Normal People, segundo romance de Sally Rooney, foi publicado em meio a uma imensa campanha de marketing promovida pela Faber Books. Pouco após a publicação do – muito aguardado romance – foi confirmado pela editora que a obra seria adaptada para a televisão em uma produção da BBC sob direção do indicado ao Oscar Lenny Abrahamson.
Em maio do ano seguinte, junto à publicação de Normal People em brochura, foi anunciado que a adaptação seria produzida no formato de uma minissérie em 12 episódios realizada em coprodução entre a BBC e a Hulu. Em 27 daquele mesmo mês, as filmagens começaram, o elenco foi anunciado e o mundo ficou sabendo que Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal dariam vida a Marianne Sheridan e Connell Waldron.
Assim foi dada a largada para as expectativas e especulações em torno da produção. Ao longo dos meses subsequentes nós acompanhamos cada atualização sobre as filmagens, que foram concluídas nas Itália na primeira semana de outubro (você pode conferir esses registros no nosso destaque no Instagram dedicado a Normal People).
Inicialmente estimada para julho, a estreia da minissérie foi adiantada para 26 de abril de 2020 no Reino Unido, com disponibilização da produção em formato boxset no iPlayer. Ou seja, os 12 episódios foram oferecidos de uma só vez para os telespectadores que, de acordo com uma série de manifestações no Twitter e no Instagram, imediatamente iniciaram suas maratonas.
Lançada no auge do período de lockdown em alguns países e de distanciamento social em outros por conta da pandemia do novo coronavírus, Normal People, que era uma estreia altamente esperada, tem tudo para se transformar em um clássico contemporâneo instantâneo também em sua versão audiovisual. Aviso: este artigo contém spoilers de Normal People, livro e minissérie.
Normal People (2020): Uma breve resenha
Como minissérie, Normal People aposta suas cartas no público leitor de Sally Rooney. Além de trazer a autora como corroterista em seis episódios em parceria com Alice Birch, e coprodutora executiva, a obra chega a dedicar episódios inteiros a capítulos específicos (o romance tem 18 capítulos, a série 12 episódios; vale conferir o quadro no final do post com as correspondências entre livro e série), mantendo-se fiel ao texto adaptado e encenando diálogos inteiros entre os personagens. Toda alteração narrativa é precisa, pontual e, em na maioria dos casos, bem-vinda e adequada.
Enquanto leitora de Sally Rooney, me parece que os realizadores de Normal People – a série – idealizaram uma obra que, embora em diálogo constante com o livro, foi capaz de recodificar para a linguagem audiovisual alguns dos aspectos definidores da obra: o tom detached da narração, impenetrável e consistente em seu distanciamento da ação e o clima sufocante que pontua diversos arcos narrativos. O desconforto de episódios como a chegada de Connell em Dublin, a viagem com Helen para Sligo e as interações de Marianne e Alan, especialmente após o retorno da jovem da Suécia, foi estabelecido com maestria pela equipe de produção.
Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal relataram em entrevistas recentes terem passado por um processo longo e competitivo de seleção até serem escolhidos como os protagonistas de Normal People. Este é, inclusive, o primeiro papel de Mescal na televisão. Os diretores de elenco da produção da minissérie merecem elogios, no entanto, não apenas por terem assegurado como protagonistas uma dupla de atores que trabalhou bem em parceria e isoladamente, mas também por um impressionante elenco no geral. Mescal brilha como Connell, um personagem que desafia qualquer ator – quanto mais um tão jovem – e Edgar-Jones, leitora de Rooney, acerta o tom de Marianne logo de cara. No entanto, Normal People se torna uma série plenamente interessante pelo que trazem nomes como Sarah Greene (Lorraine) e Frank Blake (Alan). Aislín McGuckin está irretocável como Denise Sheridan e Eanna Hardwicke fez um belo trabalho ao comunicar a vulnerabilidade de Rob. Merecem destaque, ainda, Eliot Salt como Joanna, Fionn O’Shea como Jamie e India Mullen como Peggy, atores irlandeses que certamente ganharão espaço nos próximos anos.
Em uma produção extensa, cujo produto final gira em torno de seis horas de reprodução, merece elogios a equipe de edição. Igualmente, é louvável a parceria Lenny Abrahamson e Hettie MacDonald que, embora trabalhem em episódios diferentes, garantem um todo coeso. Vale lembrar que os seis primeiros episódios da minissérie foram coescritos por Sally Rooney e Alice Birch e dirigidos por Abrahamson, enquanto os seis últimos tiveram direção de MacDonald e são assinados exclusivamente por Birch (com exceção do episódio 11, escrito por Mark O’Rowe). Sublinho e celebro, ainda, a presença maciça de artistas irlandeses (na adaptação de uma obra irlandesa) e de mulheres na produção.
Normal People: Diferenças Livro x Série
Para aqueles que se questionam em que aspectos a produção de Normal People se descola do romance para dar vida aos personagens na TV, listo alguns aspectos que diferem adaptação e obra adaptada:
01. Denise, Alan e a relação da família Sheridan
No livro, Marianne conta para Connell que o pai – que morreu quando ela tinha 13 anos – batia na mãe dela. Quando ele pergunta se alguma vez Mr. Sheridan bateu na própria filha, Marianne responde que “às vezes”. Na série, ela responde que não.
O relacionamento de Marianne e sua mãe, Denise, é complicado em ambas as obras, mas enquanto no livro Denise jamais tenta se aproximar ou manifesta qualquer forma de carinho pela filha, na série há tentativas, ainda que problemáticas, de aproximação.
Para além disso, enquanto Alan é fisicamente agressivo com Marianne no livro desde o início. Denise desconsidera as reclamações da filha e classifica o comportamento de Alan como “rivalidade entre irmãos”.
Na série o abuso do irmão mais velho de Marianne é predominantemente psicológico até a última briga dos dois, que leva Connell a buscar Marianne em casa e ameaçar Alan. Não temos na série a cena em que Alan bate com o telefone em Marianne, por exemplo. Na cena em que no livro Alan cospe na irmã, na série ele joga em Marianne água suja da louça que ela estava lavando.
No livro, Marianne conta para Connell na Itália que na última vez em que ela havia estado em Sligo, Alan havia dito que ela deveria se matar. Quando Connell pergunta o que a mãe dela havia dito em resposta, Marianne diz que Denise simplesmente falou “não a encoraje”. Na série, Marianne diz que a mãe estava presente e que simplesmente se retirou da sala.
Na produção para a TV, também temos conversas em que a filha confronta a mãe sobre o comportamento de Alan e recebe como resposta que Denise nada faz porque não sabe como lidar com o filho. Embora tenhamos o rompimento final entre as duas (na série, Denise chega a pedir a chave do apartamento de Dublin de volta), há manifestações de carinho por parte da mãe (Denise pede para Marianne ficar em Sligo em uma ocasião e se ressente por não poder passar o Natal com a filha em outra).
02. A forma como Marianne lida com o passado com Connell em Sligo
No livro, quando Marianne e Connell se reencontram em Dublin, ele se surpreende com o tom aberto e amistoso que Marianne imediatamente adota com ele. De fato, imersa no novo universo social em que habita uma função muito diferente daquela que desempenhava em Carricklea, Marianne aceita Connell de volta em sua vida com aparente facilidade que, evidentemente, é acompanhada por tensões subjacentes.
Na série, embora também aberta a se reaproximar, Marianne não oferece uma recepção plenamente amigável a Connell quando os dois se encontram na festa de Gareth. Nessa ocasião, a tensão fica latente no tom da cena, enquanto em outras ocasiões, mais adiante, Marianne retoma algumas questões do relacionamento em Sligo.
Uma das manifestações dessas tensões acontece na série em uma cena em que Marianne e Connell conversam sobre os amigos dela e a jovem repete para ele algo que ele havia dito sobre os próprios amigos em Sligo: “…mas no fim das contas, eles são meus amigos. Você não entenderia.”.
Assim, algumas tensões que ficam delineadas no livro pela subjetividade dos personagens (compartilhada com o leitor pela narração) são transcodificadas na série como diálogos.
03. Menos discursos e debates de Marianne
Um dos aspectos da personalidade de Marianne que fazem ela se destacar em Sligo é sua natureza combativa até as mínimas questões. Com sua natureza questionadora incentivada pelo ambiente acadêmico em Dublin, Marianne frequentemente entra em debates acalorados sobre questões políticas e sociais. Esse comportamento incomoda Helen, por exemplo:
After that, Helen was determined to make friends with Marianne, as if to prove a point. When they saw her at parties Helen went out of her way to compliment her hair and clothing, and Marianne would nod vaguely and then continue expressing some in-depth opinion about the Magdalene Laundry report or the Denis O’Brien case. Objectively Connell did find Marianne’s opinions interesting, but he could see how her fondness for expressing them at length, to the exclusion of lighter conversation, was not universally charming. One evening, after an overly long discussion about Israel, Helen became irritable, and on the walk home she told Connell that she found Marianne ‘self-absorbed’.
Because she talks about politics too much? said Connell. I wouldn’t call that self-absorbed, though.
Helen shrugged, but drew a breath inwards through her nose that indicated she didn’t like his interpretation of her point.
She was the same way in school, he added. But she’s not putting it on, she’s genuinely interested in that stuff.
She really cares about Israeli peace talks?
Surprised, Connell replied simply: Yeah. After a few seconds of walking along in silence he added: As do I, to be honest. It is fairly important. Helen sighed aloud. He was surprised that she would sigh in that petulant way, and wondered how much she had had to drink. Her arms were folded up at her chest. Not being preachy, he went on. Obviously we’re not going to save the Middle East by talking about it at a house party. I think Marianne just thinks about that stuff a lot.
You don’t think maybe she does it for the attention? said Helen.
He frowned in a conscious effort to look thoughtful. Marianne was so totally uninterested in what people thought of her, so extremely secure in her own self-perception, that it was hard to imagine her caring for attention one way or another. She did not altogether, as far as Connell knew, actually like herself, but praise from other people seemed as irrelevant to her as disapproval had been in school.
Honestly? he said. Not really.
She seems to like your attention well enough.
Na série, após a ida para Trinity, vemos pouquíssimo esse aspecto da personalidade de Marianne em ação. A direção e o roteiro parecem enfatizar a atuação acadêmica de Connell, algo que já é sentido no romance, mas intensificado na produção audiovisual.
04. A escrita de Connell
Enquanto no livro só adquiridos uma noção de Connell enquanto escritor quando ele começa a trocar e-mails com Marianne durante as férias na Europa (quando ele menciona ter começado a escrever contos e ela diz que gostaria de lê-los se forem tão bons quanto os e-mails), na série vemos Connell submetendo contos já no sexto episódio. Como esse é o último episódio coescrito por Sally Rooney, podemos inferir que ela idealizou ou ao menos concordou que seria uma boa escolha artística para a série adiantar e reforçar a identidade de Connell enquanto autor. Como o episódio final da obra literária – a carta de aceitação para o MFA nos Estados Unidos – é estendido na série, essa escolha parece harmoniosa com o quadro geral da adaptação.
05. Robbie permanece em Sligo
Quando Connell decide ir para a Trinity College em Dublin seguindo o conselho de Marianne, ele vai na direção oposta dos amigos do colégio. Robbie e Eric vão estudar administração em Galway, onde originalmente Connell também estudaria Direito. Na série, Robbie não vai para a faculdade, permanecendo em Sligo. Vemos Connell bebendo com o amigo quando volta para a cidade nos fins de semana antes de conseguir um emprego em Dublin. Vemos os dois juntos novamente quando Connell volta para Sligo no verão após o rompimento com Marianne.
06. Relacionamentos mais duradouros
Alguns personagens que desaparecem de forma imediata no livro permanecem na série por mais tempo. O relacionamento de Marianne e Gareth, por exemplo, que nunca vemos propriamente terminar no livro, se estende por um período considerável na série, incluindo um rompimento desconfortável no episódio 5.
Nesse sentido, acompanhamos de perto o início e o desenvolvimento da relação entre Marianne e Lukas, da qual presenciamos apenas um episódio isolado na obra literária. No livro, nem ao menos sabemos ao certo a natureza do relacionamento. Na série, vemos os dois se conhecendo, saindo juntos e Lukas se adaptando às demandas de Marianne, elementos inéditos da obra audiovisual.
Na série, Helen termina com Connell em cena, em meio ao episódio de depressão que ele sofre após a morte de Robbie. No livro, apenas é relatado que eles terminaram o relacionamento duas semanas após o velório.
Ouvimos menos na série do que no livro, no entanto, sobre o rompimento de Marianne e Jamie, o que nos leva ao tópico 7.
07. O relacionamento de Marianne e Peggy
Marianne e Peggy têm uma amizade problemática, que se torna mais complicada após Sheridan se envolver com Jamie. No livro, Peggy adquire o hábito de manipular Marianne se autodescrevendo como sua melhor amiga e simultaneamente a ridicularizando em público. Quando Marianne termina com Jamie, Peggy cobra dela uma tomada de posição cuja natureza não fica muito clara. Pressionada, ela diz que “não quer escolher um lado”. Jamie estava, a essa altura, espalhando rumores sobre Marianne e expondo fotos íntimas da ex-namorada. As duas acabam se afastando e, do seu grupo de amigos do primeiro ano, Marianne continua próxima apenas de Joanna, que também rompe com os outros. Na série, os conflitos entre Marianne e Peggy são drasticamente atenuados. Por consequência, também não é dada muita ênfase às atitudes de Jamie após o término.
08. Lorraine e Connell
O relacionamento entre Connell e a mãe na série é muito próximo do observado na obra literária, mas algumas tensões que contribuem para a ansiedade de Waldron não foram incluídas na produção da BBC/Hulu. No capítulo 5, Connell visita a avó no hospital e menciona que ela “o odeia por estar vivo”. No penúltimo capítulo do livro, ele pergunta a Lorraine se ela não se arrepende de ter sido mãe adolescente e ela diz que não, classificando sua escolha como “a melhor decisão” que já tomou na vida:
I don’t regret it, by the way, she says. Having a baby. It was the best decision I’ve ever made in my life. I love you more than anything and I’m very proud that you’re my son. I hope you know that.
Na série, o fato de Lorraine ter sido mãe adolescente não parece exercer tensão considerável sobre Connell, já que em uma cena em que os dois conversam pelo telefone no episódio 6, ela brinca que o “erro adolescente bobo” que cometeu foi Connell e ele ri.
09. O transtorno alimentar de Marianne
No livro, Marianne desenvolve um transtorno alimentar não-especificado cuja primeira manifestação se dá após ela se retirar do colégio para estudar em casa. Ao longo da obra, principalmente em momentos de crise, há menções ao fato de que ela havia reduzido radicalmente suas refeições. Subsequentemente, outros personagens comentavam sobre a magreza e ao emagrecimento de Marianne. No velório de Rob, Connell e Eric percebem que ela havia perdido peso após a viagem para a Suécia (onde ela havia observado ter adquirido o hábito de comer um doce pela manhã e só se alimentar novamente por volta das 21h). Embora na série haja comentários sobre a magreza de Marianne nessa mesma cena, como eles não são acompanhados dos outros marcadores dos hábitos alimentares da personagem, esse elemento não parece ter sido plenamente incorporado à produção audiovisual.
10. A dinâmica do desfecho
A série, como o livro, deixa o desfecho da relação entre Connell e Marianne em aberto. No entanto, a forma como o arco final se desenrola é diferente nas duas obras.
Se no livro ficamos sabendo no último capítulo que Connell enviou uma submissão para o programa de mestrado em escrita criativa em Nova York e tudo é decidido entre os dois em uma cena, na série essa decisão é tomada ao longo do episódio 12.
Embora a descrição da nova rotina de Marianne como “uma pessoa normal” no último capítulo do livro possibilite uma série de leituras por seu tom ambíguo, a série reitera que a protagonista encontrou um equilíbrio saudável na sua rotina em Dublin que permite que ela escolha ficar por si mesma.
Na série é removida também a tensão em relação a Sadie. No livro, Marianne pergunta a Connell se ele está apaixonado pela colega que publicou o primeiro conto dele, já que foi Sadie quem sugeriu que ele se inscrevesse no programa de mestrado nos Estados Unidos enquanto Marianne nem ao menos sabia da submissão. Na série, Connell diz que um dos seus professores sugeriu que ele se inscrevesse. Assim, embora o desfecho do relacionamento fique no ar, saímos de Normal People – a série – sabendo exatamente em que pé Connell Waldron e Marianne Sheridan estão.
Normal People: Relação entre capítulos e episódios
A tabela abaixo oferece um guia geral da correspondência entre episódios e capítulos. É importante ter em mente, no entanto, que algumas equivalências não são exatas, especialmente para os capítulos que trazem cortes em flashback. Por exemplo, a ida de Marianne e Connell ao Ghost Estate é narrada no capítulo 4 (April 2011), mas a ida dos dois aconteceu ainda em março. O evento é contado a partir da recordação posterior de Marianne, mas como a série mantém uma ordem inteiramente linear neste ponto do enredo, a cena no Ghost Estate acontece ainda no episódio 02, que cobre março de 2011.
Local | Série (episódio) | Livro (capítulo) |
Carricklea, Sligo | Episódio 01 (S01E01) | January 2011 Three Weeks Later (February 2011) |
Carricklea, Sligo | Episódio 02 (S01E02) | One Month Later (March 2011) |
Carricklea, Sligo | Episódio 03 (S01E03) | Six Weeks Later (April 2011) Two Days Later (April 2011) Four Months Later (August 2011) |
Dublin | Episódio 04 (S01E04) | Three Months Later (November 2011) |
Dublin | Episódio 05 (S01E05) | Three Months Later (February 2012) |
Dublin | Episódio 06 (S01E06) | Two Months Later (April 2012) |
Carricklea / Dublin | Episódio 07 (S01E07) | Three Months Later (July 2012) Six Weeks Later (September 2012) Four Months Later (January 2013) |
Trieste, Itália | Episódio 08 (S01e08) | Six Months Later (July 2013) |
Suécia (Marianne) Dublin (Connell) |
Episódio 09 (S01E09) | Five Months Later (December 2013) |
Dublin (Connell) Suécia (Marianne) |
Episódio 10 (S01E10) | Three Months Later (March 2014) |
Carricklea, Sligo | Episódio 11 (S01E11) | Four Months Later (July 2014) Five Minutes Later (July 2014) |
Dublin | Episódio 12 (S01E12) | Seven Months Later (February 2015) |