Um clichê, uma leitura banal, um livro de cabeceira.
Agatha Christie permeou a juventude de muitos adolescentes e adultos durante anos e vem retornando com cada vez mais força no mercado editorial e cinematográfico. Somente nos últimos dez anos foram adaptados quinze de seus romances, entre seriados e filmes, com destaque para a atuação de contracenados por grandes estrelas como David Suchet, Glenn Close, Gillian Anderson, entre outros.
Primeiro, gostaria de retomar à “Hora Zero” (parafraseando outro romance da autora de 1944) e apresentar a “Duchess of Death” (Dama do Crime), Agatha Mary Clarissa Miller. Segundo o site oficial da autora, no mercado literário, Agatha Christie só seria vencida em termos de vendas por William Shakespeare e a Bíblia. A autora nascida em 15 de setembro de 1890, filha de um rico americano e uma mãe irlandesa, passou a residir em hotéis na França, após uma grave crise financeira familiar, tendo sido educada formalmente no modelo francês. Em 1914, casou-se com Archie Christie, viajando junto à British Empire Exhibition. Durante essas viagens, aprendeu a surfar, levando uma vida aventureira ao lado do marido, com quem foi casada até 1928. Após o divórcio, Agatha viajou no Expresso Oriente, ambiente em que se dá um dos seus romances mais famosos. Casou-se novamente, com Max Mallowan, levando uma vida de viagens pelo Oriente. Faleceu em 10 de janeiro de 1976 de pneumonia, tendo o cuidado de pôr um ponto final na vida de seus famosos personagens detetives, Poirot (em Cai o Pano, 1975) e Miss Marple (em Sleeping Murder, 1976). Sem querer plasmar sua vida com as aventuras de seus suspenses, Christie usou de diferentes ambientações para apresentar planos de fundos interessantes às suas narrativas. Poderíamos inclusive falar sobre a assimetria feita por ela em sua ideia de exótico e da leitura da sexualidade frente ao que considerava “diferente”, mas fica para outra oportunidade.
Segundo Vanessa Lopes Lourenço Hanes, as traduções das obras de Agatha Christie no Brasil datam da década de 1930, inicialmente traduzidas e publicadas pela Editora Globo com sede no Rio Grande do Sul. A primeira tradução encontrada é da obra “O Assassinato de Roger Ackroyd” datada de 1933 e assinada por Heitor Berutti. A tese defendida por Hanes é a da tradução como caminho de entrada da autora inglesa para o cânone de literatura traduzida no Brasil. A popularização em massa da literatura de mistérios, posta lado a lado com a literatura compreendida como modernista canônica brasileira, culmina na longevidade da leitura feita por essas obras até hoje e, inclusive a recente republicação feita pela Harper Collins.
Essa chamada Golden Age dos romances de crimes, trazem novos elementos que se apresentam na literatura de Christie de forma diferenciada. Passam a alocar o crime dentro das casas e não mais nas perigosas ruas de Londres, sob a premissa de um desconhecido sem rosto que vitimiza os incautos. Agora, segundo a leitura de Silvia Rosivalová Baučeková, os criminosos não possuem gênero, classe social ou raça, e está acabada a oposição entre homens e mulheres, recalculando-se a rota para um eles contra os outros. Segundo Baučeková, o que Agatha Christie chama de “the salt of the Earth” (o sal da Terra) seria o que entenderíamos como uma das categorias de mulheres conservadoras, ou se quisermos retomar uma nomeação clássica inglesa, “o anjo do lar”. Ela seria a mulher que renuncia a sua profissão para casar-se com o homem dos seus sonhos, tornando-se a senhora da casa de campo. Outros tipos de mulheres surgem na literatura de Agatha Christie e essas nos interessam mais, como as mulheres independentes ou consideradas “excêntricas”. De primeira mão, não conseguia entender meu incômodo nas categorias mobilizadas por ela, já que eram comuns no período histórico em que esses romances estavam sendo escritos. Acabei ficando com o problema por mais alguns anos.
Enquanto relia as obras em junho desse ano em uma viagem a Ouro Preto, com longas nove horas de ônibus para me ocupar, comecei a perceber como as mulheres apareciam nos romances de Christie (naquele momento lia A noite das bruxas, obra recentemente adaptada aos cinemas)
Eu mesma fui uma jovem leitora dos mistérios de Hercule Poirot e Miss Marple, preferindo sempre as investigações comandadas pelo detetive belga de baixa estatura, bigode interessante e hábitos peculiares. No entanto, foi em um dos romances que ele não aparecia que fiquei intrigada com algumas representações femininas, e, quando fui gentilmente convidada por Bárbara Novais e Mariana Pivanti para colaborar na coluna (obrigada de novo, meninas!), me vi interessada em mexer com essa inquietude.
Quando tinha quinze anos, li pela primeira vez A Casa Torta (Crooked House, 1949), minha mãe sempre havia sido fã desse tipo de histórias e, não tendo uma biblioteca à disposição, gostava de pegar seus livros escondidos e levar para a escola e ler durante o recreio, na edição do Círculo do Livro, com tradução de Carmen Ballot. Hoje já se sabe que os nomes de alguns tradutores são inventados e escondem os responsáveis reais das obras, mas isso não era uma preocupação que passasse por minha cabeça. Logo de início, meu desconforto era pela falta de nossos “heróis” costumeiros. Somos conduzidos na história por Charles Hayward, um homem comum inserido no contexto militar e que tem um pai detetive da Scotland Yard aposentado, que durante sua estadia no Egito conhece Sophia Leonides. Apaixonado, ele retorna do Cairo para encontrar sua amada em uma complexa suspeita de assassinato de seu avô milionário, Aristides Leonides, falecido aos 85 anos por envenenamento. Não temos uma visão da ação, apenas as repercussões guiadas pelos olhos pouco confiáveis de Charles, que apaixonado por uma das suspeitas, tenta resolver o caso da forma menos perturbadora para a família que almejava entrar.
A primeira reação de Charles ao observar a construção é de ser uma casa torta comandada por um homem de aparência torta, esquisita, criando uma estranha simetria entre dono e posse.
“E, uma coisa curiosa, a casa dava a impressão estranha de ser mesmo torta – e eu imaginei o porquê. Parecia um chalé, mas era um chalé de proporções desmedidas. Como se olhássemos para uma casa de campo através de uma lente de aumento. As vigas oblíquas, os oitões, os frontões; tratava-se de uma casinha torta que crescera como um cogumelo em uma noite! Era a ideia que um grego – gerente de restaurante- fazia da Inglaterra. Destinava-se a ser uma residência inglesa típica, mas fora construída com as proporções de um castelo.” (Christie, 1948, p. 29)
A casa era dividida de forma a simular uma espécie de independência entre o pai, sua cunhada e seus dois filhos. Sua individualidade e unicidade combinava com o “arquiteto” original que desejava que a casa fosse um panóptico, mantendo todos em seu controle, sem que percebessem. Sophia é quem recepciona Charles, uma moça sem profissão, que rapidamente toma o lugar de orientadora familiar no lugar do avô, seu trabalho é manter todos juntos e bem. É ela quem dá a primeira informação sobre esse grupo familiar de pessoas:
“Sophia estremeceu ligeiramente e apertou as mãos:
– Porque é a verdade – respondeu em voz baixa – É muito importante, Charles, que eu o faça compreender isto: Olhe, somos uma família muito estranha… Há muita crueldade em nós… várias formas de crueldade. Isso é o que mais me aflige. As diversas formas de crueldade. […] Sim, acho que sim…, mas senti um pouco de medo dessas coisas. Das pessoas, cheias de retidão, porém cruéis ao mesmo tempo. Depois temos a minha mãe… uma atriz. Uma pessoa adorável, mas despida de qualquer senso de proporção. Uma dessas egoístas inconscientes que só conseguem enxergar os problemas na medida em que eles a afetam. Às vezes é de assustar, sabe?” (p. 32)
A cada interação de Magda West (Leonides por casamento), uma nova personagem surge para interagir, em geral “dirigida” pela filha, Sophia (“-A senhora esteve maravilhosa, mamãe – disse Sophia calorosamente para a mãe. Magda enrolou um cacho de cabelo atrás da orelha direita, olhando-se meditativamente no espelho: – S-sim – disse ela – eu creio que foi a maneira correta de interpretar esse papel”. (p. 56)
Magda não tem carinho por Josephine, sua filha mais nova, demonstrando um desapego pela criatura que chama de bruxinha, por sua feiura. Segundo Sophia, seu “papai e mamãe nunca se preocupam. Eles não se comportam como pai e mãe. (…) Papai vive propositalmente num mundo obscuro de trilhas históricas, e mamãe sempre se diverte e vive suas cenas.” (p. 140). A figura de mulher independente que pensa apenas em encenar a peça da vida de Edith Thompson. Uma escolha interessante, já que essa personagem foi uma mulher que executada com seu amante pelo assassinato do marido, sendo que não havia nenhuma prova de sua participação no caso. Segundo os jornais da época, Edith era uma mulher que ascendeu na carreira muito acima do marido, sendo ambiciosa, gostar de dançar em bailes e salões de Londres e competente em seu cargo em uma chapelaria, tendo essas características sido cruciais para sua condenação. É interessante pensar que Magda, uma mulher de classe alta, de beleza e riqueza, espelhar-se em uma mulher que rompeu com todas as normas do decoro. Edith não havia tido filhos, e de alguma forma, Magda agia como se os seus fossem apenas parte de sua contribuição ao mundo. Não lidava diretamente com seus filhos mais novos e apenas se relacionava de forma debochada com a filha mais velha, que havia de herdar a fortuna dos Leonides.
Outras três personagens femininas se apresentam nessa obra: Edith de Havilland (cunhada do primeiro casamento de Aristide Leonides), Clemency Leonides (esposa de Roger, outro filho de Leonides) e Brenda Leonides (segunda esposa de Aristide Leonides). Edith de Havilland ocupa o espaço da mulher de Leonides na criação dos filhos, odiando seu cunhado por sua ascendência estrangeira e modos estranhos. Clemency é uma personagem que se apresenta como esposa devotada de Roger, seria uma representação graduada do Sal da Terra, tendo um emprego do qual abriria mão para cuidar para que Roger fosse feliz. Não tem grandes desejos ou ambições, tendo como grande característica a possessividade por seu marido, querendo afastá-lo da vida de riqueza familiar. Brenda Leonides é o que se chama de esposa troféu, sendo uma jovem mulher que aceita se casar com um homem mais velho apenas por sua riqueza.
Essas personagens não me encantam tanto quanto Magda e Josephine. Josephine, uma criança que o tempo todo afirma ser mais inteligente que os detetives, torna-se a menininha torta da casa torta.
Aqui alguns Spoilers se fazem necessários:
Josephine é a menina que herda todos os defeitos da casa torta, não conseguindo passar amor e carinho para os seus parentes, isolada por uma pretensa maldade que corria por suas veias como herança de seu avô, o homem torto. Ela é quem em sua inocência, mata e vitimiza pessoas em benefício próprio, concentrando em si todo o egoísmo de Magda, buscando a atenção da polícia o tempo todo.
“Com seu precoce desenvolvimento mental aparecera um retardamento de seu senso moral. Talvez, também, os fatores de hereditariedade diversos – que Sophia chamara de ‘crueldade da família’ – se tivessem reunido nela. Ela herdara a crueldade autoritária da família de sua avó, o cruel egoísmo de Magda, que só via o seu próprio ponto de vista. Provavelmente ela também sofrera sensível como Philip com o estigma de ser feia – a bruxinha – da família. Finalmente, em sua própria medula, corria a deformação essencial do velho Leonides. Ela fora uma neta de Leonides, parecia com ele na inteligência e na argúcia, mas quanto ao amor, ele dera para sua família e seus amigos, e ela sempre conservara para si mesma.” (p. 227)
O livro culmina na descoberta do responsável pelos homicídios, mas o mais interessante é a estrutura que se coloca entre Magda, Sophia e Josephine. Uma mãe egoísta e egocêntrica que vai contra tudo o que se espera de uma mãe e que passa para a filha todo o aspecto negativo da herança familiar moral corrompida. Josephine é a representação de uma compreensão da personalidade como sendo algo hereditário, como que inserida na medula espinhal, como uma deformação inescapável.
Segundo Lourence Cristine Alves, em sua dissertação de mestrado, “O hospício nacional de alienados: terapêutica ou higiene social?”, defendida na Casa de Oswaldo Cruz em 2010, Bénédict Augustin Morel (1809-1873), acreditava que todas as manifestações da loucura possuíam uma causa orgânica. Parte da explicação usada por Agatha Christie para os crimes cometidos na casa Leonides, seriam alienações hereditárias. Seriam, segundo Alves: “Malformações físicas e morais, resultantes de degenerescências manifestadas por atos delirantes. Possuindo diversas variações, dentre elas: loucura lúcida ou raciocinante, loucura moral, loucura instintiva” (Alves, 2010, p. 65)
Independente do olhar que tenhamos com esse romance, ele produz uma inquietação que bate diretamente como o desconforto geral da retirada de uma criança de seu lugar de inocência para o de culpada, mas que também está expresso nas palavras de Sophia e Charles de pena de um pequeno monstro comovente, que nascera com o estigma de ser a criança torta na casa torta.
Acho que um dos maiores objetivos que tinha com essa coluna era relembrar o quanto que a literatura de Agatha Christie não é inocente e nem desimportante em um momento em que os thrillers e documentários sobre crimes vivem um auge como nunca experimentado. Sua literatura nos lembra como o crime é algo humano e que acontece nem sempre de forma extraordinária. Seja com a morte de Leonides com um colírio que injetado levou à sua morte, ou comprimidos do coração tomados em excesso, o assassinato nunca é algo inesperado, nem os mistérios escritos no início do século XX são díspares de nossa vã realidade.
Referências:
ALVES, Lourence Cristine. O Hospício Nacional de alienados: terapêutica ou higiene social? – Rio de Janeiro: s.n., 2010.
BAUČEKOVÁ, Silvia Rosivalová. “The Salt of the Earth or the Murderess? The Problem of Femininity in the Novels of Agatha Christie” Prague Journal of English Studies, vol. 10, no. 1, Sciendo, 2021, pp. 7-22. https://doi.org/10.2478/pjes-2021-0001
CHRISTIE, Agatha. A casa torta. Tradução de Carmen Ballot. São Paulo: Círculo do Livro, 1948.
HANES, Vanessa Lopes Lourenço. Desvendando Um Mistério: A Canonização De Agatha Christie No Brasil Durante Os Séculos XX E XXI. Revista Tradução em Revista, fascículo 18, 2015, pp 133-147. Último Acesso em 20 nov. 2024. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/24855/24855.PDF
GERALD. Michael C. Agatha Christie’s drugs and diseases. Pharm in Hist, 34, n. 2, p. 95-107. Ultimo Acesso em 10 de nov. de 2024. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/pharm_0035-2349_1993_num_81_297_3739_t1_0254_0000_3
MAKINEN, Merja. Agatha Christie: Investigating Femininity. Houndmills, Basingstoke: Palgrave, 2006.
Publicado por
Ana Carolina Guedes
Ana Carolina Guedes é doutora em História pela PUC-Rio e doutoranda em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ, pesquisando o conceito de paisagem sonora em Virginia Woolf.