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Os 100 anos de O Grande Gatsby e a utopia do sonho americanoLeitura em 6 minutos

Cena do filme de Baz Luhrmann, com os quatro personagens principais na festa de Gatsby.

Magnum opus de F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby completou 100 anos de publicação no último dia 10 de abril. Frequentemente chamado de “o grande romance americano” ou “a história do sonho americano”, o livro conta a história de Jay Gatsby a partir da perspectiva de seu novo vizinho, Nick Carraway, que se encanta com a grandeza e o mistério que envolvem essa figura da elite americana e as suas festas badaladíssimas e busca explorar essa grandiosidade de forma mais profunda. Essa curiosidade não é apenas do narrador, manifestando-se também na constante presença de burburinhos em meio às festas e outras ocasiões, em que se debatia a identidade do tão jovem magnata e como sua fortuna teria sido construída. Seria o patrimônio de Gatsby uma “fortuna honesta”? As grandiosas histórias sobre aquela persona seriam, de fato, verdadeiras ou apenas especulações populares? A partir de um adentramento na vida burguesa, mesmo não encaixando muito bem nas situações em que estava inserido, Nick Carraway buscou entender as relações naquele meio.

No entanto, esse acesso do narrador à vida das classes mais altas não surge apenas do contato que se cria com Gatsby no decorrer da história. Para além de um observador atento, ele é uma figura de enlace essencial entre os quatro personagens principais do livro, sendo primo de Daisy e Tom Buchanan, que moravam do outro lado da baía. É ao mencionar Gatsby para a família e para a amiga de Daisy, Jordan, que Nick faz uma história antiga emergir novamente no imaginário das mulheres. Descobre-se, assim, que houve uma história de amor entre ele e a sra. Buchanan, e é a partir desse momento em que as tensões do livro, antes mais sutis, vão se intensificando até culminar em uma profunda decadência.

A obra se situa nos meados dos anos 1920 e reflete o espírito do que ficou conhecido como “Anos Dourados” ou “Roaring Twenties” de uma forma muito cativante, mostrando uma efervescência cultural e uma prosperidade econômica, com uma grande produção de bens de consumo. Isso se materializa na construção desse mesmo ideal de “sonho americano”, das grandes festas e de um materialismo pungente que parecem incomodar o narrador em certas medidas. Esse período teve seu fim com a quebra da  bolsa de valores em 1929, que levou o país à Grande Depressão, mas o livro demonstra que, em meio à todas as idealizações e ao cinismo, havia um certo aspecto de miséria na forma em que essas elites viviam, além de evidenciar a existência de diversas famílias estadunidenses vivendo na pobreza.

O narrador de Fitzgerald criou contrastes interessantes ao sutilmente opor realidades familiares tão distintas nos entrelaçamentos que são construídos: 

Contrastadas com a vida mais pacata de Carraway e com o Queens “grotesco e desolado” que abriga a oficina dos Wilsons, a opulência da casa e do estilo de vida de Gatsby e dos Buchanans faz aquelas realidades parecem inadentráveis ou até mesmo quase perfeitas, quando pensadas sem o acesso interior feito pelo narrador. No entanto, percebe-se que cada um daqueles personagens tem suas próprias questões interiores, para além das boas aparências proporcionadas pelo dinheiro: Tom é um personagem de moral distorcida, que desconta as próprias frustrações no seu núcleo familiar e em suas relações extraconjugais; sua esposa, apesar de estar visivelmente infeliz e reconhecer todos os problemas do seu casamento, mantém-se naquela situação, relutante em abrir mão de seu lugar naquela sociedade. O relacionamento que se desenrola com Gatsby testa a relação dos dois e, para além de evocar um curioso puritanismo no marido e confundi-la, culmina na tragédia que se desenrola nos capítulos finais.

“Eles eram pessoas imprudentes, Tom e Daisy — destruíam coisas e criaturas e depois batiam em retirada em direção a seu dinheiro ou a sua vasta imprudência ou a seja lá o que for que os mantinha unidos, e deixavam que outras pessoas arrumassem a bagunça que tinham feito…”

Fitzgerald, Francis Scott. O Grande Gatsby.  p. 270. trad. Rogerio W. Galindo. Antofágica.

 

O personagem de Gatsby, apesar de ser visto de uma forma menos parcial e idealizada por Carraway, parece brincar com o mito do “self-made man” e com a ideia de que o homem americano poderia ter tudo o que sonhasse. Obcecado desde jovem pelos acessos concedidos pelo dinheiro, o sentimento de inadequação foi o principal motivo para ter buscado pela construção de sua fortuna por meios discutíveis, ainda que o narrador não seja tão explícito sobre o assunto. Apesar de ter chegado ao seu auge, o acesso de Gatsby é parcial: ele não é completamente aceito pela elite, humilhado pelo sr. Buchanan, que não o vê como igual, e termina sozinho e arruinado por escândalos.

O seu egoísmo também é um ponto central no entendimento da obra, ainda que ele possa ser confundido com um romantismo incurável ou ser disfarçado por seu carisma. O fato de que todas as suas festas foram dadas na esperança do comparecimento de Daisy é, de algum modo, encantador, mas o romantismo perde sua força quando se percebe que ela nunca é enxergada por si só. O amor de Daisy aparenta ser mais uma conquista material da qual Gatsby quer ter total domínio ou posse, e a mulher é mais vista como uma ideia contaminada pelo materialismo do que como alguém com vontades próprias. 

O Grande Gatsby assume um caráter trágico quando percebe-se que todos os personagens estão em busca de glórias e dias passados que não se alinham com aqueles anos dourados, sendo uma coleção de desejos inalcançáveis de pessoas que já alcançaram o topo da ascensão social e não se veem plenamente satisfeitas. Suas aparências não minam os seus conflitos internos ou os tornam menos falhos, e os personagens giram em torno da manutenção da ideia de perfeição, ainda que ela seja frágil e faça-os desmoronar.  O centenário da publicação e a sua relevância inquestionável refletem como questões de classe e mobilidade social são cada vez mais pertinentes no mundo real, com diversas repercussões na organização social e nas relações humanas. O sonho americano, que já era contestável anteriormente, parece cada vez mais, à medida que o país toma medidas cada vez mais hostis para os cidadãos que não se enquadrem em ideais ilusórios. Ainda em 2018, foi publicada pela The Atlantic uma comparação da figura de Tom Buchanan ao presidente Donald Trump, e as posturas políticas mais recentes, cada vez mais atenuadas, evocam ainda mais a defesa individualista de uma América tradicional em meio a diversos escândalos.

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É graduanda em Letras - Inglês e literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil, sob orientação da Profa. Dra. Marcela Santos Brigida.

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