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Bicentenário de George Eliot: Relendo Middlemarch – Book Four22 min read

Middlemarch - Book Four: Three Love Problems

Dando continuidade à nossa série comemorativa do bicentenário de George Eliot, nesta semana abordamos o Quarto Livro de Middlemarch, “Three Love Problems”. Você pode ler as postagens anteriores clicando nos links a seguir: Book OneBook Two, Book Three.

Introdução

Mas Will Ladislaw sempre parecia ver mais no que ela dizia do que ela mesma via. Dorothea tinha pouca vaidade, mas ela tinha a necessidade da mulher ardente de governar com benevolência, fazendo a alegria de outra alma. Por isso, a mera chance de ver Will ocasionalmente era como uma luneta aberta na parede de sua prisão, dando-lhe um vislumbre do ar ensolarado; e esse prazer começou a anular sua preocupação original com o que seu marido poderia pensar sobre a apresentação de Will como convidado de seu tio. Sobre este assunto, Mr. Casaubon manteve-se em silêncio. (p. 225)

Ao longo do Quarto Livro de Middlemarch, Eliot segue explorando questões como reforma, casamento, propriedade e a dinâmica social provinciana. O grande tema do livro já é anunciado pelo título: Three Love Problems. Eliot apresenta ao leitor os problemas de três casais em estágios diferentes de seus relacionamentos. A partir de cada um desses problemas, podemos acessar as principais questões dispostas pela autora nesta seção.

O livro se inicia com o enterro de Peter Featherstone e a subsequente leitura de seu testamento. Das janelas de Lowick, Dorothea, Casaubon, Celia e sua companhia observam a procissão do funeral do vizinho. Boa parte dos habitantes de Middlemarch – e alguns estranhos – estão presentes. É significativo que Dorothea observe de longe: enquanto o futuro dos outros casais referenciados no título será fortemente influenciado pela forma como Featherstone decidiu distribuir seus bens, tais questões não se relacionam aos problemas que Dorothea virá a enfrentar. Ainda assim, discussões em torno da ética que deve reger a confecção de testamentos e a distribuição de heranças alcança a todos.

De muitas maneiras, a morte de Peter Featherstone é um divisor de águas tanto para Middlemarch (a cidade) quanto para Middlemarch (o romance), vez que o destino e as relações entre muitos personagens são afetados pelas decisões do tio de Fred. Ademais, a transferência da propriedade de Stone Court se torna profundamente relevante para a narrativa, atraindo novas figuras para a cidade.

O herdeiro de Stone Court

A notícia de que Featherstone teve um filho que jamais reconheceu em vida – Mr. Joshua Rigg, Joshua Featherstone após a morte do pai – escandalizou alguns. No entanto, foi o fato de que ele se tornou o herdeiro incontestável de Stone Court que perturbou a muitos. O leitor não tem acesso a muitas informações sobre o passado de Rigg, apenas que ele fora criado pela mãe e pelo padrasto. É através de uma conversa entre Rigg e este homem que ele claramente detesta, ordenando que o mesmo mantenha distância e não mais o perturbe, que o leitor tem seu primeiro contato com John Raffles, um personagem que exercerá uma grande influência nos livros subsequentes.

Ele era um homem obviamente a caminho de sessenta anos, muito corado e peludo, com os bigodes espessos e cabelos crespos grossos já bem grisalhos, um corpo robusto que mostrava de forma pouco lisonjeira as costuras um tanto desgastadas de suas roupas, com um ar fanfarrão, de quem teria como objetivo chamar a atenção mesmo em uma queima de fogos de artifício, considerando que suas próprias observações sobre a performance de qualquer outra pessoa provavelmente seriam mais interessantes do que a performance em si. Seu nome era John Raffles, e ele às vezes escrevia jocosamente W.A.G. depois de sua assinatura, observando quando fazia isso, que ele já havia sido aluno de Leonard Lamb de Finsbury, que escrevia B.A. depois de seu nome, e que ele, Raffles, era o autor da ideia sagaz de chamar aquele celebrado diretor de Ba-Lamb. Tal era a aparência e o sabor mental de Mr. Raffles, ambos os quais pareciam ter um odor rançoso de quartos de viajantes nos hotéis comerciais daquele período. (p. 257)

Um divisor de águas

Através de “Three Love Problems” Eliot prepara o leitor para uma mudança no ritmo e no tom da sua narrativa. Além da morte de Featherstone como divisor de águas, é também nesse livro que começam a se delinear de forma mais palpável as aspirações políticas de Mr. Brooke. Após Ladislaw aceitar o convite para ser editor do Pioneer (gerando rumores na cidade de que ele seria um “emissário”, uma espécie de “espião”) a despeito da solicitação de Casaubon para que ele o rejeitasse, as expectativas em torno da reforma política tanto discutida nos livros anteriores começam a se tornar mais urgentes e intensas. Ao longo das próximas seções, discutiremos brevemente como os eventos citados na introdução se relacionam com os “três problemas de amor” anunciados no título.

Mary e Fred

Embora Mary Garth não possuísse qualquer expectativa para si própria com a leitura do testamento de Featherstone, ela é uma das pessoas mais ansiosas em Stone Court no dia do enterro. Isso acontece porque, como vimos no Terceiro Livro, na madrugada de sua morte, Featherstone decidiu queimar seu testamento mais recente e que Mary deveria fazer o trabalho. A jovem se recusou a fazê-lo sem testemunhas presentes e rejeitou também a solicitação que o senhor lhe fizera para que chamasse somente Fred: se fosse chama-lo, ela convocaria também Jonah Featherstone.

As suspeitas de Mary de que sua decisão poderia afetar diretamente o futuro de Fred se confirmam com a leitura do testamento mais recente. Embora Featherstone jamais tenha pretendido legar ao sobrinho a propriedade de Stone Court, ele havia reservado 10.000 libras para Vincy no testamento antigo. No documento mais recente, Fred nem sequer foi lembrado. Assim, todas as expectativas que o moveram ao longo dos primeiros livros de Middlemarch foram finalmente frustradas. O jovem se deprime: “vinte e quatro horas atrás, ele pensara que, em vez de precisar saber o que deveria fazer, já deveria saber que não precisava fazer nada” e “ele deveria poder de imediato pagar Mr. Garth e que Mary não poderia mais ter qualquer razão para não se casar com ele. E tudo isso deveria vir sem estudo ou outro inconveniente, puramente pelo favor da providência na forma do capricho de um velho cavalheiro. Mas agora, no final das vinte e quatro horas, todas aquelas expectativas firmes estavam desfeitas” (p. 213).

Mary compartilha com sua família a informação sobre o desejo final de Featherstone sobre a queima do testamento. No entanto, ela não comunica o evento a Fred, que deixa Middlemarch para realizar seus exames, concluir sua educação e se tornar um clérigo, seguindo o desejo de seu pai. Mary, por sua vez, considera um equívoco que o amigo devesse seguir por esse caminho por acreditar que, por não ser sua vocação nem algo que ele queira fazer, ele faria um papel ridículo. Ainda assim, Fred precisa encontrar meios de se manter e, envergonhado por não poder devolver à família Garth o dinheiro que lhes deve, pede que Mr. Farebrother lhes comunique sua partida.

A mudança na sorte de Caleb Garth

No entanto, quando Farebrother chega à casa dos Garth, Caleb e sua família estão exultantes após a entrega de uma carta da parte de Sir James Chettam. Na correspondência, o futuro marido de Celia convida o pai de Mary para voltar a administrar suas terras, informando, ainda, que Mr. Brooke também tem interesse nos seus serviços. Com essas oportunidades, Garth terá condições não apenas de cobrir o custo dos estudos de Alfred, como Mary não precisaria trabalhar como professora em York, como planejara.

Preocupado com o futuro de Fred, Caleb decide lhe oferecer uma oportunidade de trabalhar com ele quando o jovem retornar de seus estudos. Mrs. Garth observa que os pais de Fred considerariam o trabalho abaixo da classe do filho, mas Caleb conclui que, sendo maior de idade, cabe ao jovem Mr. Vincy decidir o tipo de trabalho que deseja realizar.

Assim, embora ao final do Quarto Livro Mary Garth ainda se sinta culpada por ter, de certa forma, contribuído para frustrar as expectativas de Fred, a situação de sua própria família passa por uma considerável melhoria. Ademais, ainda parece a Mary que, de certa forma, é melhor que Fred precise se faze útil de alguma forma em vez de passar toda a sua vida de forma ociosa (um costume do jovem que ela já havia criticado). Ainda assim, por ora, eles permanecem separados.

Rosamond e Dr. Lydgate

A forma como Mr. Featherstone decidiu distribuir da sua fortuna após a morte também afeta Rosamond Vincy e Tertius Lydgate. A tia de Rosamond, Mrs. Bulstrode, critica o irmão – Mr. Vincy – por não ter investigado melhor a situação financeira e as perspectivas de Dr. Lydgate antes de conceder a mão da filha. Por sua vez, Vincy se encontra estarrecido com o desfecho da leitura do testamento de Featherstone e, diante da nova situação de Fred e da iminência de reformas e instabilidade política, deixa claro para a filha que ela não deve contar com o dinheiro dele para absolutamente nada nas preparações para o casamento.

Em uma conversa com o noivo, Rosamond menciona suas preocupações sobre a reticência do pai quanto ao casamento:

“Eu sinto que papai não está muito satisfeito com o nosso noivado”, Rosamond continuou, quase em um sussurro; “e ele disse ontem à noite que certamente deveria falar com você e dizer que tudo deve ser abandonado”.
“Você vai desistir?” disse Lydgate, com energia rápida – quase com raiva.
“Eu nunca desisto de nada que escolho fazer”, disse Rosamond, recuperando a calma ao tocar o cordão.
“Deus te abençoe!” disse Lydgate, beijando-a novamente. Essa constância de propósito no lugar certo era adorável. Ele prosseguiu: – “Agora é muito tarde para seu pai dizer que nosso noivado deve ser abandonado. Você é maior de idade, e eu a reivindico como minha. Se alguma coisa é feita para deixá-la infeliz, essa é uma razão por apressar nosso casamento”. (p. 218)

Embora Lydgate classifique como “constância de propósito” o apego de Rosamond às suas próprias inclinações a essa altura do relacionamento dos dois, ele não calcula que aquilo que mais tarde ele talvez classifique como teimosia pode se voltar contra suas próprias vontades. Lydgate se endivida alugando uma casa em Lowick Gate, comprando móveis e prataria. O médico se convence de que não há problema algum nisso, considerando que são coisas que ele só teria que comprar uma vez. Por ora, Tertius não aceita ainda a possibilidade de que Rosamond Vincy não pretenda ser a esposa econômica que ele deseja que ela seja. Por sua vez, ele não se possui qualquer intenção de se aproximar da própria família, deixar suas pesquisas nada lucrativas ou mesmo a cidade de Middlemarch como ela pretende. Às vésperas do casamento, Lydgate e Rosamond seguem repetindo os enganos de quando se conheceram. Cada um se relaciona com a expectativa que tem do outro, ignorando uma gama de características e traços pessoais que os tornam incompatíveis.

Tensões Políticas

Através da conversa de Rosamond com o pai, Eliot insere alguns marcadores temporais que nos permitem situar o momento histórico em que esse trecho da narrativa se insere. Mr. Vincy se preocupa com a situação do Parlamento:

“Espero que ele saiba que eu não darei nada – com essa decepção em relação ao Fred, e o Parlamento será dissolvido, e a quebra de máquinas em todos os lugares, e uma eleição chegando”
“Querido papai! O que isso tem a ver com o meu casamento?”
“Tem tudo a ver com isso! Todos nós podemos ser arruinados, até onde eu sei – o país nesse estado! Alguns dizem que é o fim do mundo, e certamente é o que parece. De qualquer forma, não é hora de tirar dinheiro do meu negócio, e gostaria que Lydgate soubesse disso.” (p. 220)

A narradora classifica a dúvida de Vincy – se seria apenas uma eleição geral ou o fim do mundo – como “um tipo fraco das incertezas na opinião provinciana naquela época”, agora que “George IV estava morto, o Parlamento dissolvido, Wellington e Peel depreciados por todos e o novo Rei apologético”. Conforme explica uma nota na edição crítica de Middlemarch publicada pela Norton, a referência aqui é ao fato de que

O duque de Wellington e Sir Robert Peel posicionaram-se contra a reforma parlamentar em 1830. Em 1832, depois que os Lordes rejeitaram a Reform Bill e o governo de Earl Grey renunciou, William IV apelou tanto ao duque quanto a Sir Robert para formar um governo Conservador comprometido com a reforma. Wellington concordou; mas como Peel recusou, os Conservadores não conseguiram formar um governo, e Lord Grey foi chamado para o cargo. (destaque meu)

Assim, a grande preocupação de Vincy em relação ao futuro se dá, principalmente, por conta da iminência da reforma nas regras de sufrágio, tema discutido pelos cidadãos de Middlemarch à exaustão desde o início do romance. A partir do Quarto Livro, o descontentamento da população começa a ser sentido de modo mais palpável enquanto Mr. Brooke, pouco atento aos conselhos de seus amigos, pretende se candidatar com uma plataforma progressista. Era um tempo de grande instabilidade e, sem saber se “o fim do mundo” estaria por vir, Vincy acredita ser melhor agir com prudência.

Dorothea e Edward Casaubon

 

Dorothea tinha reunido emoções no caminho, e esquecera tudo, exceto o alívio de despejar seus sentimentos, sem controle: uma experiência antes habitual para ela, mas quase inexistente desde o casamento, que vinha sendo uma luta perpétua entre energia e medo. (p. 243)

No Quarto Livro, alguns dos problemas no relacionamento de Casaubon e Dorothea desenvolvidos ao longo do Segundo e do Terceiro volumes de Middlemarch se agravam. Primeiramente, ao saber que Mr. Brooke convidara Mr. Ladislaw para passar uma temporada na Granja, Casaubon presume que ele tomara tal liberdade a pedido de Dorothea, que, por sua vez, não tem oportunidade de desfazer o mal-entendido. No entanto, embora a presença e aproximação de Ladislaw seja um dos principais fatores prejudiciais à harmonia entre Mr. e Mrs. Casaubon, permanecem também como questões a distância do marido e sua recusa a deixar Dorothea realmente participar de suas investigações.

Por sua vez, a confiança de Dorothea no trabalho do acadêmico segue abalada após suas conversas com Will. Além disso, após o ataque cardíaco de Edward, a jovem Mrs. Casaubon tem medo de aborrecer o marido e prejudicar sua saúde. O universo de Dorothea encolhe consideravelmente: ela não pode realmente participar do trabalho de Casaubon e, ela logo percebe, não há muito o que fazer em Lowick para ajudar os aldeões: ao contrário de Mr. Brooke na Granja de Tipton, Casaubon é um bom senhorio e tudo funciona consideravelmente bem em sua propriedade.

A família de Ladislaw

Após ouvir Ladislaw falar sobre sua experiência com a pobreza durante a infância e observar que ela mesma sempre viveu com muito mais do que seria necessário, questões ligadas a dinheiro e a ética da transmissão de bens passam a integrar a lista de desentendimentos da jovem com o marido no Quarto Livro.

Com Will Ladislaw agora vivendo em Middlemarch após o convite de Mr. Brooke (anunciado no final do Terceiro Livro), Will e Dorothea passam a se encontrar com mais frequência e o interesse do primo de Edward por Mrs. Casaubon começa a se tornar mais forte e mais claro.

A antipatia entre os primos é mútua. Enquanto Casaubon se incomoda com o excesso de interesse de Will por sua esposa e pela noção de que ele é o culpado por Dorothea questioná-lo, Will se ressente do fato de estar ligado a Casaubon pela gratidão que deve sentir pelo fato de o primo ter assistido a ele e à sua mãe financeiramente após a morte de seu pai.

 Como sabemos, a avó de Will foi deserdada por ter feito um casamento “indesejável”. Ladislaw argumenta que Casaubon estaria simplesmente dirimindo uma injustiça, mas essa é uma noção desconfortável (e controversa) mesmo para ele. Embora o que foi feito à avó de Will tenha sido, de fato, uma injustiça, Edward não tomou parte nisso de forma alguma. Como classificar o auxílio prestado a Will e à sua mãe?

Ladislaw também culpa o primo por ter se casado com Dorothea sem ter nenhum real interesse por ela. Seu ressentimento se acentua na mesma proporção em que sua afeição por Dorothea aumenta. Após uma troca de correspondências em que Casaubon solicita que Will rejeite o posto de editor do Pioneer a ele oferecido por Mr. Brooke e o mesmo se recusa a fazê-lo, Casaubon o proíbe de retornar a Lowick.

Will Ladislaw, por sua vez, sentiu que sua aversão estava florescendo apesar de sua gratidão e precisou de muito discurso interior para justificar a antipatia. Casaubon o odiava – ele sabia disso muito bem; em sua chegada, ele pôde discernir uma amargura na boca e um veneno no olhar que quase justificariam a declaração de guerra, apesar dos benefícios passados. Ele sentiu dever algo a Casaubon no passado, mas o ato de se casar com essa esposa foi como uma compensação do que lhe era devido. Era uma questão, se a gratidão que se refere ao que é feito por si mesmo não deveria dar lugar à indignação com o que é feito contra o outro. E Casaubon fizera um mal a Dorothea ao se casar com ela. Um homem era obrigado a se conhecer melhor do que isso, e se ele escolheu envelhecer tateando em uma caverna, ele não tinha direito algum de atrair uma garota para sua companhia. (p. 225)

Ao se encontrarem ao acaso na casa de Mr. Brooke, Will conta a Dorothea que Casaubon o proibira de visitar Lowick. Ladislaw classifica a observação da jovem sobre “estar sempre em Lowick” como um “uma prisão terrível”. A conversa entre os dois diz muito sobre a impossibilidade desse relacionamento:

Dorothea se sentiu infeliz. Ela achava que o marido estava absolutamente errado, por mais motivos do que aqueles que Will mencionou.
“É melhor que não falemos sobre o assunto”, ela disse, com um tremor que não é comum em sua voz, “já que você e Mr. Casaubon discordam. Você pretende ficar?”
Ela estava olhando para o gramado, numa meditação melancólica.
Sim; mas dificilmente a verei agora “, disse Will, num tom de queixa quase infantil.
– Não – disse Dorothea, voltando os olhos para ele. – Quase nunca. Mas vou saber de você. Vou saber o que está fazendo pelo meu tio.
“Eu não saberei quase nada sobre você”, disse Will. “Ninguém vai me dizer nada.”
“Oh, minha vida é muito simples”, disse Dorothea, seus lábios se curvando em um sorriso extraordinário, que irradiava sua melancolia. “Eu estou sempre em Lowick.”
“Isso é uma prisão terrível”, disse Will, impetuosamente.
“Não, não pense assim”, disse Dorothea. “Eu não tenho desejos.”
Ele nada disse, mas ela respondeu a alguma mudança na sua expressão.
“Quero dizer, para mim. Exceto que eu gostaria de não ter muito mais do que a minha parte sem fazer nada pelos outros. Mas eu tenho uma crença própria, e isso me conforta.”
“O que é ?” disse Will, com muitos ciúmes da crença.
“Que desejando o que é perfeitamente bom, mesmo quando não sabemos bem o que é e quando não podemos fazer o que gostaríamos, somos parte do poder divino contra o mal – ampliando as frestas de luz e tornando a luta com a escuridão mais direta.” (p. 244)

O testamento de Casaubon

O maior desentendimento entre Dorothea e Edward no Quarto Livro, no entanto, é definitivamente o que se dá quando a jovem decide interceder a favor de Ladislaw (sem o conhecimento dele) perante o marido. Após ouvir a história da família de Will e acompanhar o aborrecimento de Casaubon diante da possibilidade do primo atuar como editor do Pioneer – o jornalismo sendo então uma profissão mal vista – Dorothea conclui que seria justo que o marido oferecesse uma espécie de pensão a Will e que alterasse seu testamento.

Dorothea se incomoda ao pensar que ela herdaria todas as propriedades do marido após a sua morte, julgando que seria justo que ele garantisse o futuro de Ladislaw também. Evidentemente, Casaubon, já incomodado com a presença e o comportamento do primo, se aborrece com Dorothea. Se antes de se casar ela dizia ao tio que desejava se casar com um homem que pudesse ajuda-la a compreender quais eram as ideias “verdadeiramente boas”, a cena em que Casaubon a repreende por se intrometer em um assunto que não lhe compete é a perfeita ilustração de por que Dorothea fez uma escolha equivocada.

Casaubon jamais compartilha suas ideias com Dorothea: se ela se expressa de uma forma que o incomoda, ele se limita a vetar qualquer possibilidade de que ela possa compreender o assunto. Em Roma, ele a excluía de seus interesses. Em suas discussões, ele jamais se dá ao trabalho de explicar seu ponto de vista. Casaubon meramente censura a esposa e a instrui a não se envolver em assuntos que não lhe competem:

 

“Dorothea, meu amor, esta não é a primeira ocasião, mas é bom que seja a última, em que você produziu um juízo sobre assuntos além do seu alcance. Na questão de até que ponto a conduta, especialmente em matéria de alianças, constitui uma perda de reivindicações da família, eu não entrarei agora, basta dizer que você não está qualificada para avaliar. O que eu quero que você entenda agora é que eu não aceito nenhuma revisão, menos ainda uma determinação dentro da série de assuntos sobre os quais deliberei de maneira clara e apropriada. Não cabe a você interferir entre mim e o senhor Ladislaw, e menos ainda encorajar comunicações dele para você que constituem críticas à minha forma de proceder.” (p. 234)

De sua parte, Casaubon entende a sugestão de Dorothea como um questionamento do seu juízo e, mais do que isso, um sinal da influência de Ladislaw. Edward se torna cada vez mais desconfiado das intenções do primo e, embora admita que Dorothea certamente não compreende a trama em que estaria se envolvendo, presume que a mudança do primo para Middlemarch e a amizade com Mrs. Casaubon não são coincidências.

Após consultar Dr. Lydgate para se informar sobre a gravidade e os riscos decorrentes da sua condição de saúde, Casaubon conclui que a atitude de Will é predatória e que é seu dever tomar medidas para proteger Dorothea. “Suspeita e ciúmes das intenções de Will Ladislaw, suspeita e ciúmes das impressões de Dorothea, estavam constantemente sendo tecidas”, a narradora nos informa. Edward Casaubon decide proteger Dorothea das “garras” de Will Ladislaw e de qualquer homem que possa vir a tentar se aproveitar de sua inocência e “tendência a apego imoderado” por ela demonstrada (à qual, Casaubon admite, ele próprio não corresponde):

“Ao casar-me com Dorothea Brooke, tive que garantir seu bem-estar no caso da minha morte. Mas o bem-estar não estará assegurado ela posse ampla e independente de bens; pelo contrário, podem surgir ocasiões em que tal posse poderia expô-la a mais perigos. Ela é uma presa fácil para qualquer homem que saiba jogar habilmente com seu ardor afetuoso ou seu entusiasmo quixotesco, e um homem tem justamente essa intenção em mente – um homem sem nenhum outro princípio além de um capricho transitório e que tem uma animosidade pessoal em relação a mim – tenho certeza disso – uma animosidade que é alimentada pela consciência de sua ingratidão, e que ele constantemente expressa de forma ridícula, algo de que estou seguro como se o tivesse ouvido. Mesmo que eu viva, não ficarei tranquilo quanto ao que ele pode tentar por influência indireta. Este homem ganhou o ouvido de Dorothea: ele fascinou sua atenção, ele evidentemente tentou impressionar sua mente com a noção de que ele tem direitos além de qualquer coisa que eu já tenha feito por ele. Se eu morrer – e ele estiver esperando prontamente por isso – ele a persuadirá a se casar com ele. Isso seria uma calamidade para ela e um sucesso para ele. Ela não consideraria uma calamidade: ele a faria acreditar em qualquer coisa; ela tem uma tendência ao apego imoderado, algo que ela internamente me censura por não corresponder, e sua mente já está ocupada com o futuro dele. Ele pensa em uma conquista fácil e em adentrar no meu ninho. Isso eu vou impedir! Tal casamento seria fatal para Dorothea. Ele já persistiu em qualquer coisa, exceto por contradição? No conhecimento, ele sempre tentou chamar a atenção a um custo pequeno. Na religião, ele poderia ser, desde que lhe conviesse, o eco fácil das fantasias de Dorothea. Quando o charlatanismo foi dissociado da frouxidão? Eu desconfio profundamente de sua moral, e é meu dever impedir ao máximo o cumprimento de seus desígnios” (p. 262).

Na próxima semana, nossa série dedicada à releitura de Middlemarch no ano do bicentenário de George Eliot abordara o quinto livro do romance, “The Dead Hand”. Não deixe de compartilhar suas experiências de leitura desta e outras obras de Eliot nos comentários aqui, no Facebook, no Instagram ou no Twitter!

REFERÊNCIAS

ELIOT, George; HORNBACK, Bert G. Middlemarch: A Norton Critical Edition. New York: Norton, 2000.

 

Publicado por

Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

1 comentário em “Bicentenário de George Eliot: Relendo Middlemarch – Book Four22 min read

  1. Marcela, acabo por acidente encontrando seu blog e fico feliz com a surpresa de que é parte da UERJ – região do Rio. Não sou da área das Letras, mas sou apaixonada por livros e literatura e no momento estou lendo Middlemarch. Admito que não esperava achar um espaço local que falasse sobre esta obra! Eliot não é tão popular quanto outros clássicos do século 19 por aqui.

    Seus textos são excelentes. Vou acompanhar o blog.

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