Em 2019, celebramos o bicentenário do nascimento de George Eliot. No Reino Unido, o George Eliot Fellowship vem organizando uma série de eventos e encontros para manter viva a memória da autora. Entre as ações do grupo estão encontros e tours em Nuneaton, cidade onde Eliot cresceu e a organização da peça de teatro Meet the Woman, estrelada por Lesley Smith. Em julho, também acontecerá uma conferência internacional na Leicester University “examinando o legado de George Eliot à luz das tendências na produção crítica contemporânea, reunindo acadêmicos do mundo todo para marcar o bicentenário do nascimento da autora”.
Em novembro – mês do aniversário de Eliot – ofereceremos um evento na UERJ celebrando a vida e a obra da escritora. Enquanto isso, compartilharemos uma leitura e comentários de alguns aspectos de um dos romances mais populares de sua autoria, Middlemarch. Ao longo dos próximos dois meses, faremos uma publicação semanal sobre cada um dos oito livros que compõem a obra. Iniciando a série, abordaremos o Prelúdio e o Book One: Miss Brooke.
Middlemarch: uma introdução
Middlemarch: A Study of Provincial Life foi o sexto dos sete romances escritos por George Eliot. A obra foi originalmente publicada em oito livros de forma seriada entre dezembro de 1871 e dezembro de 1872. Em 1872 e 1873, a obra foi publicada em duas edições de quatro volumes. Já em 1874, George Eliot revisou o romance e a obra foi subsequentemente publicada em um volume. Esta é a edição à qual a maioria dos leitores têm acesso quando leem Middlemarch.
Pesquisadores da obra de Eliot já se debruçaram sobre os manuscritos1 e estabeleceram análises comparativas das alterações realizadas pela autora. No entanto, mesmo edições críticas raramente referenciam essas alterações, considerando-as pontuais e pouco relevantes para o desenvolvimento do enredo.
Assim como em romances como The Mill on the Floss (1860) e Felix Holt (1866), George Eliot situa a narrativa de Middlemarch em um momento histórico distinto daquele em que a obra foi efetivamente escrita e publicada. Conforme Raymond Williams observou em The Country and the City (1973), a autora da Inglaterra vitoriana industrial “olha para trás, para a velha Inglaterra rural das décadas de 1820 e 1830” (1973, p. 9). O enredo de Middlemarch se desenvolve entre 1829 e 1832.
Williams aponta, ainda, que embora conflitos relacionados ao senso de comunidade (ou a ausência do mesmo) observados em outros romances de Eliot estejam diretamente ligados ao desenvolvimento do romance enquanto gênero, Middlemarch se desvia desse padrão:
É parte crucial da história do desenvolvimento do romance, no qual a comunidade reconhecível, o mundo amplo e repleto de empatia de uma Inglaterra realmente rural e, mais tarde, industrial, vem a ser conhecido primariamente como um problema de relacionamentos ambivalentes: de como o indivíduo alienado, com uma consciência dividida entre pertencer e não pertencer, compõe sua própria história moral. Esta é a fonte da perturbação, da inquietação, da construção fragmentária dos romances tardios de Eliot (a exceção é Middlemarch, significativamente um romance sobre uma única comunidade, uma cidade pequena às vésperas de mudanças históricas decisivas). (WILLIAMS, 1973, p. 174)
A Questão Católica
Eliot é meticulosa na disposição de detalhes e informações históricas peculiares ao momento em que situa o romance, citando eventos e figuras proeminentes do final do século XVIII e das primeiras décadas do século XIX. Logo no início do romance, por exemplo, Mr. Brooke se gaba de ter jantado com Sir Humphry Davy e Wordsworth enquanto Dorothea, mortificada, se pergunta “como o Sr. Casaubon suportaria tamanha triviliadade” da parte do tio.
No entanto, para além da riqueza e precisão dos detalhes, é preciso observar que a própria estrutura do romance se estabelece sobre questões próprias do momento em que a narrativa se desenvolve. Um dos temas que permeiam Middlemarch é a Questão Católica2, há muito já superada quando Eliot publicou sua obra, como observou Catherine A. Brereton:
À altura em que George Eliot botou a caneta no papel para escrever Middlemarch, a “Questão Católica” já havia sido resolvida há muito tempo, mas temporalmente o romance é situado quase imediatamente após a implementação do Catholic Relief Act de 1829. Para os personagens de Middlemarch, a emancipação católica era um assunto em alta repercussão, que seguiu provocando debates saudáveis muito após o Parlamento oferecer uma solução legislativa.
Após uma longa história de conflitos entre católicos e protestantes – que remontam à instituição do anglicanismo na Inglaterra por Henry VIII – no século XIX aquilo que ficou conhecido como a “Questão Católica” já não girava mais em torno do perigo de um monarca católico ocupar o trono, sendo centrada nos conflitos entre Reino Unido e Irlanda e a questão da emancipação católica das muitas restrições impostas aos praticantes da religião. É aí que entra em cena o político do partido Conservador Sir Robert Peel, frequentemente citado em Middlemarch.
Originalmente, Peel havia se posicionado firmemente contra a emancipação e relaxamento das restrições impostas a católicos. No entanto, em 1828 um dos maiores defensores da emancipação católica, Daniel O’Connell, contando com um grande apoio irlandês, obteve um assento no Parlamento. Embora a legislação da época permitisse que Peel se opusesse ao exercício do cargo por parte de O’Connell e articulasse tal impedimento, o clima político deixou claro que a manutenção de uma agenda abertamente anticatólica causaria mais inquietações políticas e conflitos sérios na e com a Irlanda. Assim, Peel mudou seu posicionamento, se aliando ao Duque de Wellington para persuadir o Parlamento e o Rei George IV de que a hora da emancipação católica havia chegado.
Em 1829, foi aprovado pelo Parlamento o Catholic Relief Act, que finalmente permitiu que católicos se tornassem membros daquela Casa. O Ato foi também um divisor de águas no sentido de abrir a porta para o relaxamento de outras restrições a católicos no Reino Unido. Em Middlemarch, muito se discute a mudança de posição de Peel e as consequências do Relief Act (Mrs. Cadwallader, por exemplo, acusa Mr. Brooke de ter “tomado a parte de Peel” na Questão Católica).
Em Mr. Brooke, a tensão hereditária de energia puritana estava claramente inativa; mas em sua sobrinha, Dorothea, ela resplandecia tanto por defeitos quanto por virtudes, transformando-se às vezes em impaciência com o jeito de falar de seu tio ou sua maneira de “deixar as coisas como estão” em sua propriedade, e fazendo-a ansiar pelo momento em que se tornaria maior de idade e teria algum poder de decisão sobre dinheiro para projetos generosos. Ela era vista como uma herdeira; não apenas as irmãs recebiam setecentos por ano por causa de seus pais, mas se Dorothea se casasse e tivesse um filho do sexo masculino, ele herdaria as propriedades de Brooke, que presumivelmente valeriam cerca de três mil por ano. Este era um valor que parecia uma fortuna para famílias provincianas, que ainda discutiam a conduta tardia de Mr. Peel sobre a Questão Católica, não conscientes dos futuros campos de ouro, e daquela bela plutocracia que tão nobremente exaltou as necessidades da vida refinada. (Middlemarch, Book One)
Outros temas e questões em Middlemarch
Eliot também aborda questões de comportamento, casamento e a posição da mulher na sociedade, focalizando especialmente as restrições à educação feminina, um assunto muito caro à autora. Tais temas são englobados pelo subtítulo do romance: “uma análise da vida provinciana”, considerando os dois significados atribuídos ao adjetivo. A província surge tanto enquanto local afastado da metrópole na forma da cidade ficcional de Middlemarch quanto no caráter provinciano (pouco sofisticado) de muitos dos personagens. Exploraremos essas questões mais profundamente ao longo das próximas semanas. Passemos agora aos comentários acerca do Prelúdio e do Primeiro Livro.
Prelúdio
George Eliot utiliza o prelúdio para estabelecer a Madre Teresa como uma figura da qual Miss Brooke, de certa forma, se deriva. Teresa surge aqui não como mulher, mas modelo de uma espécie de personalidade com o qual o leitor entrará em contato através de Dorothea:
Aquela mulher espanhola que viveu trezentos anos atrás certamente não foi a última de sua espécie. Muitas Teresas nasceram e não encontraram para si uma vida épica em que houvesse um constante desdobramento de ação ressonante; talvez apenas uma vida de erros, a descendência de uma certa grandeza espiritual imune à mesquinhez da oportunidade; talvez um trágico fracasso que não encontrou um poeta sagrado e afundou no esquecimento.
Considerando-se que o primeiro livro, Miss Brooke, é quase integralmente dedicado a apresentar Dorothea ao leitor, assim como delinear o seu relacionamento com aqueles que a cercam e as impressões que ela causa na comunidade, o prelúdio dá o tom do que virá a seguir.
Book One: Miss Brooke
No livro 1, somos apresentados a Dorothea Brooke e à sua irmã mais jovem, Celia. Também temos o primeiro contato com o tio delas, Mr. Brooke, que ficou responsável pelas jovens após a morte de seus pais. Também são delineadas as estruturas gerais da dinâmica social de Middlemarch conforme os principais personagens são introduzidos.
Dorothea é descrita como sendo dona de uma beleza incomparável que é acentuada pelas roupas modestas que elege para vestir, de acordo com sua orientação religiosa altamente puritana. Dorothea é séria, caridosa, inteligente e bem-articulada. No entanto, desde o início é sugerido ao leitor que a protagonista tem ideias equivocadas sobre o casamento e que tais noções podem a vir a lhe custar caro.
A narradora classifica tais ideias como “infantis” e a rapidez com que a moça desconsidera a opinião daqueles mais próximos a ela sobre seu futuro marido, Mr. Casaubon, evidenciam sua juventude e inexperiência, aspectos eclipsados pelo ardor com o qual ela procura agir com sensatez. No entanto, justamente a intensidade com que Dorothea se lança em seus projetos de caridade, assim como a maneira como se porta em relação à sua fé, fazem com que os vizinhos classifiquem Celia como a irmã Brooke mais razoável.
Sobre Dorothea, a narradora nos diz:
Sua mente era teórica, e ansiava – por conta de sua natureza – por uma concepção grandiosa do mundo que poderia incluir francamente a paróquia de Tipton e sua própria regra de conduta ali; ela era apaixonada pela intensidade e pela grandeza, e se precipitava em abraçar o que lhe parecia possuir esses aspectos. É provável que busque o martírio, faça retribuições e, depois, incorra em um martírio em uma situação em que ela não o buscou. Certamente, tais elementos no caráter de uma moça casável tendiam a interferir em seu destino, impedindo que isso fosse decidido segundo o costume, pela boa aparência, pela vaidade e pelo simples afeto canino. (p. 6)
Eliot também comunica algumas das nuances que constituem a dinâmica social de Middlemarch. A antipatia com a qual a antiga nobreza olha para a burguesia enriquecida pelo trabalho é uma delas. Também é interessante a forma como a autora aborda o casamento, jamais como uma solução simples e sim como um processo complexo que não necessariamente resultará em felicidade. Isso se dá tanto no caso de Dorothea Brooke e do Rev. Casaubon e já na raiz do interesse mútuo de Rosamond Vincy e Dr. Lydgate. O romance produz discussões em torno do que deveria motivar uma união.
Mr. Brooke não deseja impor (e nem impõe) sua própria vontade sobre a de Dorothea, mas a própria confusão da jovem em torno do tema da obediência da esposa ao marido sugere a possibilidade de que premissas equivocadas resultarão em uma união infeliz com Casaubon. Após Miss Brooke declarar desejar “um marido que estivesse acima [dela] em discernimento e em todo o conhecimento.”, o tio se surpreende e observa ter pensado que Dorothea “tivesse mais opinião do que a maioria das garotas”. Brooke encerra suas considerações com um comentário que, de fato, parece refletir o que o leitor sabe a respeito de Dorothea a esse ponto do romance, sublinhando sua personalidade forte: “Pensei que você gostasse da sua própria opinião”. A resposta de Dorothea é um lembrete da sua juventude. Conquanto ela tente fazer escolhas com base em princípios que considera razoáveis, a jovem declara não conseguir se imaginar “vivendo sem algumas opiniões”, mas que “gostaria de ter boas razões para elas, e um homem sábio poderia [a] ajudar a descobrir quais opiniões possuem a melhor base e me ajudaria a viver de acordo com elas”. Se tal homem sábio é o seu futuro marido é o que Miss Brooke descobrirá ao longo do romance.
Temos também as uniões “inadequadas” que não consideram prospectos ou propriedades, mas que são guiadas unicamente pela inclinação pessoal e pelo afeto. Estas surgem tanto na figura da tia deserdada de Casaubon, quanto, ironicamente, na de Mrs. Cadwallader. Embora ela se oponha à união de Dorothea e Casaubon, seu próprio marido, um clérigo da igreja anglicana, a lembra que amigos e familiares consideraram que ela havia feito um casamento desvantajoso ao se unir a ele.
Surgem, paralelamente, tensões relativas a questões de propriedade e a transmissão da mesma. Mrs. Vincy acredita que Mary Garth não deve ser herdeira de Mr. Feathertone, por não ser bonita como sua filha e assim “seria mais adequado que ela fosse preceptora”. Para além disso, um conflito entre conservadorismo e inovação é precipitado pela chegada do Dr. Lydgate a Middlemarch. A seguinte discussão se desenvolve entre alguns dos cavalheiros da cidade:
“Lydgate tem muitas ideias, bem novas, sobre ventilação e dieta, esse tipo de coisa”, retomou a conversa Mr. Brooke, após atender a Lady Chettam, e voltar para conversar educadamente com um grupo de middlemarchianos.
“Espere, você acha que isso é bom? – interromper os antigos tratamentos que fizeram os ingleses serem o que são?” disse Mr. Standish.
“O conhecimento médico está em baixa entre nós”, disse Mr. Bulstrode, que falou em tom moderado com um ar bastante doente. “Eu, da minha parte, saúdo o advento de Mr. Lydgate. Espero encontrar uma boa razão para confiar o novo hospital à sua administração.”
“Tudo isso é muito bom”, respondeu Mr. Standish, que não gostava de Mr. Bulstrode: “Se você gostaria que ele fizesse experiências em seus pacientes do hospital, e matasse algumas pessoas por caridade, eu não faço objeção. Mas eu não vou entregar o meu dinheiro para que ele faça experimentos comigo. Eu gosto de tratamentos que tenham sido testados.” (p. 59-60)
O primeiro livro se encerra com Dorothea já casada, em lua de mel com Casaubon em Roma, começando a compreender as consequências de sua escolha: o marido e ela tinham expectativas diferentes em relação à união. Ela esperava ser, efetivamente, uma companheira de Edward em suas pesquisas. Dorothea desejou essa dinâmica com uma empolgação tão absoluta que ignorou o pedantismo excessivo e a falta de entusiasmo do noivo todas as vezes que ela demonstrou um interesse real em aprender ou mesmo dialogar sobre assuntos de seu interesse.
Ele, por sua vez, decidiu casar-se porque a disposição de Dorothea lhe pareceu agradável o bastante para tal e aquela parecia ser a atitude adequada para um homem solteiro naquela etapa de sua vida. No entanto, conforme o casamento se aproximava, Casaubon refletia com desânimo sobre sua falta de emoção em relação à união com Miss Brooke.
Pois, na verdade, à medida que se aproximava o dia estabelecido para o seu casamento, Mr. Casaubon não viu seu ânimo aumentar; também não lhe trouxe ânimo a contemplação daquela cena de jardim matrimonial, onde, como toda a experiência demonstrava, o caminho devia ser margeado por flores, provando-se persistentemente mais encantador para ele do que as abóbadas de sempre onde ele caminhava com o círio na mão. Ele não confessou a si mesmo, ainda menos poderia ter confidenciado a outro, sua surpresa de que, embora tivesse conquistado uma garota adorável e nobre de coração, ele não tinha obtido deleite algum – algo que ele também considerava um objeto a ser encontrado através da procura. É verdade que ele conhecia todas as passagens clássicas que sugeriam o contrário; mas conhecer as passagens clássicas é um modo de movimento, o que explica por que elas deixam tão pouca força extra para sua aplicação pessoal. (…) Não havia nenhuma razão exterior pela qual ele pudesse explicar uma certa falta de sensibilidade que o sobrevinha justamente quando sua alegria expectante deveria ter sido mais vivaz, justamente quando ele trocou a aridez usual de sua biblioteca Lowick pelas visitas à Granja. (p. 54-55)
No último capítulo do livro, acompanhamos a visita dos irmãos Vincy ao tio, expondo as tensões entre Rosamond e Mary, além das disputas pela herança de Mr. Featherstone instigadas por Jane Waule. Também se dá nesta cena o primeiro encontro entre Dr. Lydgate e Miss Vincy. Fred se preocupa com seus prospectos financeiros e reflete sobre ser “herdeiro inevitável de nada em particular”, frase que se tornaria um verso da canção “How Soon Is Now” da banda The Smiths, inspirada em Middlemarch.3
Com essa nota, encerramos a primeira edição da nossa série sobre o romance e convidamos todos os leitores de George Eliot a assistir a adaptação de Middlemarch produzida pela BBC em 1994. Trata-se de uma minissérie de 6 episódios dirigida por Anthony Page que se manteve consideravelmente fiel ao livro.
Referências
BRERETON, Catherine A. The Catholic Question. Disponível em: http://middlemarchuk.pbworks.com/w/page/61697839/the%20Catholic%20Question. Acesso em: 03 Jul. 2019.
ELIOT, George; HORNBACK, Bert G. Middlemarch: A Norton Critical Edition. New York: Norton, 2000.
WILLIAMS, Raymond.The Country and the City. New York: Oxford University Press, 1973.