Megera, barraqueira, bruxa, falastrona, desordeira, grosseira, difícil. A mulher rebelde é sempre acusada de falar demais, representando o que é da ordem do incontrolável mesmo no mundo masculino mais bem ordenado. Como nos diz Virginia, quando uma mulher fala, há sempre algo a romper. Assim o é hoje e assim o é desde o princípio. O arquétipo da megera é uma figura cômica de origem medieval, como a Mulher de Bath dos Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer, e se enraizou na cultura ocidental através da extensa galeria shakespeariana, entre elas Catarina, Beatrice, Paulina e Adriana.
Na comédia romântica A megera domada, quando William Shakespeare criou Catarina, uma moça desafiadora, falastrona, “famosa por sua língua viperina”, o dramaturgo não apenas se baseou em uma rica tradição literária medieval na qual a megera é “uma esposa tagarela, dominadora e intratável” (Brown, 2003, grifo meu), mas também fez mudanças significativas no arquétipo. Embora tenha entrado para a história como a megera mais emblemática do teatro elisabetano-jaimesco, Catarina rompe com o arquétipo medieval tradicional, pois já era rotulada de megera antes mesmo do casamento – “Catarina, a megera. Belo apelido para uma donzela” (1.2). Catarina é a primeira megera a ser retratada primeiro solteira, depois casada e domesticada. Na pena habilidosa do Bardo de Avon, a megera deixa de ser um sintoma da misoginia medieval contra mulheres casadas e se transforma em um índice de autonomia feminina.
O enredo principal da peça encena a corte a duas jovens aparentemente situadas em lados opostos do ideal de comportamento feminino da época: Catarina é a “megera” e Bianca, a “boazinha”. Os pretendentes de Bianca se esforçam para arranjar um marido para Catarina, uma vez que o pai só permitiria o casamento da caçula se conseguisse desencalhar a mais velha. Catarina a todos atormenta. Ela tortura a irmã, grita com os pretendentes de Bianca, briga com o pai e troca insultos com Petrucchio logo no primeiro encontro dos dois, chamando-o de “burro”, “grosseirão” e “imbecil” (2.1). É difícil identificar os motivos de sua “megerice”, mas as especulações vão desde a tentativa de chamar a atenção paterna até ciúmes da fila de pretendentes da irmã. Ainda assim, como diz Hortênsio a Petrucchio, ela é “rica o bastante, jovem e bonita” (1.2); se fosse “suave e gentil”, não lhe faltariam candidatos, mas o silêncio a insulta.
Presa em uma sociedade que espera das mulheres obediência, castidade e silêncio, Catarina sabe que sua língua ferina é um instrumento de poder. Se comportar como uma megera mantém todos afastados, o que lhe é muito conveniente. Ela está determinada a não ser governada por ninguém, muito menos por um marido. Muitos dizem que seu discurso final é uma simulação, que Catarina não foi domesticada. Isso nos permite supor que sua dissimulação é intencional, e usada como um recurso de autoproteção contra pretendentes durante toda a peça. O que de fato sua agressividade nos informa é que ela não participa da política de caça-maridos, recusando, assim, a hierarquia patriarcal. Ao contrário da megera tradicional, ela não faz uso de sua eloquência verbal para ter poder sobre os homens, e sim para mantê-los afastados.
Catarina foi rotulada de megera – “a mais megera de todas” (5.2) – porque era esse o termo disponível para caracterizá-la no campo da literatura. Mas, em sua construção, Shakespeare também recorreu à figura histórica da scold[1] – a mulher sem marido que perturbava a vizinhança. Quando Lynda Boose afirma que, “em A megera domada, Catarina é a arquetípica barraqueira cujo crime contra a sociedade é sua recusa em aceitar a chamada ordem natural da hierarquia patriarcal”, a crítica pressupõe uma intercambialidade entre os termos shrew e scold, “megera” e “barraqueira”, como comumente aparece na fortuna crítica da peça.
Nos últimos anos, a filósofa italiana Silvia Federici alcançou grande notoriedade devido ao forte impacto que seu livro Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva produziu nos estudos feministas e para além deles. Segundo a professora e pesquisadora Fernanda Medeiros, se “Federici ajuda a construir o quadro do século XVI e início do XVII como um contexto de guerra contra as mulheres”, o historiador inglês David Underdown “contribui com sua análise minuciosa das “mulheres rebeldes” na Inglaterra no início da modernidade, e a perseguição que sofreram”. No ensaio “The Taming of the Scold”, Underdown mapeia três categorias das mulheres que nomeia “rebeldes”: a barraqueira [scold], a bruxa [witch] e a esposa mandona [domineering wife].
As barraqueiras eram, em geral, mulheres pobres, párias sociais sem nenhum tipo de proteção familiar ou comunitária, que perturbavam verbalmente a vida pública e violavam a paz social. As bruxas eram comumente mulheres pobres de meia-idade ou idosas (cf. Macfarlane, 1970[2]), e não era incomum, segundo Underdown, que ambas as acusações estivessem conectadas. Por último, eram consideradas esposas mandonas as mulheres que batiam em seus maridos e contra eles se rebelavam.
Underdown ainda explica que, em nome da manutenção da autoridade patriarcal, essas mulheres eram perseguidas por causa de uma “obsessão pública” com as falastronas. Enquanto as esposas mandonas sofriam com rituais de humilhação pública, como os skimmingtons, as barraqueiras e bruxas eram legalmente processadas, enfrentando mesmo punições como a morte. Quer fossem barraqueiras, bruxas ou esposas mandonas, essas mulheres eram rotuladas e punidas como ofensoras da sociedade devido à sua língua rebelde, indicadora de suas frustrações em relação aos maridos, comunidade ou figuras de poder dentro ou fora de casa. Ou seja, no início da modernidade, o uso do discurso considerado ruidoso estava intimamente conectado à noção de rebeldia feminina.
Em sua pesquisa sobre as dicções das personagens femininas de Shakespeare e seus contemporâneos, Fernanda Medeiros aponta o fato de que Underdown não faz uso do termo shrew, enfatizando a distinção das categorias “megera” e “barraqueira”: “ao amalgamar ‘shrews’ e ‘scolds’, a crítica shakespeariana ignora uma diferença importante entre a ‘rebeldia’ no espaço privado e no espaço público, além de uma diferença de classe social”. Assim, a “crise de ordem” que se instala na primeira modernidade foi um fenômeno de gênero e classe social.
Ao fazer combinações inusitadas entre a megera – que pode ser lida como uma representação literária das esposas mandonas – e as figuras históricas da barraqueira e da bruxa, Shakespeare cria suas próprias versões de “mulheres rebeldes”, como se atesta nas personagens de Catarina, Paulina, Lady Macbeth, Emilia, Margaret e outras. Mas se em minha pesquisa de mestrado[3] propus que Catarina poderia ter sido chamada simplesmente de “rebelde” em vez de qualquer um dos rótulos anteriormente mencionados, na continuidade da minha pesquisa vou além, acreditando que, em sua caracterização de jovem, solteira, rica e engenhosa, ela prenuncia as scornful ladies, ou moças desaforadas, que vão permear a literatura inglesa a partir de Shakespeare até o romance inglês do século XIX. Na longa trilha que se desenha, Beatrice, de Muito barulho por nada – outra famosa megera do teatro shakespeariano – é a primeira scornful lady: uma jovem megera que exerce seu direito de escolher um marido. Por causa de seu espírito independente, ela é conquistada, mas não domada, pelo amor ou pela engenhosidade.
Não foi de imediato, só depois de certo tempo é que fui compreender por que a questão da fala feminina me era um tema tão caro. A princípio, o fato era o de que eu queria estudar personagens femininas e modelos de transgressão feminina. Mas aí um desses fatos corriqueiros da vida aconteceu. Uma amiga que me era muito querida me chamou de grosseira, porque, segundo ela, eu fui rude ao expressar minha opinião em um debate em sala de aula. Nem preciso dizer que essa amiga era a “boazinha” – tão fofa, ela, sempre preocupada em agradar a todos. E esse senso comum de que a potência vocal é assertividade na boca do homem e grosseria na da mulher não parava de rondar meus pensamentos. Não vou mentir: aquilo me perseguiu de uma maneira tão profunda, que escrevi 100 páginas. Afinal de contas, eu também queria ser amada.
Foi assim que a minha pesquisa sobre a megera nasceu – sobre os escombros de um eu profundamente ferido. Meu ponto de partida foi refletir sobre o arquétipo da megera – um modelo de “grosseria” no discurso feminino – e suas possíveis representações na obra de Shakespeare, uma vez que nossa experiência com essas personagens é condicionada não apenas pela tradição acumulada e pela recepção crítica do Bardo, mas também pela história atual do mundo em que vivemos. Fato é que vivemos em mundo profundamente ressentido da expressão verbal feminina. Você pode falar, desde que seja algo com que todos estejam de acordo, mas o ideal mesmo é que você apenas sorria e acene.
A megera é ao mesmo tempo arquétipo e símbolo da exigência de uma identidade individual feminina para além do controle masculino. Ao investir no estudo das personagens femininas focalizando os processos de hibridização que permeiam o arquétipo da megera, busco enfatizar o fato de que essas personagens participam da construção histórica dos lugares de fala da mulher e o que elas revelam sobre nossos próprios preconceitos de gênero no mundo contemporâneo, bem como sobre as projeções que fazemos sobre a modernidade.
Quanto a mim, depois de muitas lágrimas, muitas páginas e uma amiga a menos, compreendi que vão me chamar de grosseira, de difícil, todas as vezes em que eu não couber numa caixa que fizerem para mim ou não aceitar menos do que mereço. Também é importante não se esquecer de que é sempre tempo de ir embora dos lugares que não nos cabem. É preciso abandonar o eu que planejamos ser para que possamos viver o eu que nos espera.
E para terminar esse primeiro lampejo do eu que se apresenta a vocês, agradeço a Marcela Santos Brigida por esse projeto que resgata a força comunal feminina e agradeço a Fernanda Medeiros por sua generosidade, comprometimento e resiliência ao caminhar comigo verso a verso, iluminando o que era sombra mesmo em face de todo tipo de adversidade. E dedico a minha primeira coluna à memória da minha avó, Elza Novais, a maior megera que conheci. A amarei até o último dos meus dias, e mesmo depois.
Referências:
BOOSE, Lynda E. Scolding brides and bridling scolds: taming the woman’s unruly member. Shakespeare Quarterly, v. 42, n. 2, p. 179-213, 1991.
BROWN, Pamela Allen. Better a shrew than a sheep: women, drama and the culture of jest in early modern England. Ithaca: Cornell University Press, 2003.
JARDINE, Lisa. Still Harping on Daughters: Women and Drama in the Age of Shakespeare. London: Harvester Wheatsheaf, 1983.
MEDEIROS, Fernanda. Calibã e a bruxa, “mulheres rebeldes” e dicções femininas no teatro shakespeariano. In: JORDÃO, Adriana; MEDEIROS, Fernanda. Literaturas de Língua Inglesa: leituras interdisciplinares. Vol. VII, 2022, p. 46-58.
UNDERDOWN, David E. The taming of the scold: the enforcement of patriarchal authority in early modern England. In: FLETCHER, Anthony; STEVENSON, John. (ed.). Order and disorder in early modern England. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p. 116-136.
SHAKESPEARE, William. A megera domada. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2017.
[1] O termo scold não possui tradução assentada em língua portuguesa; assim, a tradução “barraqueira” é de autoria de Fernanda Medeiros, que a sugeriu durante o processo de orientação de pesquisa.
[2] MACFARLANE, Alan. Witchcraft in Tudor and Stuart England: A regional and comparative study. London: Routledge, 1999 [1970].
[3] Minha pesquisa sobre a megera é fruto da dissertação de mestrado intitulada Nem megera, nem boazinha: a voz desafiadora das mulheres rebeldes de Shakespeare [Neither shrew nor sheep: the defiant voice in three of Shakespeare’s female characters], na qual analisei as personagens Catarina, Paulina e Lady Macbeth, com financiamento da CAPES, sob a orientação da Profa. Dra. Fernanda Medeiros entre 2020 e 2022, no Programa de Pós-Graduação em Letras da Uerj.