Publicado em março de 2019, Lanny de Max Porter reacende a discussão em torno do atravessamento entre gêneros literários e como eles têm sido explorados na literatura contemporânea: o que é um romance no século XXI? Apresentado como romance, o segundo livro de Max Porter é uma sinfonia polifônica sobre a vida de uma criança simultaneamente comum e peculiar, onipresente e irrastreável, sobre o pano de fundo de uma aldeia inglesa nas proximidades de Londres.
LANNY
Na primeira das três partes da obra, somos introduzidos ao personagem-título, um menino de quatro anos de idade, a partir do ponto de vista das pessoas que o cercam. Temos acesso aos pensamentos daqueles ligados a Lanny. Sabemos o nome de alguns, enquanto outros só são nomeados no transcorrer da história. Eles são apresentados neste estágio apenas em relação à criança. Assim temos “Pai de Lanny” e “Mãe de Lanny” entre os personagens principais.
Alexandra Harris descreveu Lanny como uma criança simultaneamente peculiar e comum, uma espécie de everychild. A construção do personagem que dá nome ao livro de fato passa por esta e muitas outras ambiguidades. A estranheza do menino às vezes faz a narrativa pender para o conto de fadas, às vezes para o terror, mas o excesso logo recupera o estatuto de lugar comum: é tudo coisa de criança. Lanny se constitui como uma coletânea de sensações e estados de consciência coletados a partir de subjetividades que testam seus próprios limites, assim como os do seu espaço e os das pessoas ao seu redor.
Porter faz uso de convenções da escrita dramática para estruturar a primeira parte da obra. Ela é subdividida por marcadores em negrito e caixa alta que informam ao leitor a quem pertencem os pensamentos e palavras que se seguem. O projeto gráfico é muito bem trabalhado e carregado de sutilezas, integrando, e não apenas organizando, a obra final.
O primeiro com quem temos contato é Dead Papa Toothwort, um espírito ancestral ligado à flora local. Ele observa e acompanha a vida – em suas diversas formas e manifestações – na aldeia. As falas e pensamentos dele são entrecortados por trechos como o abaixo, nuvens de recortes de diálogos do dia-a-dia local, descritos pelo espírito como “sons humanos”. Toothwort observa a todos, mas tem interesse especial por Lanny e a onipresença/ausência críptica do garoto tem sua insinuação mística fortalecida por inferências do ser sobrenatural.
Temos também acesso aos pensamentos da Mãe de Lanny, uma atriz afastada da carreira (“sem trabalho”, como ela própria descreve), sufocada pelo caráter provinciano da aldeia onde passa a maior parte do tempo cuidando do – ou procurando por – seu filho. Ela também trabalha em um “promissor” (segundo seus editores) romance policial repleto de imagens e desdobramentos violentos aos quais ela não quer que a criança tenha acesso. É interessante, portanto, que na segunda parte da obra Porter flerte com o gênero de romance policial, não muito tempo após Lanny ler os manuscritos da mãe sem autorização.
O Pai de Lanny passa a maior parte do tempo em Londres trabalhando e boa parte do tempo que lhe resta reclamando (ainda que para si mesmo) por não estar lá:
Eu não sei a quem eu tenho que agradar. Eu tenho que agradar à aldeia, mas não consigo, porque a aldeia é um lugar definido para mim pela sua proximidade de Londres e eu sou, portanto, parte do problema, causa e efeito, meu único direito de estar aqui é o direito intermediado para mim por um corretor de hipotecas em Canary Wharf, então eu me apego a pequenas vitórias, pequenas raízes e disparos de pertencimento, acreditando que o meu direito de estar aqui é o Lanny, o excêntrico popular, meu direito de estar aqui é a minha oferta de podar a glicínia da Mrs Larton, Pete me dando uma cerveja, o empreiteiro daquela construção horrorosa dizendo ‘valeu, cara’ quando eu segurei a porta do pub para ele. Eu converso com a Peggy pelo menos duas vezes por semana e a Peggy parece gostar de mim, isso não é uma aceitação oficial?1
A vida na cidade pequena carrega consigo um status social que o executivo buscou e pretende manter, mas que não sente prazer algum em vivenciá-la. Seu amor pelo filho é mais distante, ambíguo e condicional do que o da/pela mãe. Há momentos em que a estranheza de Lanny simplesmente o aborrece. Ele lamenta o que percebe como inadequação na criança criativa e sonhadora.
O último ator da primeira parte de Lanny é o artista Peter Blithe, referenciado na divagação do Pai de Lanny como “Pete”, forma como ele é conhecido pelos vizinhos. Fica claro que Blithe também não se adequa aos padrões locais pela forma pejorativa como muitos na aldeia conservadora se referem a ele. Para muitos, ele é “Mad Pete”. Um artista famoso e celebrado, “com teses escritas sobre sua obra”, ele começa a dar aulas de desenho para Lanny, com quem desenvolve uma grande amizade.
O tema de pertencimento, explorado na fala do Pai de Lanny, é recorrente. Um choque cultural entre a geração mais jovem e aquela que “se lembra da guerra” se dá quando a Mãe de Lanny vai até a casa de um dos pilares da comunidade, a Mrs Larton, para pedir ajuda e perguntar se a mesma havia visto seu filho. Embora ela figure entre os símbolos que oferecem algum tipo de autoconfiança ao Pai de Lanny, Mrs Larton não suporta a família Lloyd.
A senhora se recusa a responder à mãe de Lanny, considerando sua irritação com a família da jovem algo muito mais grave e urgente do que um possível desaparecimento de uma criança que, na realidade, ela conclui, tinha por hábito vagar sozinha pela aldeia de qualquer forma. As prioridades são claramente demarcadas e radicalmente distintas.
Um amigo da família Lloyd havia estacionado no meio-fio mesmo após Larton ter pedido que a família não o fizesse. Nessa transgressão, ela enxerga uma grave violação da tradição local. A dificuldade de uma comunicação eficiente se estabelecer entre as duas mulheres é construída por Porter através da manifestação da ira de cada uma pela incapacidade da outra de escutar.
A Mãe de Lanny, a esta altura já apresentada como Jolie Lloyd, conclui pensando: “Meu deus, sua velha horrível, você é o que há de pior em morar aqui, você é o que há de pior nessa aldeia inglesa. Você é o que há de pior na Inglaterra. E em aldeias. Queria que você morresse para uma pessoa legal se mudar para cá”.2
A linha de pensamento de Mrs Larton, por sua vez, é digna de ser transcrita integralmente, tanto por ilustrar o ruído intransponível na comunicação quanto por dar corpo ao conflito intergeracional:
E se nós, a geração das pessoas que se lembram da guerra, de fato dissesse para esses jovens medonhos e pretensiosos que este é um país pelo qual nós lutamos, que você não pode simplesmente comprar um senso de pertencimento no seu celular. Ela pode ter me atacado, gritando “Cadê o Lanny”, como se eu o tivesse escondido na despensa. Eu podia ter chamado a polícia. Aí ela não viria aqui batendo e gritando que perdeu o ciganinho deprimido dela, com aquele cabelo idiota dele e a cantoria estranha. Eu gostaria de falar para ela sobre a verdadeira comunidade daqui, uma comunidade que acabou graças a pessoas como ela, que compraram as casas e construíram cozinhas abertas e paredes de vidro ridículas. Claro que seria loucura esperar que essa garotinha com um nome inventado entendesse essas coisas, ela pode muito bem ser uma maldita estrangeira. Eu me preocupo com o impacto na comunidade. Eu me preocupo que os padrões possam cair. Eu me preocupo com este país. Queria que ela se entediasse e deixasse uma pessoa decente se mudar.3
A ideia de que “não se pode comprar um senso de pertencimento no celular” e os toques de xenofobia (“ela pode muito bem ser estrangeira”) sublinham o fato de que a mentalidade de Larton – materializando a mentalidade predominante na aldeia – rejeita a mudança que a família Lloyd pode representar não apenas na figura da mãe artista ou da criança criativa, mas do pai bem-sucedido que trabalha em Londres e “vai para aldeia apenas para dormir” também como uma ameaça grave ao estilo de vida que ela conhece. Eles são, para todos os efeitos, estrangeiros que não cultivam a mesma visão de mundo que ela. Os pensamentos da mãe de Lanny confirmam, de certa forma, tal medo: Mrs Larton é o que há de pior nas aldeias inglesas. Ela é um fantasma de um passado que não deveria contaminar o presente.
O ESFACELAMENTO DA REALIDADE
Após uma reviravolta dramática nos eventos que não nos caberia revelar em uma resenha, a estrutura do romance sofre uma mudança de eixo. Na parte 2, falas/pensamentos não são antecedidos por uma identificação, sendo separados exclusivamente por sinais gráficos (+). Por vezes, chega a ser difícil ter certeza quanto a quem fala. Os pensamentos se atravessam no ritmo febril de uma investigação policial. “Mad” Pete, o outcast, sofre as consequências imediatas do clima de perseguição que se apodera da aldeia. Os pacatos cidadãos rapidamente se transformam em uma comunidade dividida, violenta e irascível, saindo à caça do que não se encaixa nos padrões tradicionais numa tentativa de restaurar a ordem.
Quando chegamos à terceira parte do romance, nos questionamos se podemos classificar Lanny assim. Nesta seção, a obra flerta mais de perto com seu aspecto fantástico. Porter testa a imersão do leitor quando Toothworth passa a ocupar o centro das atenções e assume o controle do desenrolar dos eventos. A obra pende para o sobrenatural em níveis variados ao longo da narrativa, o sugerindo e o retirando, o afirmando e o negando, com o mistério, o terror e o fantástico se insinuando com frequência.
Após uma performance de Toothwort na qual ele tormenta alguns dos personagens centrais enquanto conforta outros, o leitor é deixado com a sensação de que o pior aconteceu. É aí que, assumindo sua forma de broto, de planta, de parte da natureza que assume engolir a aldeia, Toorthwort permite que sua plateia renasça das cinzas do luto precipitado para tomar as rédeas dos acontecimentos mais uma vez. Em última instância, entre o poético campestre e o improvável, Lanny chega perto de se transformar em fábula e, de alguma forma indizível, satisfaz o leitor que apostou na proposta de Porter em um nível suficiente para realizar uma imersão completa na narrativa.
Lanny não é uma leitura fácil, mas uma obra que recompensa o leitor que faz um pacto criativo com a sua fantasia, ainda que seja difícil saber onde está pisando. A linguagem que conduz a narrativa é como um rio que, após correr por caminhos diversos e pedregosos, retorna à nascente e começa outra vez não sendo mais exatamente o mesmo. Um dos méritos de Porter é, inegavelmente, a habilidade com a qual ele molda e instrumentaliza a língua inglesa para atender aos propósitos da sua obra.
Um dos efeitos da linguagem de Porter é que Lanny permanece com o leitor por muito tempo após a conclusão da leitura desta obra curta e densa. Após o sucesso estrondoso do seu romance de estreia, Grief is the Thing with Feathers, que foi adaptado para o teatro por Enda Walsh e estrelado por Cillian Murphy, Porter se reafirma como um autor com uma instigante paixão pela experimentação que é majoritariamente bem-sucedida em sua execução, desestabilizando os pressupostos do leitor e o lançando numa experiência literária para a qual ele provavelmente não estará preparado.
Lanny merece todos os aplausos que vem recebendo da crítica especializada desde a sua publicação e nós definitivamente continuaremos atentos aos próximos passos literários de Max Porter.