmente é não é realmente apreciado?”. Considerando o ponto de partida, parece incongruente que O’Connor tenha escolhido Emily Brontë como sua protagonista.
Emily Brontë se mudou com a família para Haworth antes mesmo de completar 2 anos de idade. Em Emily Brontë (1978), sua biografia da romancista, Winifred Gérin observa que de todas as influências ao longo da vida de Emily, “a paisagem de Haworth teve o maior efeito em estimular sua mente e moldar seu caráter” (1978, p. 1-2). Ela também foi uma criança muito amada: o nascimento de Anne em 1820 marcou o início da amizade que desaguaria em uma parceria criativa que se estenderia ao longo de toda a vida. Ao longo do período em que Maria Brontë, a mãe das crianças, esteve doente, Charlotte e Branwell receberam os cuidados das irmãs mais velhas, Maria e Elizabeth. Emily e Anne, por sua vez, receberam as atenções de Sarah Garrs, criada do Presbitério. Com a morte da mãe e a chegada da austera tia Branwell, os irmãos se uniram em um processo que Gérin chamou de “interdependência,” expressa não apenas em seus afetos, mas em suas vidas criativas, incentivadas pelo Reverendo Patrick Brontë desde muito cedo.
Diferente do homem rígido, austero e distante do filme de O’Connor, Patrick tinha uma relação próxima com os filhos. Um acadêmico ostensivamente autodidata e grande defensor da educação básica universal, Patrick era um pai afetuoso, se assoberbado pelas tarefas de sua paróquia, e sempre incentivou os empreendimentos criativos e acadêmicos dos filhos. Gérin argumenta que não há dúvida que “dentre as influências humanas, a de seu pai foi a mais duradoura [para Emily]”. Ele foi a inspiração não apenas do amor de Emily pelo mundo natural, mas também da expressão deste por meio da poesia.
Quando Nancy Garrs deixou o Presbitério na ocasião de seu casamento levando a irmã Sarah consigo, o Rev. Brontë contratou Tabitha Aykroyd, uma viúva metodista de cinquenta e seis anos que acolheria a família. Gérin explica que embora todas as crianças lhes fossem queridas, Aykroyd “parece ter nutrido por Emily um cuidado e carinho especiais” (1978, p. 7). Embora Emily tenha sentido o impacto dos eventos mais difíceis de sua infância: a morte da mãe, a austeridade da tia (comparada por Charlotte à sra. Reed de Jane Eyre) e a perda de Maria e Elizabeth por consequência de uma doença contraída na mesma escola que ela própria frequentava, a menina também cresceu em meio a muito carinho, incentivo e compreensão.
Gérin observa que “Emily Brontë foi tema de muitos livros, mesmo que poucos deles possam ser classificados como biografias”. A pesquisadora explica que a “escassez de evidências diretas relacionadas a ela e ao mistério que se permitiu cercar sua vida, embora aumente seu apelo para escritores, os tentou a produzir narrativas inautênticas e a inventar onde não poderiam registrar.” Esta, Gérin explica, foi a “causa principal do fracasso desses autores”. Frances O’Connor relatou que embora tenha lido diversas biografias brontëanas, ela “não limit[ou] [sua] imaginação”, um posicionamento que Emma Mackey, a intérprete de Emily, ecoou.
Faz sentido: o filme se propõe a trazer uma interpretação criativa de um momento específico na vida de Emily Brontë. O desconforto da cineasta com o gênero do filme biográfico é curioso, no entanto: “eu nunca escreveria um filme biográfico sobre esse tema, eu queria que ele voasse, e que fosse algo que os jovens realmente iriam ver”. O’Connor parece supor que jovens não estão interessados em filmes biográficos e, simultaneamente, infere que estes últimos “são de certa forma direcionados a um grupo específico, e eu queria que este filme falasse com muitas mulheres jovens”. (?)
Emily (2022) e as relações entre os personagens
O produto final, por sua vez, não parece de forma alguma gostar de mulheres que não sejam a versão bastante sui generis de Emily Brontë que Frances O’Connor inventou. Emily começa com a personagem-título à beira da morte no sofá da sala de estar do Presbitério. Wuthering Heights, em três volumes e com o nome de Emily Brontë como autora, jaz em uma mesa. Charlotte Brontë alterna entre acalmar a irmã – Anne foi buscar o pai – e perguntar, impaciente: Como você escreveu Wuthering Heights?, sugerindo que há algo errado com o livro.
A cena dá o tom da dinâmica entre as três. Charlotte está sempre de mau humor, ditando ordens e vociferando críticas. Anne, por sua vez, expressa medo da irmã mais velha, dizendo para Emily que com Charlotte em casa elas deverão parar de escrever em parceria. Emily parece alternar entre medo, antipatia e aversão em relação à irmã mais velha. É impossível tentar alinhar a linha do tempo do filme com aquela da vida dos Brontë históricos, mas mesmo enquanto interpretação livre é lamentável pensar que a chegada de Charlotte Brontë em casa seria recebida com desgosto por sua irmã.
O gentil Patrick é imaginado como um censor duro e distante e embora a atuação de Adrian Dunbar seja uma das melhores características redentoras deste filme confuso quanto aos próprios propósitos, ele é apenas mais um dos homens que Frances O’Connor elenca para justificar a rivalidade feminina que fabrica entre Charlotte e Emily. Embora as crianças Brontë – especialmente Charlotte, Branwell, Emily e Anne – tenham sido parceiras criativas desde cedo, compondo juntas da infância até o início da vida adulta e circulando seus textos entre si ao longo de suas carreiras como autoras publicadas, O’Connor parece partir de uma leitura limitada de que para fazer um filme sobre Emily, é necessário vilanizar ou anular as pessoas ao seu redor.
Neste sentido, não é exclusivamente estética a escolha de não apenas usar o nome real de Emily na edição original de Wuthering Heights como de simular um romance publicado em três volumes. É notória a transformação das três irmãs Brontë de Yorkshire nos três irmãos Bell do mundo editorial. Currer, Ellis e Acton surgiram na cultura impressa não nas folhas de rosto de seus respectivos romances, mas em uma edição conjunta de seus poemas.
Apagando a família Brontë
Em Emily, a protagonista é a única escritora séria. Na criação de O’Connor, Charlotte é inspirada a escrever por algumas das poucas palavras de carinho que as irmãs trocam no leito de morte de Emily. Anne é completamente nula: a melhor amiga que Emily conheceu, a irmã que a acompanhou e que ela desenhou em seus esboços não está no filme.
Branwell crava que a rivalidade com Charlotte é motivada por uma disputa pelo amor e reconhecimento do pai, o qual chega somente quando Emily publica Wuthering Heights. Ele, sempre próximo da irmã mais velha na vida real, detesta Charlotte no filme: debochar da irmã é um dos passatempos favoritos dele e de Emily. Estes também incluem: fumar, se embebedar em tavernas, gritar frases de efeito nas charnecas, usar ópio e encenar os grandes momentos de Wuthering Heights. Em duas cenas diferentes vemos Emily e Branwell invadindo a casa dos Linton (!) para espiar a família em sua sala de estar. Os cães perseguem a dupla e, na fatídica segunda invasão, Branwell é apanhado. Subtons incestuosos são sugeridos por O’Connor ao longo de todas as interações dos dois, mas a diretora não compra o próprio blefe e assim se faz necessária a figura de William Weightman.
O William Weightman histórico é associado a Anne Brontë, tendo sido sugerido e amplamente aceito que o pároco auxiliar Edward Weston de Agnes Grey foi baseado nele. O pároco também teria sido a inspiração de muitos poemas de luto da Brontë caçula. Weightman chegou a Haworth em setembro de 1839 após obter seu mestrado na Universidade de Durham. Embora Patrick Brontë tenha tido relacionamentos notoriamente ruins com a maioria de seus párocos auxiliares, William se tornaria um amigo. O fato é atestado pela elegia de Brontë a Weightman, na qual Patrick chegou a dizer que o pároco tinha sido como um filho para ele.
Embora as obras de Weightman na aldeia tenham mudado sua opinião mais adiante, especialmente o interesse e proatividade do pároco na promoção do bem-estar dos mais pobres, a Charlotte histórica inicialmente não gostou dele. Em uma carta a Ellen Nussey ela posteriormente viria a reconhecer ele “não era só egoísmo e vaidade” como havia pensado inicialmente. No roteiro de O’Connor, Weightman é apenas mais um dispositivo para acirrar a rivalidade entre Charlotte e Emily e para submeter a criatividade desta última à sua aparente obsessão por agradar a todos os homens que atravessavam seu caminho.
Charlotte e Emily discutem diversas vezes por causa de Weightman: enquanto a irmã mais velha flerta aberta e reiteradamente com ele, Emily o desafia em questões de teologia. Faíscas cortam o ar como em um romance baseado no tropo enemies-to-lovers: discussões carregadas de insinuações, o desconforto da proximidade forçada quando Patrick ordena que Weightman dê aulas de francês para a filha, a fé firme dele frente às dúvidas dela, Weightman avisando a Emily que Branwell “ferirá sua alma”. Os ciúmes expressos tanto por William quanto por Branwell reiteram a posição deste último como a de rival aparente do pároco na trama subjacente em que ele e a irmã incorporam Cathy e Heathcliff ao ponto de ele dizer para a irmã You are me (você sou eu), ecoando e rearranjando a famosa frase I am Heathcliff.
Na vida real, Branwell e William foram grandes amigos, embora Brontë não fosse religioso. Quanto William morreu em 1842, Branwell escreveu em uma carta: “assisti por muito tempo ao leito de morte do reverendo William Weightman, um de meus amigos mais queridos.” A obra de O’Connor, no entanto, opera com base em rivalidades e na recorrência aos clichês mais desgastados dos blockbusters que poucos aguentarão digerir em 2022. Não há lugar para nuance.
Não deixa de ser curioso, por exemplo, o desconforto do filme com o papel complexo que a fé protestante em suas mais diversas correntes teve nos escritos de escritoras que expressaram visões progressistas ou mesmo reformistas em seus textos. Como Gérin observa, Emily foi a única entre as crianças Brontë que não enfrentou uma crise religiosa na adolescência catalisada pela influência de religiões não-conformistas, tendo declarado ser exatamente “como Deus a fez”. Para não lidar com a complexidade da questão, O’Connor prefere trazer uma Emily oprimida por uma fé que lhe é imposta. Branwell, por sua vez, é uma caricatura da figura apresentada na biografia de Elizabeth Gaskell: byrônico, incontrolável e o pior, um mero antagonista do casal protagonista.
Em uma das cenas mais peculiares do filme, Emily ataca Charlotte em francês após a irmã lhe provocar a falar na língua em que havia enfrentado dificuldades (e que aprendeu com Weightman). O pároco auxiliar parece encantado ao testemunhar a briga entre as duas, enquanto Patrick Brontë fica completamente alheio à tensão na mesa e celebra a fluência de Emily. Weightman e Emily se apaixonam, mas para além das cenas íntimas não há real base ou desenvolvimento para este suposto encontro de almas que inspirará a escrita de Wuthering Heights.
Tampouco é possível depreender o caráter do Weightman fictício com base no que o filme entrega. Quando ele rompe o relacionamento sem aviso prévio, deixando Emily desesperada, O’Connor nos sugere que o pároco é um mero crápula. A impressão é fortalecida tanto pelo seu comportamento prévio – embora ele seja solteiro e esteja aparentemente apaixonado, Weightman jamais parece considerar a possibilidade de pedir Emily em casamento, o que seria o padrão neste contexto – quanto pelo subsequente: pressionado pelo comportamento errático de Emily, ele é agressivo e declara que os dois pecaram, que deve haver algo de “ímpio” nela.
Weightman faz menção à cena bizarra em que Emily “incorpora” a mãe durante um jogo de imitação enquanto usava uma máscara que havia pertencido a Maria. Embora O’Connor tenha aparentemente idealizado a cena e a máscara em si como “um grande símbolo da criatividade de Emily, algo conectado à mãe, conectado ao feminino”, a cena em questão tanto exotiza Emily – um gesto tediosamente repetitivo – quanto transforma a memória da mãe em algo assustador, com Charlotte, Anne e Branwell apavorados pelo incidente “misterioso”.
Não obstante, Weightman muda radicalmente sua posição sem que o filme trabalhe de forma alguma para comunicar ao espectador como essa evolução se dá. Emily decide ir para Bruxelas com Charlotte e o pároco decide que sim, afinal, ama a protagonista. Quando ela diz tristemente que não escreverá mais porque deverá se tornar professora – em mais uma leitura preguiçosa da relação entre a formação das irmãs Brontë como preceptoras/professoras e seu trabalho criativo – William a pressiona: “Mas srta. Brontë, você precisa escrever!”.
O’Connor recorre ao melodrama ao longo de todo o filme, mas nenhuma ocasião se compara ao drama da carta. Weightman, que detesta Branwell, espera que este último esteja completamente inebriado em uma taverna para entregar uma carta a Emily. Nesta, declara seu amor e pede que ela não vá para o exterior. Branwell só descobre a carta quando vai visitar a irmã, mas decide não entregá-la. A Weightman ele diz que Emily pediu para ser deixada em paz. Assim, todos os conflitos anteriores entre o casal são apagados pela vilania de bicho-papão Branwell Brontë.
Os dois homens morrem e em um arroubo Emily Brontë compõe seu romance (o qual, sabemos, a Emily histórica reescreveu inteiramente e revisou ostensivamente). Aparentemente, se não por sua inteira devoção a três homens, Branwell, Weightman e Patrick, Emily Brontë segundo Frances O’Connor jamais encontraria razões para escrever um romance sobre traumas geracionais, questões de classe, gênero e o império britânico em um sentido mais amplo.
Quem foi Emily Brontë?
A relevância de Emily Brontë foi reconhecida ao longo da maior parte do tempo que se sucedeu à publicação de Wuthering Heights. A “canonização” da obra de Charlotte foi iniciada tentativamente por Algernon Swinburne e Thomas Wemyss Reid, assim como pela fundação da Brontë Society, no final do século XIX, mas só seria consolidada com a ascensão da crítica feminista nas décadas finais do século XX. A hoje celebrada autora de Jane Eyre foi ignorada pela maioria dos críticos que ditaram os cânones da primeira metade do século XX. Por sua vez, Anne foi largamente ignorada ou menosprezada até mesmo pela crítica especializada até que a Clarendon Edition de The Tenant of Wildfell Hall fosse concluída, reparando maus passos editoriais iniciados na década de 1850 pela própria Charlotte.
Aludi, no início da resenha, ao problema inerente a uma versão de três volumes de Wuthering Heights. Para o universo de O’Connor funcionar, Emily tem de ser uma espécie de ave rara em meio a pessoas banais. Esta, no entanto, não é uma leitura satisfatória. Wuthering Heights, um raro exemplo de romance publicado em meados do século XIX sem atender à política do three-decker (o romance em três volumes), somente foi aceito da forma em que foi escrito porque junto a ele o editor Thomas Newby recebeu o manuscrito de Agnes Grey, romance de estreia de Anne Brontë. Jane Eyre foi publicado em outubro de 1847. Wuthering Heights e Agnes Grey em dezembro. As obras só existem tal como são porque necessariamente seriam publicadas juntas: uma viabilizou a integridade da outra. O filme apaga também este elemento da extensão da parceria entre Emily e Anne.
A crítica brontëana enxerga os habitantes de Haworth Parsonage como uma comunidade literária tão profícua quanto tantas outras que se formaram nos grandes centros literários britânicos na Era Vitoriana. Toda a família escrevia, mesmo quando não profissionalmente. Branwell foi o primeiro a ser publicado. O filme de O’Connor, longe de ser inovador, rebobina visões superficiais sobre o valor da obra literária e artística de Branwell há muito corrigidas, notoriamente por Juliet Barker, mas também por diversos pesquisadores que se debruçam sobre o trabalho do único menino Brontë. Os poemas de Patrick, por sua vez, parecem ter inspirado alguns dos primeiros escritos poéticos de Emily.
Todos eram leitores de periódicos como a Blackwood’s Magazine e a Fraser’s, mantendo-se informados e debatendo os últimos desenvolvimentos e tendências literárias na capital. Em “The Biographical Myths and Legends of the Brontës” (2016), Sarah Maier ressalta que “biografias mais recentes fizeram tentativas claras de redefinir as irmãs Brontë não como gênios perdidos e isolados nas charnecas, mas de maneira a apresentá-las como intelectuais do século XIX engajadas com a escrita desde a juventude”.
A união não era exclusivamente intelectual, mas prática: as irmãs iam juntas comprar papel para escrever. Elas liam e ofereciam comentários e críticas aos romances umas das outras. As obras brontëanas, tal como as conhecemos, não existiriam sem essa comunidade marcadamente feminina de leitura, escrita e troca de ideias. Para uma diretora que declara ter como propósito a ideia de inspirar jovens mulheres, parece curioso abrir mão dessa comunidade em prol da vilanização de Charlotte Brontë e o apagamento completo de Anne, lançando luz sobre um relacionamento romântico e sexual fictício, reduzindo a escrita de Emily a uma obsessão.
Apenas três cartas de Emily foram preservadas (no filme de O’Connor as cartas destruídas parecem ter sido todas endereçadas a Weightman). A escassez torna-se ainda mais flagrante quando comparada às seiscentas ou setecentas de Charlotte a que temos acesso. Emily sempre chegou a nós por meio do testemunho de outras pessoas. Como Gérin observa, o efeito disso é que “por mais confiáveis que sejam essas pessoas, Emily Brontë é ouvida por meio delas, em segunda mão, raramente falando com sua própria voz”.
A natureza elusiva da figura de Emily no imaginário público parece ter convidado tanto curiosidade quanto incursões criativas e especulativas sobre sua vida e modo de composição. Como Lisa Jadwin observa, as décadas finais do século XIX trouxeram um aumento considerável no interesse não apenas por Wuthering Heights, mas pela poesia de Emily:
à medida que os costumes sociais vitorianos começaram a ser transformados por mudanças sociais inevitáveis, a tendência iniciada por Thomas Wemyss Reid começou a florescer. Swinburne seguiu sua publicação sobre Charlotte com a igualmente laudatória “Emily Brontë” em 1886.
Emily seria tema de uma biografia pela primeira vez em 1883. A autora foi a poeta A.M. [Mary] F. Robinson. Embora o tom melancólico do retrato pintado por Elizabeth Gaskell em sua biografia de Charlotte tenha sido reiterado, a biografia seria interessante justamente por sua guinada interpretativa. Robinson sugeriria que a introversão de Emily Brontë não era uma falha ou um impedimento para seu desenvolvimento, mas a fonte de sua criatividade. Robinson “encorajou os leitores a atribuir o gênio criativo de Emily a sua vida hermética e excêntrica”, diz Jadwin. Como é o caso de muitas figuras históricas em relação a quem o público desenvolve uma relação afetiva, há tantas Emily Brontës quanto interpretações para Wuthering Heights.
Por que Emily (2022) não é um bom filme?
A falha do filme de Frances O’Connor não é produzir uma obra com base em uma interpretação particular de Emily Brontë, mas sim esvaziar de significado figuras históricas que já inspiram pessoas há mais de dois séculos. Se o filme não é sobre Emily Brontë e tampouco sobre o processo de composição de Wuthering Heights, resta apenas a alternativa de interpretar a obra como ficção especulativa sobre pessoas reais, reposicionando e reescrevendo a personalidade e os vínculos de indivíduos que de fato existiram em prol de um enredo romântico genérico. Trata-se de uma oportunidade perdida. O’Connor contava com um bom elenco e uma equipe de produção claramente competente. A fotografia do filme é excelente e as caracterizações são consistentemente satisfatórias. O destaque absoluto vai para Adrian Dunbar, que faz um trabalho excelente em meio a um roteiro problemático.
Em entrevista concedida ao The Telegraph às vésperas da estreia do filme no Reino Unido, Emma Mackey se declarou “preocupada” que “os fanáticos por Brontë ficassem com raiva porque estávamos tomando liberdades criativas”. A tradução livre da fala da atriz suaviza a curiosa expressão escolhida por ela, Brontë fiends. A ansiedade em questão foi reiterada tanto por Mackey quanto por O’Connor em outras entrevistas. No final das contas, o público leitor de Emily Brontë, formado em parte considerável por mulheres de todas as idades, parece ser tão vilanizado de antemão pela criadora de Emily quanto Charlotte Brontë foi no filme. Resta a questão: quem são as mulheres que Frances O’Connor gostaria de ver assistindo e se conectando ao seu filme?
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Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.
Eu não consigo entender os exageros em “licença poética” ou “criativa” quando se trata de obras que falam de pessoas reais. Certas mudanças trazem mais prejuízos do que entretenimento.
Ótimo texto!
Excelente artigo. Esclarece tudo e questiona com fundamentos sólidos as liberdades criativas da diretora. Parabéns!