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Uma “modernista contemporânea”: Jane Goldman entrevista Kirsty GunnLeitura em 11 minutos

Uma “modernista contemporânea”: Jane Goldman entrevista Kirsty Gunn

O novo número da MATRAGA, organizado por Davi Pinho (UERJ) e Jane Goldman (University of Glasgow), coleta trabalhos sobre “A prosa modernista na contemporaneidade”. Além de diversos trabalhos acadêmicos de pesquisadores do Brasil e do exterior, a edição recém-lançada do periódico do Programa de Pós-graduação em Letras da UERJ traz um conto inédito da escritora neozelandesa Kirsty Gunn , “‘It is lonely being a young man sent abroad to fight’ she said” [“‘É solitário ser um jovem enviado para lutar no exterior’ ela disse”].

Pouco lida no Brasil, Kirsty Gunn publica por uma das mais renomadas editoras no contexto internacional desde 1994, a britânica Faber & Faber (cuja história é marcada por nomes como T. S. Eliot). Desde então, publicou dez obras de ficção que foram aclamadas pela crítica mundialmente — entre elas estão Rain (1994), Infidelities (2012), The Big Music (2012) e Caroline’s Bikini (2018) —, tendo sido traduzida para mais de doze territórios. Entre muitos outros prêmios, Kirsty Gunn ganhou o New York Times Notable Book Award, o Sundial Scottish Arts Council Book of the Year e o Scottish Arts Council Bursary for Literature.

Gunn, que também é professora e pesquisadora de Escrita Criativa na University of Dundee, Escócia, e especialista em Katherine Mansfield, já é amplamente antologizada, especialmente como contista. Sua presença no contexto cultural contemporâneo é tão relevante que seu romance Rain (1994) foi adaptado para o cinema, no aclamado filme neozelandês homônimo, bem como para o teatro, para o rádio, e se tornou um espetáculo de dança contemporânea dirigido pela coreógrafa belga Anne Teresa, Baronesa de Keersmaekerinclusive.

Leia com exclusividade no Literatura Inglesa Brasil a entrevista crítica de Jane Goldman com Kirsty Gunn, elaborada como um ensaio em torno do conto “It is lonely being a young man sent abroad to fight’ she said”, publicado pela primeira vez na MATRAGA. A tradução é assinada por Victor Santiago Sousa, aluno do doutorado em Literaturas de Língua Inglesa da UERJ. Para ler em inglês, clique aqui. Aproveitem!

 

Entrevista crítica de Jane Goldman com Kirsty Gunn sobre o conto “‘It is lonely being a young man sent abroad to fight’ she said”

   “Chega um momento em todos os contos em que o tom da narrativa muda”, a narradora anuncia, não apenas performando tal mudança mas também convocando a cumplicidade dos leitores para este determinante evento discursivo, um acontecimento no limiar de iminentes invasões e arrombamentos, entre outros muitos momentos eletrizantes neste novo conto de Kirsty Gunn, começando pelo título: “‘It is lonely being a young man sent abroad to fight’ she said” [“‘É solitário ser um jovem enviado para lutar no exterior’ ela disse”]. Como é estimulante trazer no título de um conto aquilo que parece ser um fragmento de seu mobiliário narrativo, deslocando-o para nomear o todo de forma ambiciosa, como se um evento narrativo como este fosse uma espécie de nomeação ou sinalização ou conjuração. O fragmento é simultaneamente retirado do e incorporado ao último parágrafo, onde ele é o desfecho de uma passagem mais longa que foi diretamente proferida por Sophie, supostamente validando uma fala que Alison não profere claramente em momento algum da narrativa, como por exemplo: “‘Lembre-se, ele estava solitário’ Alison me fez lembrar quando estávamos falando sobre tudo novamente, como se fosse uma coda, e eu dizia a ela que pensava em escrever um conto sobre tudo o que tinha acontecido, sobre Anthony e o apartamento e até mesmo sobre o sonho”. De fato, o título se torna uma espécie de coda para a narrativa, mas ali o discurso direto pertence à Sophie, uma falha narrativa no “ela” do “ela disse” que remete o leitor de volta ao título e de volta ao conto em alerta máximo.

   Os leitores da ficção de Gunn, sejam dos romances ou dos contos, já estão acostumados a encontrarem evidências claras e lúdicas do horizonte ou cena da escrita da narrativa, a sentirem-se como cocriadores ou cúmplices na composição do texto. O leitor participa da narrativa. “Apenas permita-se entrar na história” foi o que Gunn respondeu quando perguntei a ela sobre isso em uma entrevista recente por Zoom (14 de maio de 2020): “Quem lê faz parte de todo o processo de criação da história — isso é um trocadilho: quem lê faz da história o que quiser, mas também faz a história (a inventa) e faz contribuições por meio de sua imaginação, inteligência e intuição para o universo da história, ajustando esse universo.” E esta história, que começa com um sonho relatado à narradora por sua irmã, logo prepara o leitor: “Tudo o que acontece deve ser seguido por uma conversa – é sempre evento e conversa, evento e conversa – mesmo que esse ‘tudo’ seja uma bolsa de retalhos composta por imagens arrancadas de seu inconsciente e colocadas diante dela enquanto está dormindo”. Essa história, tal como um sonho, comprime muita coisa em sua narrativa sinuosa. Apertem os cintos de segurança porque “evento e conversa” logo se torna “evento como conversa”; a linguagem é tanto um evento em si mesma quanto produtora do evento, e vice-versa. A linguagem produz eventos, este conto deixa claro, às vezes eventos mortais, como talvez seja o destino daquele “jovem enviado ao exterior para lutar” que figura na frase que, inserida na última linha do conto e destacada para seu título, se dobra e desdobra na narrativa. É difícil não perceber que essa frase não é simplesmente a sentença proferida em discurso direto sobre o estado de espírito do jovem soldado que parte de Londres ao Iraque, mas é a frase mais longa que a contém em sua enunciação ao final do conto, que termina com “ela disse” — e o “ela” de “ela disse” logo se desestabiliza. Logo a narrativa (em torno do “rapaz” sobre o qual “ela” fala) irrompe em uma guerra de gênero. Este é o limiar exato no qual Gunn nos coloca. Devemos invadir?

   Gunn considera o epíteto que dei a ela de “modernista contemporânea” como um elogio, reconhecendo que sua forma singular de criação autoconsciente, autorreferencial e dialógica surge de um espaço que foi aberto pelas grandes escritoras “modernistas”, especialmente Virginia Woolf e Katherine Mansfield, juntamente com Muriel Spark e agentes posteriores do que poderíamos chamar de “a sentença modernista”. O modernismo para Gunn é um modo vivo e em mutação, não um período na história da literatura, nem mesmo uma forma de realismo: “Nunca aderi a nenhuma versão do modernismo que fosse entendida como um reflexo literário da condição social ou o símbolo de uma época”. O “poderoso efeito” dessas escritoras que foram precursoras ao abrir espaço para a própria escrita de Gunn foi que elas

 

cortaram — cortaram decisivamente — com suas canetas –schioooh! [imagine o som sublime de um motor a jato acelerando para o alto] — um caminho em linha reta em direção ao núcleo do mundo das palavras, ao mundo da ficção como lugares totalmente independentes. Então, nada  fica desse mundo enfadonho, dissoluto e projetado com o qual estamos envolvidos e que é derivado de noções de escrever mimética ou alusivamente. As palavras em si são as coisas dos mundos que elas constroem. As palavras são plásticas. As palavras tornam-se uma espécie de argila com a qual você constrói mundos onde a narrativa se desenrola.

 

   Gunn fala sobre “a colagem, a feitura e a amarração da narrativa”, sobre as palavras “plásticas”, como materiais maleáveis e voláteis, e sobre a importância lapidar da unidade da frase: “tudo acontece no nível da sentença”. Desde a aula magna inaugural de Gunn na Universidade de Dundee, em 2006, aprecio as inúmeras conversas que tive com ela ao longo dos anos sobre a construção de suas sentenças. Nesta ocasião, ela me remete à aula, que foi publicada[1], do escritor Gary Lutz, The Sentence is a Lonely Place (2008), declarando que: “É verdade! Uma sentença tem de fazer tudo por si mesma. Imagine que a primeira letra e a última letra da sentença são como parênteses de um todo”. 

   Pergunto como isso pode ser comparado à poesia, cujo verso é “a unidade do produto semântico”, tal como entende o poeta Tom Leonard, onde as sentenças podem  ser rompidas por ou encavalgar as quebras em versos, referindo Gunn a Linebreak: Poetry as Social Place (2005), de James Scully. Refletimos se na poesia o verso quebra com a linguagem poética devolvendo o leitor de certa forma à esfera pública. Se a fratura do verso de um poema se abre para o mundo, então eu me pergunto se talvez a qualidade solitária da frase na prosa seja a sua costura com uma outra. Onde está (ou qual é) o tipo de fronteira que se pode estabelecer por meio de uma sentença? Está aqui talvez o uso característico que Gunn faz dos três pontos, das elipses, tanto no discurso direto quanto no indireto? Há exemplos de ambos neste conto, e os três pontos parecem seguir os parâmetros das elipses estilizadas de Woolf, embora eles sejam também uma assinatura bastante característica da própria Gunn, especialmente em seu romance The Boy and the Sea (2006), no qual, às vezes, eles parecem, entre outras coisas que as elipses podem fazer, apontar para o sussurrar das ondas.

   Gunn diz que pensa na elipse principalmente no sentido da aposiopese[2] clássica, “um mergulho no silêncio, ou um reconhecimento de que você não tem as palavras, ou um afastamento da linguagem”; mas também é para ela um meio de recuperar o “fôlego do texto, de perceber que estamos participando do texto, lendo-o ativamente, falando ele também, pois não é apenas um bloco de informação que nos está sendo entregue”. A frase “escrever bom inglês”, diz Gunn, “faz meu sangue gelar… uma elipse realmente bagunça isso”. É questão de achar um respiro, ela explica, “uma elipse remete o leitor à escrita assim como o músico à partitura”. Ainda assim, a unidade da sentença, para Gunn, permanece sagrada em sua poderosa irredutibilidade, por mais estratificada, cadenciada, convoluta, flutuante ou concisa que possa ser. Ao escrever, Gunn admite que por vezes retrai as elipses que rascunha, contraindo-as até chegar a um ponto final.

   As sentenças de Gunn são construídas com precisão. Ela fala sobre a capacidade de gerar energia que a sentença tem, comprimida entre as suas primeiras e últimas palavras, entre suas primeiras e últimas letras, uma energia gerada talvez pelo que Lutz, aprendi mais tarde, identifica na ficção de Christine Schutt como a “intimidade intra-sentença” no roçar das palavras. Talvez esteja na unidade do parágrafo, então, algo próximo de uma ruptura lírica, semelhante ao verso, na prosa de Gunn. Certamente, ela também tem opiniões contundentes sobre o parágrafo, que ela prefere que seja impresso sem recuo, usando espaço em branco para separar um do outro. Assim, devemos prestar atenção a esses vãos. Os parágrafos de Gunn, zonas insulares de sentenças contíguas e cintilantes, flutuam diante do leitor, que deve nadar por entre os vazios para participar da performance, da construção da narrativa. O que devemos fazer, então, com a irredutibilidade dessa sentença epônima ominosa e com seu reiterado “ela disse”?

 

Jane Goldman, Edimburgo, 10 de agosto de 2020.

Tradução: Victor Santiago (UERJ)

 

Jane Goldman

Doutora em Literatura Inglesa (University of Edinburgh). Professora da School of Critical Studies, Universidade de Glasgow, e poeta. É editora chefe das obras de Virginia Woolf publicadas pela Cambridge University Press. Coeditora de Modernism: An Anthology of Sources and Documents (Chicago UP, 1998), entre outras antologias dedicadas aos estudos modernistas. É autora de The Feminist Aesthetics of Virginia Woolf (Cambridge UP, 1998), Modernism 1910-1945: image to apocalypse (Palgrave MacMillan, 2004), The Cambridge Introduction to Virginia Woolf (Cambridge UP, 2006), e With You in the Hebrides: Virginia Woolf and Scotland (Cecil Woolf, 2013), entre outros títulos. Border Thoughts (Leamington Books, 2014) é seu primeiro volume de poesia.

 

Kirsty Gunn

Escritora neozelandesa e professora de graduação, mestrado e doutorado em escrita criativa na Universidade de Dundee. Publicada pela Faber and Faber, é autora de oito romances e duas coletâneas de contos — como Rain (1994), Infidelities (2012), The Big Music (2012) e Caroline’s Bikini (2018). Sua obra foi traduzida para mais de doze territórios. Adaptada para o cinema e para outras mídias, Gunn ganhou diversos prêmios, como o New York Times Notable Book Award, o Sundial Scottish Arts Council Book of the Year e o Scottish Arts Council Bursary for Literature. Entre outros títulos que mesclam crítica, autobiografia e ficção, publicou My Katherine Mansfield Project (Notting Hill Editions, 2015). Escreve para diversos jornais e revistas, como The Guardian.

 

[1] Nota do tradutor: A referida aula do escritor Gary Lutz foi publicada no formato audiobook.

[2] Nota do tradutor: aposiopese é uma figura de linguagem cujo efeito diz respeito à interrupção deliberada de uma frase, deixando a cabo do leitor e sua imaginação o preenchimento do vazio deixado pelo escritor.

Publicado por

Professor de Literatura Inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro | Website

Professor de Literatura Inglesa do Departamento de Letras Anglo-germânicas, Instituto de Letras, UERJ, e das especialidades Literaturas de Língua Inglesa e Teoria da Literatura e Literatura Comparada do Programa de Pós-graduação em Letras da mesma universidade. Membro da Virginia Woolf International Society.

Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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