Há quem diga que toda geração merece sua própria adaptação do clássico de Louisa May Alcott, Little Women. Publicado originalmente em 1868, o romance já foi adaptado diversas vezes. Sete filmes já foram produzidos para o cinema. As produtoras do filme mais recente – Little Women de Greta Gerwig, que estreou no dia 25 de dezembro nos Estados Unidos e no dia 9 de janeiro no Brasil – estão entre as pessoas que acreditam na afirmação que abre esta resenha.
No entanto, considerando-se que uma adaptação de Little Women foi recentemente produzida pela BBC e levada ao ar nos dias 26, 27 e 28 de dezembro de 2017 (minissérie atualmente disponível no Brasil via Amazon Prime Video), o que faz do filme de Gerwig a versão definitiva de Little Women para os millenials e para a geração Z? Se o filme de 2019 reuniu um elenco de estrelas, a minissérie de 2017 também escalou nomes de peso, com Michael Gambon como Mr. Lawrence, Angela Lansbury (em uma performance espetacular) como Aunt March, Emily Watson como Marmee e Maya Hawke – em sua estreia na TV – como Jo. Trata-se de uma produção bem-executada, competente e consideravelmente fiel ao livro. Por que, então, a minissérie não atraiu tanta atenção quanto o aguardado filme de Gerwig?
Cada geração merece sua própria Little Women. Amy Pascal, Robin Swicord e Denise Di Novi são as três produtoras que idealizaram o projeto de adaptar o romance de Alcott para o cinema mais uma vez e, segundo elas, este foi o pensamento que as moveu a começar tudo de novo. De novo porque, de certa forma, as três estiveram envolvidas na última grande adaptação do romance, em 1994 (dirigida por Gillian Armstrong). Estrelando Winona Ryder como Jo, Christian Bale como Laurie, Claire Danes como Beth, Kirsten Dunst como Amy, Trini Alvarado como Meg e Susan Sarandon como Marmee, esta foi outra produção com um elenco estelar.
O filme foi responsável por introduzir Little Women a uma nova geração de leitores e foi indicado ao Oscar em três categorias, incluindo Melhor Atriz pela atuação de Winona. Swicord escreveu o roteiro e produziu o filme com Di Novi para a Sony Pictures, onde Pascal era uma executiva de alto escalão. O trio conta que, tendo produzido o filme que mediou o acesso de uma geração inteira à obra de Alcott, sentiu que passados mais de vinte anos, nossos valores e visões de mundo enquanto sociedade haviam se alterado o bastante para justificar uma nova abordagem.
Foi em 2016 que Greta Gerwig embarcou no projeto, inicialmente para escrever o roteiro. Após o sucesso estrondoso de Lady Bird, ela também foi convidada em junho de 2018 para dirigir a obra. É precisamente a voz de Gerwig e sua leitura fresca da obra de Alcott que geraram tantas expectativas em torno da nova adaptação. Embora a minissérie de 2017 seja uma produção digna de aplausos, não há nada que sinalize o olhar de uma nova geração sobre um clássico. Talvez por isso a minissérie tenha sido em parte eclipsada pelo burburinho em torno do filme que estrearia dois anos mais tarde.
Quando obras clássicas que já ganharam diversas adaptações são transcodificadas para a linguagem audiovisual novamente, é inevitável que se espere que a adaptação justifique sua existência de alguma forma. Em Little Women, Gerwig repete sua parceria com Saoirse Ronan, que traz para o filme toda a energia caótica, a ansiedade e a força de Jo. A roteirista e diretora credita a atriz como cocriadora ao longo do processo de produção e filmagens, explicando que essa nova versão de Jo March é produto do trabalho em parceria das duas. Gerwig também fez uma escolha acertada ao trazer para o elenco Timothée Chalamet, que repete a dobradinha de Lady Bird com Ronan com maestria.
Para que a adaptação funcione, é crucial que a amizade de Jo e Laurie seja comunicada com fluência e delicadeza. O espectador precisa sentir, como o leitor, a afinidade entre duas almas afins. A facilidade com a qual os dois atores trabalham juntos certamente desempenhou um papel importante. A dinâmica dos dois não decepciona, mesmo sob a pressão de quase dois anos de expectativas em torno do filme.
Outro destaque do trabalho de Gerwig é a construção de Amy. Enquanto a maioria das adaptações se esquivam de investigar a fundo a personagem – e Amy é um desafio para qualquer cineasta: uma criança no início da história e uma mulher casada ao final – Gerwig decidiu se esquivar da armadilha de construir Amy como uma mera menina mimada. Em Little Women de 2019, o que antes era lido como capricho, é interpretado como ambição. O que antes era frivolidade, é lido como um senso muito claro das limitações impostas a uma mulher no século XIX. O que já foi entendido como mesquinhez, é lido como ressentimento de uma mente tão inquieta quanto a de Jo, e que quer tanto do mundo quanto a irmã mais velha que é sempre levada mais a sério. Embora ainda seja muito difícil para o espectador absorver o desenvolvimento da relação entre Laurie e Amy após a rejeição de Jo, louvamos o esforço de Gerwig de ler no texto de Alcott a apreciação da verve de Amy, acostumada a ficar à sombra da irmã brilhante, mas perseverante em seus próprios esforços.
De muitas maneiras, esta é a adaptação que mais alinha as duas irmãs. É merecida a indicação de Florence Pugh ao Oscar, pela força e consistência com a qual deu vida a uma das personagens mais complexas de Alcott. A australiana Eliza Scanlen desenvolve um rapport importante com Ronan em cena, em mais uma das escolhas acertadas de Gerwig. Emma Watson também entrega uma performance excelente como Meg March, outra personagem a quem a empatia de Gerwig se estende, assim como seu esforço – um prolongamento do de Alcott – de mostrar que a felicidade após o “final feliz” nem sempre é o que se espera ou imagina, mas que vale a pena mesmo assim. Gerwig assinala a importância e a potência do poder de escolha de cada uma das irmãs March.
O filme de Greta Gerwig é um presente para os leitores de Alcott e um desafio para quem entra em contato com a história pela primeira vez. Ao abrir mão de escalar duas atrizes para interpretar Amy (uma para a infância, outra para a fase adulta), prática comum, a diretora fortalece os vínculos entre o núcleo da família March, mas desafia a suspensão da descrença da plateia: Florence Pugh é uma potência por si só, mas é difícil lê-la como uma menina de 13 anos.
Ao demarcar os saltos temporais exclusivamente pelo tom e iluminação, Gerwig pode dificultar para não-leitores o acompanhamento da dinâmica da ação. Se você está familiarizado com a narrativa, no entanto, é empolgante a ousadia da diretora, que brinca ao traçar paralelos entre a vida de Jo e a de Alcott (que se inspirou na sua própria convivência com as irmãs para escrever Little Women) e provoca a plateia com a possibilidade do filme como metanarrativa.
Nesta adaptação, encontramos Jo pela primeira vez não com as irmãs na manhã de natal, mas no escritório de seu editor em Nova York negociando a publicação de um conto. Essas cenas entrecortam o filme e culminam na produção de um final ambíguo.
Há semanas o debate divide a internet: Jo realmente se casa com o Professor Bhaer no filme ou vive em Nova York como uma escritora independente? Contribuindo para a teoria de que, ao menos tudo que se passa após o momento em que Bhaer se despede da família March e segue para a estação ferroviária não passa de uma fantasia negociada por Jo como desfecho do seu romance está a própria escalação de Louis Garrel para o papel de Bhaer. Se no livro Alcott casa Jo após muita insistência de seus leitores e de seu editor, ela se vinga do desfecho por ela indesejado ao não ceder às pressões para que o casamento fosse com Laurie. Em vez disso, ela introduz um personagem por quem poucos conseguem sentir empatia. Bhaer é vinte anos mais velho do que Jo, descrito por ela como não tendo nenhuma beleza em suas feições e não é fisicamente atraente de forma alguma. Ademais, Bhaer é moralista e critica a ficção da nossa protagonista de forma muito mais incisiva do que no filme.
No fim das contas, o Professor foi a forma que Alcott encontrou de rir das exigências que impediram que ela desse a Jo o desfecho que desejava. Em uma carta a uma amiga, ela disse: “Jo deveria ter permanecido uma solteirona literária, mas tantas jovens entusiasmadas me escreveram clamando e exigindo que ela se casasse com Laurie ou com alguém, que eu não ousei recusar e por perversidade fiz uma combinação engraçada para ela”.
O curioso na escolha de Gerwig por Garrel é que o ator francês não é um par de forma alguma “engraçado” para a Jo de Ronan. Aos 36 anos de idade, Louis segue sendo eleito periodicamente um dos atores mais atraentes da França e sua aparência impressiona a família March durante a visita de Bhaer no final do filme. Não é característico, portanto, nem da escrita de Alcott, nem do tom que Gerwig estabelece para o filme, a cena romântica hollywoodiana em que Amy grita: “Jo, you love him!” e a família corre para que ela encontre Bhaer na estação. A mudança no andamento da trilha sonora, a aglutinação de clichês românticos e o fato de esta cena ser entrecortada pela negociação de Jo com seu editor sinalizam que aquele pode ser o final do livro de Jo, mas definitivamente não é o final da Jo do filme de Gerwig.
Esta é a forma de Gerwig se juntar ao riso de Alcott sem reproduzi-lo inteiramente. Ainda assim, a cena em Plumfield após a morte da Tia March e a presença de Bhaer na cena final com a escola já em funcionamento fortalecem a ambiguidade do desfecho. A que versão de Little Women (o livro de Alcott, o filme de Gerwig ou o livro de Jo March) pertencem aqueles eventos? Gerwig deixa isso aberto à interpretação da plateia.
Pessoalmente, enquanto aceito a possiblidade de diversas interpretações e aprecio a engenhosidade de Gerwig, ao pensar no filme sob a ótica dos paralelos que a diretora e roteirista traça entre o texto de Alcott e A Room of One’s Own de Virginia Woolf, acredito que a ideia de uma Jo independente intelectual, emocional e financeiramente – a Jo escritora que resguarda seus direitos autorais – é mais interessante. Especialmente quando consideramos toda a discussão que permeia o filme em torno da instituição do casamento enquanto transação comercial. Se no século XIX Alcott não conseguiu defender sua Jo solteirona, ao olhar para ela de novo em 2020, Gerwig deixa a porta aberta para a possibilidade.
Assim como ela procura explorar as contradições e complexidades de cada mulher que carrega o sobrenome March, Gerwig lança luz sobre as várias camadas de significado presentes no texto de Alcott. Por isso e por tratar com uma empatia revigorante cada personagem que atravessa Little Women, este é um filme que merece todos os elogios que vem colecionando. Nesta segunda-feira, a produção recebeu seis indicações ao Oscar. Melhor Filme, Saoirse Ronan como Melhor Atriz, Florence Pugh como Atriz Coadjuvante, Greta Gerwig por Melhor Roteiro Adaptado, Alexandre Desplat por Melhor Trilha Original e Jacqueline Durran por Melhor Figurino. O fato de Gerwig não ter sido indicada na categoria Melhor Diretora – novamente ocupada por cinco homens – gerou uma onda de reações no Twitter, com o nome da profissional encabeçando os Trending Topics internacionais.
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Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.