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Resenha: Misfits: A Personal Manifesto (2021) de Michaela CoelLeitura em 8 minutos

Foto do livro "Misfits: A Personal Manifesto" de Michaela Coel. A capa tem um fundo preto e o título ocupa quase toda a capa.

Michaela Coel foi a primeira pessoa não branca e a quinta mulher a ser convidada a apresentar a palestra James MacTaggart Memorial Lecture, então em sua 43ª edição, em 2018. Ao longo de sua fala, que compõe a seção central e o âmago de Misfits: A Personal Manifesto, ela conta que até então jamais havia ouvido falar na MacTaggart, o evento mais prestigioso do Edinburgh International Television Festival. Coel brinca que isso não reflete algum tipo de desprezo pelo evento, já que na época ela também nunca tinha ouvido falar em “Depeche Mode ou Sarajevo”.

 

O texto da palestra não é estranho àqueles que assistiram à gravação da fala impactante da artista, disponível em diversas plataformas. Em sua versão em livro, no entanto, o texto é expandido com uma introdução e um epílogo em que Coel tece um complexo metafórico envolvendo seu relacionamento com mariposas – da repulsa a uma espécie de identificação com a prima outsider da borboleta – e a descoberta de sua anosmia (a perda do olfato) que recontextualiza a fala original e aprofunda o desafio proposta ao ouvinte, agora leitor, de interrogar sua cumplicidade com estruturas de poder problemáticas.

 

Eu acho importante fazer silêncio para si mesmo. Cinco minutos. Para verificar se você está bem. E interrogar sua própria moral e crenças em relação a como você opera. Mesmo que você já pense nessas coisas, por que não pensar um pouco mais, um pouco mais fundo? – Michaela Coel

 

Em sua fala na palestra MacTaggart, Coel se situa como uma misfit, uma pessoa que não se ajusta ou reflete os padrões de normatividade impostos, desde muito cedo. Tendo crescido em um conjunto habitacional em Tower Hamlets, a escritora conta que sua família, composta por ela, a mãe e a irmã, enfrentou agressões racistas verbais e não-verbais, como o dia em que vizinhos deixaram fezes na caixa de correio. Elas compunham uma das quatro famílias de pessoas negras que moravam no local.

Um senso de não-pertencimento acompanhou Coel na adolescência, quando os colegas criavam websites anônimos espalhando fofocas e segredos uns dos outros. Também alvo de ataques, Coel criou sua própria página, tendo aprendido a se defender como podia. Na hora de escolher uma carreira, a inquieta e criativa Michaela – introduzida às artes dramáticas muito cedo pela mãe, que precisava de uma atividade para ocupar a filha – abandonou a universidade de Birmingham após alguns semestres para se dedicar ao teatro. Ela foi a primeira mulher negra aceita pela Guildhall School of Music and Drama em meia década e durante o tempo que passou lá foi abordada com injúrias raciais em duas ocasiões, em uma delas por um membro do corpo docente durante um exercício. Quando uma colega fez o mesmo e Coel explicou por que o termo não deveria ser usado, a pessoa simplesmente a ignorou.

O período que a artista passou na Guildhall – instituição que ela jamais nomeia no livro – expõe formas como a indústria do entretenimento é estruturalmente excludente até mesmo nos seus espaços de aprendizado. Embora houvesse um discurso de que para se tornarem artistas todos deveriam estar conscientes da instabilidade inerente à profissão e do risco de enfrentarem uma vida de precariedade, em um “exercício de classe”, um professor pediu que todos aqueles cujos pais fossem proprietários de uma casa deveriam ir para o “Ponto A”, enquanto aqueles que não tivessem propriedade na família deveriam ir para o “Ponto B”. Ali, Coel se viu absolutamente isolada e exposta por um recorte de classe.

Tais exercícios de “reflexão sobre privilégios”, muito comuns em espaços profissionais em meados dos anos 2010, ficaram amplamente conhecidos por vídeos que circularam na internet. Atualmente, embora algumas empresas e departamentos insistam na prática, há uma consciência mais crítica voltada para a prática, que expõe aqueles que evidentemente já estão cientes das dificuldades específicas enfrentadas para ocupar seus lugares. Por que eles deveriam ser expostos para o benefício de ilustrar uma hierarquia de privilégios para pessoas que estejam em posições mais confortáveis?

Quando seus colegas e a administração da Guildhall descobriram que Coel havia começado um blog tratando de questões relacionadas aos problemas presentes na instituição, ficaram aborrecidos pela exposição e a confrontaram pelo que foi escrito. O padrão de pessoas que produzem ou contribuem para situações problemáticas, mas se tornam reativas quando veem suas ações apontadas sem refletir realmente a respeito do que está sendo colocado em pauta é um padrão recorrente em Misfits. Durante as filmagens de Chewing Gum, uma produtora gritou: “eu não sou racista!”, quando Coel reclamou da desigualdade do tratamento dispensado a uma atriz branca e aos atores negros do elenco. Coel jamais a acusara disso, mas sim de uma falta de perspectiva em relação às consequências produzidas pela desigualdade no cuidado com o elenco (prováveis resultados de negociações com agentes, Coel conclui). A própria Coel não se exclui desse padrão, contando sobre uma atriz malaia que fez um teste para Chewing Gum e considerou a história envolvendo sua personagem “bidimensional”. A escritora explica que sua primeira reação foi defensiva, mas que ao se permitir um momento de silêncio, concluiu que a atriz estava certa e reescreveu o roteiro. Relembrando o caso, ela diz que gostaria de ter “simplesmente escutado, gostaria de ter passado mais tempo pensando antes de agir” (p. 92). Evidentemente, ela nos convida a fazer o mesmo.

Chewing Gum Dreams, a peça que tornaria Michaela Coel famosa, foi seu projeto final em Guildhall. Em Misfits, ela descreve o processo de composição e a aposta que lançou sobre seu projeto autoral, investindo inclusive em uma estratégia para atrair o público para o teatro. Quando Coel recebeu uma proposta para adaptar a peça para a televisão e escrever o roteiro da série que se tornaria Chewing Gum, ela ficou eufórica: “Yes of course holy shit yes” (p. 52). O processo de entrada na indústria da televisão foi árduo e a administração da exposição que o sucesso de Chewing Gum trouxe também.

O relato de Coel expõe tanto a forma como produtores minimizaram a violência racista que ela e um colega sofreram em um set de filmagens, com moradores de um local não nomeado jogando pedras neles em uma ocasião, quanto o assédio sexual que ela sofreu. A primeira manifestação é verbal, por parte de um produtor em uma festa, e a segunda é física. As expectativas disfuncionais da indústria são expostas no fato de que, quando Michaela Coel foi violada sexualmente, as primeiras pessoas para quem ela telefonou, após notificar a polícia, foram os produtores da série, não sua família (p. 91). Na ocasião, ela estava virando a noite escrevendo roteiros para segunda temporada de Chewing Gum quando decidiu fazer uma pausa para encontrar alguns amigos, intervalo durante o qual o ataque aconteceu. Embora ela tenha pedido que o prazo para a entrega dos roteiros fosse estendido e a emissora fosse notificada do motivo, o chefe da divisão de comédia autorizou a extensão, mas não foi informado do que aconteceu com ela. Esse silenciamento também é, evidentemente, problemático.

 

Por que estamos oferecendo plataformas a misfits, anunciando-os como novos sucessos, enquanto eles se equilibram em escadas que rangem com pouca chance de mobilidade social? Eu não posso ajudar a conduzi-los para esta casa se houver portas dentro dela que eles não podem abrir. Isso me faz parecer cúmplice. O que posso fazer é ser transparente sobre minhas experiências, porque a transparência ajuda.

– Michaela Coel, 2021, p. 88

 

Em meio a tantas violências e estruturas inflexíveis, Coel questiona por que, se tantos de nós não se encaixam em padrões arbitrários – de comportamento, de beleza, de desejabilidade – deveríamos nos submeter a eles? Se uma pessoa que tradicionalmente não se encaixa nas estruturas de poder que regem, por exemplo, a indústria do entretenimento, é vista como interessante justamente pelo frescor da sua voz e perspectiva, por que ela deveria abrir mão da sua dissonância e literalmente se conformar aos padrões de comportamento (e apagamento) daquele setor? Coel acredita que o papel do misfit é permanecer dissonante. Ela propõe uma avaliação constante e radical da forma como podemos nos tornar cúmplices de estruturas problemáticas que possibilitam que violências como as descritas ao longo do livro se perpetuem. Ela adverte, no entanto:

 

Ao mesmo tempo, não desconsidero o fato de que há mérito em evitar o tipo de auto-escrutínio que encorajo aqui. E que talvez esses convites para transparência com o self devam vir com uma ressalva ou rótulo de aviso de que isso não necessariamente leva a mais felicidade. Autoilusão é uma das maiores ferramentas do cérebro: eu acreditava que a anosmia era um superpoder responsável pelo aprimoramento de meus outros sentidos, e me apegar a essa crença, embora falsa, forneceu uma maneira de eu lidar com isso, evitando qualquer sentimento de pânico, confusão e vulnerabilidade. (p. 100-101)

 

Misfits de Michaela Coel traz um questionamento preciso: como podemos nos relacionar com as estruturas de poder que nos cercam e nos fazermos ouvir sem nos tornarmos cúmplices das suas piores práticas? E você, onde fica nesse impasse?

Publicado por

Marcela Santos Brigida
Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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