O título “The color purple” ou “A cor púrpura” sempre ressoou em todos os lugares em que eu costumava habitar. Ainda no Ensino Médio, ouvi minha professora de Português/Literatura o mencionar diversas vezes. No entanto, foi apenas na faculdade que meu encontro com Alice Walker e A cor púrpura realmente aconteceu. Alice Walker entrou em minha vida através de Zora Neale Hurston e desde então ocupa cada vez mais espaço em meu coração. Seria impossível falar sobre a estreia de The Color Purple (2023) sem mencionar a mente brilhante por trás da obra que inspirou o filme.
Alice Walker, nascida em 9 fevereiro de 1944, é escritora e ativista pelos direitos das mulheres negras. Publicou The Color Purple em 1982 e no ano seguinte ganhou o Prêmio Pulitzer de ficção, sendo a primeira mulher afro-americana a conquistar o prêmio. Em 1983, um ano depois de publicar The Color Purple, no ensaio “In Search of Our Mothers’ Gardens”, Walker atribui quatro significados ao termo Mulherismo:
“uma feminista negra ou feminista de cor”
“uma mulher que ama outra mulher”
“aquela mulher que ‘ama’, sendo a dança, a luta, o povo, a si mesma”
“A mulherista está para a feminista como o roxo está para lavanda.”
Pensando em The Color Purple, a história da protagonista Celie muito se relaciona com o termo. A protagonista Celie é uma jovem negra, nascida em situação de pobreza e em uma cidade segregada. Violentada pelo próprio padrasto, a jovem foi obrigada a se separar de seus filhos e de sua irmã ao ser entregue para se casar com um homem odioso e violento. No entanto, em meio a pesadelo, tudo muda com a chegada de Shug Avery, ex-amante de seu marido. Celie aos poucos vai se libertando de tantas amarras impostas a ela desde jovem e tomando as rédeas de sua vida.
Em entrevista ao New York Times em 2022, Alice Walker afirma que não se opõe ao termo “feminista” mas visa também a libertação de mulheres negras, não só pela raça mas pelo gênero. Para Walker: “É crucial que as mulheres negras abracem essa tradição tão especial que temos, exemplificando com Harriet Tubman, onde você se liberta para então voltar e libertar outras pessoas.”
O que nos dizem as adaptações?
Em 1985, tivemos a primeira adaptação do romance epistolar chegando aos cinemas. A cor púrpura foi dirigido por Steven Spielberg e trouxe nomes como Whoopi Goldberg, Oprah Winfrey, Danny Glover, Margaret Avery, Akosua Busia e Laurence Fishburne no elenco. O roteiro adaptou de forma bastante superficial a trama. Mesmo que o filme de 1985 não seja o principal foco da resenha de hoje, é preciso falar da banalização da violência sofrida por Celie ao longo de sua vida. Alguns personagens são retratados de uma forma suavizada na adaptação. Albert e Harpo por vezes são vistos como trapalhões, alívios cômicos. Assim, a gravidade dos abusos sofridos pelas mulheres e nesse caso, por Celie, nossa protagonista, acabam sendo esquecidos momentaneamente. Não podemos, no entanto, pensar que um filme de 2 horas seja capaz de explorar tudo que Alice Walker comunicou aos seus leitores. Além da escrita possibilitar diversas leituras, a definição de adaptação já mostra por si só uma obra que resulta de uma interpretação particular.
Gostaria de destacar também, minha experiência assistindo ao musical do romance no Rio de Janeiro, inspirado no musical de 2005 da Broadway, dirigido por Tadeu Aguiar e com elenco que inclui nomes como Amanda Vicente, Lola Borges, Wladimir Pinheiro, Flavia Santana, Erika Affonso, Caio Giovani e Maju Tatagiba. Quando comprei os ingressos, não sabia o que esperar. Pensei que por ser uma obra tão triste e com muitas reviravoltas, talvez um musical não caberia tão bem. Entretanto, me surpreendi. As canções eram muito bem orquestradas, os músicos eram brilhantes e o elenco cativante. A peça deixou um gosto de quero mais e posso dizer que para aquelas que não leram o romance, o musical pode despertar esse desejo de leitura. A obra de Walker adaptada para um musical pode soar com uma certa estranheza ao início, de fato já ouvi uma amiga dizer “não consigo imaginar uma obra tão complexa e triste em formato de musical, que geralmente espera-se que seja mais ‘tranquilo’”, mas posso afirmar que vale a pena entrar nessa descoberta.
As duas adaptações citadas sintetizam A cor púrpura de forma que quem não leu o romance, consegue gostar do enredo. Por outro lado, quem teve a experiência de leitura, tende a reclamar de possíveis pontas soltas. Um exemplo a ser questionado é o relacionamento de Celie com Shug Avery, a forma como será retratado é sempre uma questão. Shug Avery pode ser lida de muitas formas e há leitores que entendem ser apenas um romance momentâneo para Celie, que estava descobrindo sua sexualidade. Mas argumento que Shug é muito mais do que um simples momento, ela é responsável por ajudar na libertação de Celie, mostrando que existe amor, conforto na vida e que a felicidade pode ser alcançada. Diversas vezes, a foto de Shug que Mister mantinha na cabeceira da cama, era a única companhia de Celie. Retratar isso ao público pode ser desafiador.
“Eu vejo ela lá dentro do casaco de pele. O rosto dela vermelho. O cabelo dela parece uma coisa! Ela tá rindo com o pé em cima do carro de alguém. Mas os olho dela tão sério. Um pouco triste.” (WALKER, 1982, pág 16).
The Color Purple (2023)
The Color Purple (2023) teve sua estreia no Brasil no dia 8 de fevereiro e eu não poderia perder. Dirigido por Blitz Bazawule, o filme trouxe entre seus produtores Oprah Winfrey e Steven Spielberg (ambos com participação no filme de 1985). O elenco forte conta com Fantasia Barrino, Taraji P. Henson, Danielle Brooks, Halle Bailey, Phylicia Pearl Mpasi, Colman Domingo e Ciara, H.E.R., Corey Hawkins,. O filme foi divulgado com a premissa de ser uma adaptação do livro, do filme e do musical da Broadway (Mean Girls de 2024 também veio ao cinema com uma proposta parecida), porém com o objetivo específico de dramatizar e ser mais fiel ao livro. De fato, filme conseguiu alcançar esse objetivo de seriedade: mesmo em momentos de silêncio, o público conseguia entender o que estava acontecendo.
Deixo aqui um destaque a excelente performance de “Push Da Button” por Taraji P. Henson como a cantora de jazz Shug Avery. O diretor Blitz Bazawule narra essa performance para o New York Times onde põe em foco diversos elementos importantes para a construção da história.Para Bazawule, os jogos de luzes, a linguagem corporal dos dançarinos e a construção da personagem Shug Avery foram essenciais para o desenrolar da história:
“Outra coisa que foi especial nesse momento (performance) é o final. Quando descobrimos que Shug Avery, na verdade, escolheu Celie ao invés de Mister. Então tem muita história sendo contada, mesmo que seja um grande número de dança, ainda sim há muita história acontecendo. No momento que descobrimos que ela fez essa escolha, é muito tarde para Mister. Mister esteve esperando, ele passou todo esse tempo esperando que Shug Avery pudesse ir ao seu encontro no fim dessa performance e ele se beneficiaria de toda a magnitude de Shug. E de alguma forma, ela passa furtivamente por ele e vai para Celie. E isso é um grande momento romântico e emotivo no filme.”
Halle Bailey também está fenomenal no papel. Suas aparições como Nettie em sua juventude mostram que a atriz foi uma escolha acertada. Sua performance de “Keep It Movin” com Phylicia Pearl Mpasi, intérprete de Celie na juventude é um ponto alto. A canção vem logo após o anúncio de Nettie da tentativa do pai de tocá-la. Ainda assim, a menina foi até a casa de Mister e Celie em busca de abrigo. No contexto da narrativa, a canção veio como um novo começo otimista, como um presságio para o que viria a seguir. A cena em questão é um ótimo exemplo de maneiras como a linguagem do romance foi repensada no contexto de um musical.
Outra sequência de cenas marcantes se dá quando Celie decide ir com Shug para Memphis. Tanto no romance quanto na adaptação, consegui sentir na pele o poder das palavras de Celie:
Eu amaldiçoo você, falei.
O que você quer dizer? ele falou.
Eu falei, Até você num me fazer mais mal, tudo que você tocar vai apudrecer.(A Cor Púrpura, 1982, Pág 242)
Fantasia Barrino, conhecida por ser a vencedora da terceira temporada do programa estadunidense American Idol, além de estrelar nos palcos do teatro com o musical, também conquistou corações como Celie nas telas. A atriz e cantora de R&B mostrou que nasceu pro papel. Também merece destaque Danielle Brooks, que interpretou Sofia e foi indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por seu papel. A cena em que foi agredida por brancos por se recusar a ser empregada da mulher do prefeito é um ponto de tensão no romance e é retratada com sensibilidade de forma marcante por Brooks.
The Color Purple é um desafio constante, tanto como leitor quanto como espectador. Alice Walker foi certeira em sua escrita de tal forma que de 1982 aos dias atuais, as questões de seu romance seguem relevantes e atuais. Em entrevista ao New York Times, Walker disse que não se arrepende de nada que fez e viveu:“Eu realmente fiz tudo o que pude neste corpo”, disse Walker. “Eu realmente me joguei contra a máquina.”
Gostaria de encerrar aqui minha resenha nas palavras de Alice Walker:
Seu trabalho, quando vocês saírem daqui – assim como foi para as mulheres formadas antes de vocês -, é mudar o mundo. Nada menos nem mais fácil que isso. Espero que tenham andado lendo a produção recente sobre a liberação das mulheres, mesmo que não concordem com tudo. Pois vocês vão descobrir, como mulheres têm descoberto ao longo das eras, que mudar o mundo demanda muito tempo livre. Exige muita mobilidade. Exige dinheiro e, como Virginia Woolf colocou tão bem, “um quarto todo seu” , de preferência com fechadura e chave. (WALKER, 2021, pág 40)
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Graduanda em Letras Inglês/Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Curadora de conteúdo no projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil. Amante de Literatura Afro-Americana e Cultura Pop. Suas pesquisas estão entre os dois mundos. Pesquisadora de Zora Neale Hurston, buscando uma leitura mulherista em sua narrativa. E, recentemente, pesquisadora de canções narrativas presentes no álbum Harry's House (2022) de Harry Styles.