A imagem de monstros geralmente é uma das primeiras coisas que vem à mente quando se pensa sobre o gótico. E talvez o mais popular entre eles seja a criatura de Frankenstein, de Mary Shelley (1818). A obra oitocentista foi adaptada e reimaginada diversas vezes para o cinema, para a televisão e para o teatro, o que revela uma permanência dos monstros que é perturbadora e tipicamente gótica: uma presença constante que não esgota a sua contemporaneidade.
A monstruosidade muitas das vezes é associada imediatamente à condição física de uma personagem, mas de maneira nenhuma é restrita a ela. Em Frankenstein, a narrativa nos faz questionar a monstruosidade da própria humanidade quando conduz uma reflexão sobre a maneira como a criatura é tratada pelo seu criador e pelas pessoas que ela encontra. Seu corpo disforme se torna o mais rudimentar sinal de monstruosidade e ela é frequentemente rechaçada, além de ter enfrentado o primeiro abandono de seu criador assim que foi concebida. A criatura é feita de restos mortais que Victor Frankenstein, cientista ambicioso de ideais prometeicos, recolhe de cemitérios e morgues na tentativa de remontar um corpo humano. A ideia central do cientista era reanimar a matéria humana, e embora o processo seja mórbido, o resultado é bem-sucedido (ao menos na sua intenção mais primária). Desse modo, dá vida à sua criatura, que é fisicamente grotesca e infamiliarmente humana/não humana. Frankenstein, logo após o ato de criação, pondera sobre o seu feito:
Como descrever minhas emoções diante de tal catástrofe ou dar aqui contornos àquele infeliz que, com tanto sofrimento e cuidado, eu lograra criar? Os membros eram proporcionais e os traços que eu escolhera para ele eram belos. Belos! — Meu Deus! Sua pele amarelada mal dava conta de encobrir o mecanismo de músculos e artérias debaixo dela; seu cabelo escorrido era de um preto lustroso; os dentes, de um branco perolado. Tais características luxuriantes, porém, apenas tornavam mais horrendo o contraste com o rosto enrugado, os lábios negros e retos e os olhos aquosos, os quais pareciam quase da mesma cor branco-acinzentada das órbitas em que se encaixavam (cap. 5, vol. 1).
Esse corpo monstruoso é feio e repugnante para Frankenstein, mas é o antropomorfismo da criatura que me interessa explorar aqui. Os monstros não são imagens exclusivas do gótico, ao menos não aquele que se consolida nos anos setecentos em contexto inglês. Afinal, é possível encontrá-los nas primeiras expressões literárias da região da Grã-Bretanha como em Beowulf, poema narrativo anglo-saxão. Há duas, aliás: Grendel e a sua mãe, seres bestiais que aterrorizam o mead-hall de Heorot, e quem Beowulf derrota em duas batalhas épicas. Seja com a finalidade de um alerta, pela tentativa de explicar algo desconhecido ou alguma “lei” divina, ou simplesmente para amedrontar e limitar, a verdade é que os monstros são figuras recorrentes em nosso imaginário cultural.
É interessante notar como os monstros não se limitam a animais bestiais (mitológicos ou não), a aparições fantasmagóricas, a corpos mais tecnológicos da atualidade como robôs ou à completa ausência de um corpo (no caso da inteligência artificial), mas é encarnado também por figuras antropomórficas. Nesse último caso, a poética gótica opera como uma bússola que reorienta o limite entre o que se considera humano e não humano (monstruoso). Além da criatura de Frankenstein, Mr. Hyde, em O médico e o monstro (Robert Louis Stevenson, 1886), também é uma personagem que tem a monstruosidade inscrita no corpo. Enquanto a criatura, como vimos, é feita de restos mortais, Mr. Hyde é o desdobramento violento e cruel de Dr. Jekyll. Tendo sempre lutado contra uma inclinação a comportamentos corruptos, Jekyll inventa uma poção que pode separar o seu lado bom do seu lado mau, quando se torna Mr. Hyde. Essa divisão, no entanto, mostra-se cada vez mais tênue quando o homem “bom” já não consegue mais controlar em que momento o “mau” pode vir à tona. Na primeira vez que Mr. Hyde surge na narrativa, ele é visto pisoteando uma menina e, somente porque foi encurralado por uma multidão irada, deu à família um cheque (em nome de Jekyll) na tentativa de reparar o acontecimento. Semelhante à criatura de Shelley, a constituição física de Hyde é o que primeiro trai a sua monstruosidade:
O sr. Hyde era pálido e quase um anão, dava a impressão de ser aleijado, sem nenhuma deformidade identificável, possuía um sorriso desagradável, comportara-se diante do advogado com um misto execrando de timidez e ousadia, e falava com uma voz rouca, sussurrante e pouco fluida; todos esses pontos depunham contra ele, mas nem todos juntos podiam explicar a repugnância, o ódio e o medo que inspirava no sr. Utterson e que ele nunca sentira antes.
“Deve haver alguma coisa a mais”, disse perplexo o cavalheiro. “Há alguma coisa a mais, se eu soubesse que nome lhe dar. Deus me proteja, o homem mal parece um ser humano! […] Ou será apenas a projeção de uma alma maligna que transpira através dos poros de seu invólucro de barro e assim o transfigura? Esta última, creio eu, porque, ah, meu pobre Henry Jekyll, se alguma vez li a assinatura de Satã num rosto, foi no de seu novo amigo” (cap. 2).
Esse corpo de insígnias monstruosas reflete concepções muito vitorianas: a ideia, muito bem ilustrada por sr. Utterson na passagem acima, de que uma alma maligna pode transparecer no corpo. A noção de que a aparência física poderia revelar a interioridade de uma pessoa vem da pseudociência conhecida como physiognomy. De acordo com ela, seria possível interpretar a personalidade e o caráter moral de alguém com base na sua aparência exterior, especialmente da face. Assim, um rosto marcado por cicatrizes, por exemplo, indicaria algum tipo de degradação moral (algo mais ou menos atualizado na contemporaneidade como o “scarred villain trope” de muitos filmes e séries: Darth Vader e Kylo Ren, o Coringa, Freddy Krueger, Thanos e Scar são alguns exemplos). No século XIX, o médico e cientista estadunidense Samuel George Morton publicou Crania Americana; or, A Comparative View of the Sulks of Various Aboriginal Nations of North and South America (1839), um estudo sobre craniometria muito inspirado pela frenologia, que investigava a relação entre o crânio e as características mentais de uma pessoa. No livro, Morton discute a associação entre o crânio e os costumes de povos indígenas, o que, para ele, justificaria a “superioridade” caucasiana. Algo que obviamente serviu, naquele período, como motor científico para o racismo e para a exploração de pessoas escravizadas.

Desse modo, a monstruosidade aparente da criatura de Frankenstein e de Mr. Hyde, por exemplo, é percebida desde o primeiro contato visual. Mas e quando ela não é aparente? Ou ainda: e quando é possível escondê-la? Os vampiros são um ótimo exemplo desse tipo de monstro que se camufla na multidão. Em Drácula (1897), de Bram Stoker, o conde mantém a aparência de humano e as suas vampiras são ainda muito sedutoras, o que sugere um aspecto predatório já que alguns animais possuem atributos físicos aprazíveis para atrair suas presas. No caso de monstros similares a nós, humanos, o limiar que divide nós x eles não é somente invisível, mas se torna praticamente inexistente. Assim, uma leitura que foque menos numa monstruosidade inscrita na constituição física e mais no seu funcionamento especular entre o eu e o outro revela como, ao longo do tempo e nas mais diversas expressões artísticas, os monstros caminham entre nós. E é essa função especular do monstro que, a meu ver, triunfa na poética gótica com sua propensão subversiva e desestabilizante. Se não sabemos mais onde começamos e terminamos justamente pela falta de oposição evidente a esse outro monstruoso, então em que pé fica uma noção fixa de sujeito?
Já vimos que a representação de monstros é recorrente em nosso imaginário cultural e, logo, em nossa produção artística. Como uma figura disruptiva, ele incorpora as alteridades, os medos e os anseios que costuram as sociedades ao mesmo tempo em que mostra, por vezes de forma empírica, que as fronteiras entre o bem e o mal, o moral e o imoral, o humano e o não humano não são exatamente fixas. A própria etimologia do termo sugere a sua complexidade: a palavra monstro é de origem latina e significa tanto monstrare, “demonstrar”, quanto monere, “alertar”. Ele é, então, um aviso/advertência e um testemunho: é a marca de Caim daquele que ousou cruzar algum tipo de limite, e por isso tem uma função importante como ferramenta social, da mitologia à poética gótica.
Em Monster Theory (1996), o pesquisador Jeffrey Jerome Cohen estabelece sete teses como um método de leitura de culturas a partir dos monstros que ela mesma cria. Quer dizer, é a projeção que fazemos de nossos medos e anseios que desencadeia a criação dos mesmos monstros que nos aterrorizam. Para Cohen, o monstro é a incorporação de certo momento cultural, de um tempo, sentimento e lugar. Isto é, o corpo do monstro é carregado de significado cultural e, portanto, existe para ser lido e visto. A adaptação de Francis Coppola de Drácula, Bram Stoker’s Dracula (1992), tem um subtexto homoerótico, é claro, mas também surge num momento em que o mundo, assolado pela epidemia de Aids, estava preocupadíssimo com a troca de fluidos corporais. Então, como argumenta Cohen (1996, p. 4), como uma “letra numa página, o monstro significa algo para além de si: é sempre um deslocamento, sempre habita a lacuna entre o tempo de revolução que o criou e o momento em que é recebido para nascer de novo”.
É por isso também que o monstro é quem traz o anúncio de uma crise de categoria. Porque ele não pode nunca ser completamente apreendido e, portanto, sempre escapa (somente para retornar, mesmo que ligeiramente diferente), ele recusa qualquer categorização muito simples. Seu corpo híbrido é uma “forma suspensa entre formas que ameaçam desmantelar distinções” (Cohen, 1996, p. 6). A sua liminaridade ontológica faz com que surja, num cenário muito ditado pelo pensamento binário ocidental, como uma espécie de terceiro termo que questiona e coloca em choque posições consideradas opostas e intransponíveis. Os orcs, trolls e dragões de O Hobbit (1937) e de O senhor dos anéis (1954), de J. R. R. Tolkien, por exemplo, deixam muito claro algo que a corporalidade de Bertha Mason, em Jane Eyre (Charlotte Brontë, 1847), deixa evidentemente implícito ou aparentemente explícito. Como um corpo feminino desviante no norte da Inglaterra (tanto pela raça quanto pela violência — esta talvez um produto da própria violência que sofrera, daí a loucura), a sua existência espectral em Thornfield Hall opera também como um monstro, uma presença-ausente que a todo momento nos lembra da falácia de um feminino domado e representado por uma figura angelical, ou até mesmo de uma concepção de humano e civilização muito bem delimitadas (predominantemente branco, masculino e europeu) — figuras que ela desmantela quando incendeia Thornfield Hall e causa o acidente que deixa Rochester cego. O corpo feminino é um espaço de ansiedades científicas, sociais, filosóficas e políticas, então não é de espantar que a mulher seja, talvez, um tipo de monstro que mais coloque em crise o projeto de construção de um corpo e de uma identidade muito fixos. Quando ela ultrapassa os limites do seu gênero, é prontamente suscetível à monstruosização.
O seu antropomorfismo infamiliar (uncanny) é ao mesmo tempo similar e diferente do homem, o modelo essencial no qual é baseado o humano, além de carregar um tipo de preocupação que precisa ser vigiada e controlada de maneira constante. Para o pesquisador do gótico David Punter (2016, p. 101), o corpo da mulher, quase sempre aberto à possibilidade de contaminação pela presença de um outro, o do bebê, é a porta de entrada para a encarnação do ab-humano, que ele caracteriza de modo semelhante ao abjeto, isto é, aquilo que resta do humano e precisa ser descartado para que se mantenha uma vida civilizada não contaminada. Assim, se o monstro é uma entidade corporal que desvia da norma (o homem), então “o corpo feminino compartilha com o monstro o desprivilegio de trazer à tona uma mistura de fascínio e horror” (Braidotti, 1994, p. 81, grifo original). Esses dois sentimentos conflitantes, que no gótico tornam-se quase complementares, outorgam à mulher o seu estatuto monstruoso.
Por isso não é difícil encontrar mulheres monstruosas na literatura. As linhas que dão silhueta à sua humanidade são tão precárias que um passo para além do que é considerado do reino da feminilidade implica na sua destituição da situação “mulher”. Lady Macbeth, de William Shakespeare (Macbeth, 1623), é uma personagem que deixa muito claro a maneira como é preciso desfazer-se de um gênero limitado demais para agir para além do campo que lhe foi ofertado. Ciente de que precisaria desempenhar atos cruéis para assegurar o futuro que desejava, ela clama aos espíritos: “tirai-me o sexo,/ E me preencham, da cabeça aos pés,/ Da mais terrível crueldade” (Shakespeare, I5.38-48). Além de Lady Macbeth, muitas outras personagens testam os limites do feminino. Algumas a precedem e tantas outras a sucedem: Lilith, Medeia, as Fúrias, Clitmnestra e Semíramis, as shrews e as scolds, as suffragists e as suffragettes, além de personagens do século XXI presentes em Jennifer’s Body (dir. Karyn Kusama, 2009), Garota Exemplar (Gillian Flynn, 2012), Mulheres Empilhadas (Patrícia Melo, 2019) e Promising Young Woman (dir. Emerald Fennell, 2020), por exemplo. Nessas obras, vaginas dentatas tornam-se vaginas voadoras que se vingam de abusadores ou sobem para a boca para devorar homens.

Outra tese interessante de Cohen é que o medo que se sente do monstro é, na verdade, uma espécie de desejo. E do que se trata esse desejo? Ele surge da falta ou da proibição: deseja-se aquilo que não se tem, ou aquilo que não se é mas gostaria de ser. Então se os monstros são o desdobramento de anseios nossos, o que eles querem dizer de nós? Em seu funcionamento especular, o monstro gótico prospera. Como um corpo em constante trans-formação (o revenant ou arrivant), ele materializa do lado de fora algum conhecimento interior que se esconde. Para a pesquisadora Margrit Shildrick, em Embodying the monster (2002, p. 4):
Ao buscarmos confirmação da nossa própria subjetividade naquilo que não somos, o que vemos refletido no monstro são as fugas e fluxos, as vulnerabilidades no nosso próprio ser incorporado. Os monstros, então, são profundamente perturbadores; nem bom nem mau, dentro ou fora, nem eu ou outro. Pelo contrário, são sempre liminares, recusando-se a permanecer no lugar, transgressores e transformadores. Eles perturbam a ordem interna e externa e derrubam as distinções que estabelecem os limites do sujeito humano.
O monstro transborda de nós e revela as nossas próprias vulnerabilidades. Torna-nos mais humanos, daí serem tão perturbadores. E, ao contrário do que se pode imaginar, são existências profundamente afirmativas. Afirmativas porque iluminam as nossas lacunas não para rechaçá-las, mas para completá-las. Para o filósofo e psicanalista espanhol Paul B. Preciado, em Eu sou o monstro que vos fala (2022, p. 36), a sua monstruosidade como um homem transsexual é um “passo que avança no vazio, indicando a direção de um outro mundo”. Em nosso mundo, os monstros tomam a forma de seres assustadores, embora nem sempre fisicamente distintos, mas que certamente surgem para nos lembrar de que o espaço entre o eu e o outro não é negativo, passível de aniquilação, e sim aquilo que nos une. Mais uma vez, extremamente sensível e por vezes mais humana que os próprios humanos, a criatura de Frankenstein reflete:
Enquanto eu lia, porém, debrucei-me sobre meus próprios sentimentos e condição. Percebi que eu era parecido, mas ao mesmo tempo estranhamento diferente dos seres de que tratava minha leitura e daqueles cujas conversas eu ouvia. […] Minha pessoa era hedionda e minha estatura, a de um gigante. O que isso significava? Quem era eu? O que era eu? De onde vinha? Qual era meu destino? Eram perguntas que voltavam continuamente, e eu não conseguia respondê-las (cap. 7, vol. 2).
Os nossos monstros somos nós mesmos.
Referências
BRAIDOTTI, Rosi. Nomadic Subjects. Nova York: Columbia UP, 1994.
BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. Tradução: Fernanda Abreu. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2021 [1847].
COHEN, Jeffrey Jerome. Monster Theory. Mineápolis & Londres: University of Minnesota Press, 1996.
PRECIADO, Paul B. Eu sou o monstro que vos fala. Tradução: Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
PUNTER, David. The Abhuman Remains of the Gothic. In: PUNTER, David. The Gothic condition. Cardiff: University of Wales Press, 2016. p. 96-105.
RENSCHLER, Emily S.; MONGE, Janet. The Samuel George Morton Cranial Collection: historical significance and new research. Penn Museum. Disponível em: https://www.penn.museum/sites/expedition/the-samuel-george-morton-cranial-collection/ Acesso em: 18 mar. 2025.
SHAKESPEARE, William. Macbeth [1623]. In: BRAUNMULLER, A. R. (ed.). The New Cambridge Shakespeare: Macbeth. Cambridge: Cambridge UP, 2008 [1997]. p. 118-254.
SHELLEY, Mary. Frankenstein, ou o Prometeu moderno. Tradução: Christian Schwartz. São Paulo: Penguin Companhia, 2015 [1818].
SHILDRICK, Margrit. Embodying the monster. Londres: Sage, 2002.
STEVENSON, Robert Louis. O médico e o monstro. Tradução: Jorio Dauster. São Paulo: Penguin Companhia, 2015 [1886].
Publicado por
Paula Pope Ramos é doutora em Literaturas de Língua Inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/CAPES. Sua pesquisa se debruça sobre a figuração da mulher vingativa na poética gótica do século XIX inglês, perpassando a ligação entre mulher e monstro, monstruosidade e gênero. No mestrado (UERJ, 2021), pesquisou a dessexualização da personagem Victoria di Loredani no romance gótico Zofloya, or the Moor (Charlotte Dacre, 1806). É licenciada em Letras/Inglês (UFRRJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2022-2023). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, com especial interesse na poética gótica e suas reflexões sobre gênero, corpo feminino, monstrousidade e sexualidade.