Dando continuidade à nossa série comemorativa do bicentenário de George Eliot, nesta semana abordamos o Terceiro Livro de Middlemarch, “Waiting for Death”. Você pode ler as postagens anteriores clicando nos links a seguir: Book One, Book Two.
Introdução
O terceiro dos oito livros que compõem Middlemarch traz a morte e a fragilidade da vida como seus grandes temas. Intitulado “Waiting for Death”, o volume explora o agravamento dos problemas de saúde de Mr. Featherstone, que aparece nessa fase da narrativa já acamado, e a revelação da fragilidade da saúde de Mr. Causabon, que sofre um infarto após um desentendimento com Dorothea.
Neste livro, Eliot aprofunda o conhecimento do leitor sobre o caráter e a personalidade Fred Vincy, narrando as origens e o desenvolvimento da ligação do jovem com Mary Garth e a família da moça, algo apenas mencionado brevemente nos primeiros dois livros. Entre os eventos mais relevantes do livro está a falha de Fred em honrar seu compromisso com Mr. Bambridge, o que traz problemas para Caleb Garth. O pai de Mary havia assinado o título da dívida que Fred contraíra como fiador do jovem. Acompanhamos também o subsequente adoecimento de Vincy e a aproximação de Rosamond e Dr. Lydgate, que culmina no noivado do casal.
Além disso, Dorothea e Edward Casaubon retornam de sua lua-de-mel e a protagonista prossegue em sua jornada de descobrimento dos contrastes entre a versão idealizada de sua vida de casada e a realidade da convivência com o marido. Por fim, Eliot introduz o interesse de Mr. Brooke por Will Ladislaw que desembocará em uma relação de amizade e de parceria profissional e política que terá ramificações importantes nos livros subsequentes.
Fred Vincy: Middlemarch como romance de amadurecimento
Middlemarch já foi lido como romance coming-of-age em relação a Dorothea, mas a categoria também pode ser aplicada em relação ao desenvolvimento de Fred Vincy. O leitor acompanha o amadurecimento do jovem conforme ele procura se adequar às expectativas de Mary Garth. Ela não espera que ele obtenha uma fortuna –a principal expectativa de Fred quanto ao futuro, por sua vez, está atrelada à possível herança que receberá de seu tio Featherstone – mas que o amigo de infância abandone o ócio e as atividades de lazer que ocupam a maior parte do seu tempo para encontrar sua verdadeira vocação. Ao contrário do pai Fred, que espera que ele conclua sua formação universitária e se dedique à vida na igreja, Mary Garth deseja que ele encontre uma ocupação pela qual realmente se interesse e à qual se dedique com firmeza. À altura dos eventos do Terceiro Livro, no entanto, Fred não poderia estar mais distante desse ideal.
Durante as férias, Fred naturalmente necessitara de mais diversões do que o dinheiro de que dispunha no momento poderia cobrir e o Sr. Bambridge havia sido gentil o bastante não apenas para confiar nele para o aluguel de cavalos e nas despesas acidentais de arruinar um bom caçador, mas também para fazer um pequeno adiantamento pelo qual ele poderia cobrir algumas perdas no bilhar. A dívida total era de cento e sessenta libras. Bambridge não estava preocupado com seu dinheiro, tendo certeza de que o jovem Vincy tinha quem o desse suporte; mas ele precisava de alguma garantia, e Fred tinha inicialmente dado uma nota com sua própria assinatura. Três meses depois, ele renovou a nota com a assinatura de Caleb Garth. Em ambas as ocasiões, Fred tinha se sentido confiante de que pagaria a conta, tendo amplos fundos à disposição em sua própria esperança. (p. 145)
Após uma série de escolhas ruins e uma onda de má sorte, consolida-se o fato de que Fred não conseguirá honrar sua dívida. A consequência é grave. A fim de cobrir o valor devido, Mrs. Garth terá que abrir mão do dinheiro que havia poupado para a educação de Alfred, seu filho de 15 anos e pedir a ajuda de Mary para completar o valor devido.
Consciente do mal que causara a Mary e à sua família, Fred fica profundamente abalado e logo fica doente. Um diagnóstico equivocado por parte de Mr. Wrench e a falta de interesse do médico em retornar quando o estado de Fred se agrava leva Mrs. Vincy – incentivada pelas circunstâncias e pelos apelos de Rosamond – a chamar o Dr. Lydgate, que diagnostica Fred com febre tifoide.
A família Vincy decide passar a contar exclusivamente com os serviços do Dr. Lydgate, considerando não apenas o diagnóstico equivocado e a prescrição de um remédio que agravou a condição de Fred, mas o agravante da recusa do médico em retornar quando o paciente reagiu mal à medicação. Evidentemente, notícias e rumores sobre o acontecido logo começaram a viajar por Middlemarch e Lydgate se vê em uma situação desagradável com outro profissional local.
Dessa maneira, Eliot retoma uma das grandes questões do Segundo Livro: o embate entre duas gerações e visões de mundo profundamente distintas – conservadorismo e reforma – que é precipitado pela chegada de Lydgate à pequena Middlemarch. Também é retomada a polêmica em torno de médicos que prescreviam as próprias drogas para pacientes.
O noivado de Lydgate e Rosamond
Outro desdobramento da aproximação de Lydgate e da família Vincy foi o desenvolvimento de uma amizade entre o jovem médico e Rosamond. A afinidade – além dos flertes – entre os dois logo gera rumores sobre um possível noivado que, embora inexistente à época em que Mrs. Bulstrode, tia de Rosamond, a questiona a respeito, é plenamente real ao final do terceiro livro.
Embora Lydgate tivesse decidido que não mais se precipitaria em assuntos matrimoniais após sua experiência negativa em Paris, acaba se apaixonando por Rosamond e, por consequência, se comprometendo a oferecer um estilo de vida ainda incompatível com suas condições financeiras, considerando o tempo que o médico dedica à pesquisa e ao atendimento não-remunerado no novo hospital de Middlemarch. Assim como a união de Dorothea e Casaubon, o noivado e subsequente casamento de Lydgate e Rosamond é decidido de forma apressada, sem que certos ruídos na comunicação entre o casal – anunciados no Segundo Livro – tenham sido desfeitos.
Por ora, no entanto, o principal insatisfeito com a união é o vaidoso Mr. Ned Plymdale, que desejava ele próprio se casar com Rosamond. Em uma das ceias oferecidas na casa dos Vincy, o jovem é envergonhado pela forma como Dr. Lydgate ri do conteúdo da revista literária Keepsake. Rosamond fica encantada ao ver o futuro noivo incorporando a antítese da província que ela esperava que ele representasse desde que o conhecera:
Mas ele fez alguns inimigos, além de médicos, por seu sucesso com Miss Vincy. Uma noite, ele entrou na sala de visitas um pouco tarde, quando vários outros visitantes estavam lá. A mesa de cartas tinha afastado os mais velhos e Ned Plymdale (um dos bons partidos em Middlemarch, apesar de não ser uma de suas principais mentes) estava tendo um tête-à-tête com Rosamond. Ele trouxera a última edição da Keepsake, a linda publicação que marcava o progresso moderno da época; e considerou-se muito afortunado por ser o primeiro a lê-la com a moça, conversando sobre as damas e os cavalheiros com brilhantes bochechas e sorrisos de cobre, e apontando para os versos cômicos como excelentes e histórias sentimentais como interessantes. Rosamond foi gentil, e Mr. Ned estava satisfeito por ter a melhor coleção sobre arte e literatura como um meio para “fazer a corte” – a coisa certa para agradar uma boa garota. Ele também tinha razões, mais profundas do que ostensivas, para estar satisfeito com sua própria aparência. Para os observadores superficiais, seu queixo tinha um aspecto demasiado evanescente, parecendo estar sendo gradualmente reabsorvido. E isso de fato lhe causou alguma dificuldade com o ajuste de seus colarinhos de cetim, para os quais os queixos eram úteis naquela época. (p. 170)
O fato de que Dr. Lydgate não é o único que ri de Ned Plymdale nessa passagem transparece não apenas pela menção ao volume literário, mas pelo comentário jocoso da narradora acerca do queixo do jovem. Sobre a publicação, uma nota na edição crítica da Norton explica que Eliot desprezava a Keepsake tanto quanto o médico:
“A Keepsake era parte de uma série de anuários literários do século XIX, consistindo geralmente de prosa e verso sentimental e ilustrações fúteis e exageradamente adornadas. GE comenta sobre uma pintura de Dickens, de Daniel Maclise, reproduzidas em Life of Charles Dickens, de John Forster, como “a cara impossível e à lá Keepsake que Maclise lhe deu” (Gordon S. Haight, The George Eliot Letters, 7 vols. Press, 1954-55], 5: 226). Essa edição da Keepsake foi publicada não na primavera de 1830 – a época dessa cena – mas no outono de 1831; conferir Richard D. Altick, Anachronisms in Middlemarch: A Note,” Nineteenth-Century Fiction 33 (1978): 366-7 para este e vários outros anacronismos neste romance histórico extraordinário.”
A cena prossegue, com Dr. Lydgate ridicularizando a publicação sem mesmo perceber que estava ofendendo Plymdale. Rosamond se diverte com a situação:
“Dê que você ri tão profanamente?” disse Rosamond, com uma neutralidade suave.
“Eu me pergunto qual o que seria mais tolo – as gravuras ou a escrita aqui”, disse Lydgate, em seu tom mais convencido, enquanto virava as páginas rapidamente, parecendo ver o livro todo sem perder tempo, e mostrando suas grandes mãos brancas com grande vantagem, como Rosamond pensou.
“Olhe para este noivo saindo da igreja: você já viu tamanha ‘invenção açucarada’ – como os elisabetanos costumavam dizer? Algum armarinho alguma vez já pareceu tão sorridente? Ainda assim, uma coisa é fato, a história faz dele um dos primeiros cavalheiros dessa terra”. (p. 171)
Dorothea retorna a Lowick
No Terceiro Livro, reencontramos Dorothea já em seu retorno a Lowick com Casaubon. O casal chega à Inglaterra em meados de Janeiro e, em pleno inverno, a neve que cobre Lowick Manor e o terreno da propriedade parece emular o estado de espírito da jovem Mrs. Casaubon, conforme a realidade da sua vida de casada começa a contrastar de forma mais palpável com a sua idealização. Dorothea percebe que, embora pensasse que seu papel enquanto esposa implicaria em uma união mais profunda com Casaubon e que compartilharia dos interesses acadêmicos do marido, a realidade era outra. Ela teria que seguir desempenhando a função de “gentlewoman”. A percepção é sufocante para a heroína de Eliot:
Os deveres de sua vida de casada, contemplados como tão grandes de antemão, pareciam estar encolhendo com a mobília e a paisagem branca coberta pela névoa. (…) Quando começariam os dias daquela ativa devoção que deveria fortalecer a vida do marido e exaltar a sua própria? Nunca, talvez, como ela os havia preconcebido; mas de alguma forma – ainda de alguma forma. Nessa união solenemente prometida de sua vida, o dever se apresentaria em alguma nova forma de inspiração e daria um novo significado ao amor conjugal. Enquanto isso, havia a neve e o arco baixo de névoa – havia a opressão sufocante daquele mundo de gentlewoman, onde tudo era feito por ela e ninguém pedia sua ajuda -, onde o senso de conexão com uma múltipla existência potente tinha que ser mantido dolorosamente como uma visão interior, em vez de vir de fora em reivindicações que teriam moldado suas energias. (…) Sua juventude florescente pulsava ali em uma prisão moral que se uniu com a paisagem fria, incolor e estreita, com a mobília encolhida, os livros nunca lidos, e o cervo fantasmagórico em um mundo fantástico pálido que parecia estar desaparecendo da luz do dia. (p. 173)
Embora tudo que antes lhe encantava em Lowick pareça agora lhe aprisionar, Dorothea se alegra ao rever a fotografia da avó de Ladislaw.
Cada coisa relembrada na sala tinha perdido o encanto, sendo amortecida como uma transparência apagada, até que seu olhar errante chegou ao grupo de miniaturas, e lá ela finalmente viu algo que adquirira novo fôlego e significado: era a miniatura da tia do Sr. Casaubon, Julia, que fez um mau casamento – da avó de Will Ladislaw. Dorothea podia imaginar que estivesse viva agora – o rosto delicado da mulher que ainda tinha um olhar obstinado, uma peculiaridade difícil de interpretar. Foram apenas os amigos dela que acharam o casamento ruim? Ou ela mesma achou que tinha sido um erro, e saboreou a amargura salgada de suas lágrimas no silêncio misericordioso da noite? Que amplitude de experiência Dorothea parecia ter passado desde que ela olhou pela primeira vez para aquele retrato! Ela sentiu um novo companheirismo, como se tivesse alguém para ouvi-la e que pudesse ver como ela estava olhando para o retrato. Aqui estava uma mulher que tinha conhecido alguma dificuldade sobre casamento. (p. 173)
Por sua vez, Casaubon começa a demonstrar de forma mais consistente os sinais dos ciúmes em relação a Ladislaw sugeridos no Segundo Livro. Embora Dorothea não tenha ainda uma noção clara dos sentimentos do primo do marido (ou dos que ela mesma desenvolveria), Edward reage mal quando Will lhe envia uma carta com uma mensagem anexa para Dorothea:
Dorothea tinha aprendido a ler os sinais do humor do marido e viu que a manhã se tornara mais nebulosa durante a última hora. Ela estava indo silenciosamente para sua mesa quando ele disse, naquele tom distante que implicava que ele estava cumprindo um dever desagradável –
“Dorothea, aqui está uma carta para você, que foi incluída em uma dirigida a mim.”
Era uma carta de duas páginas e ela imediatamente olhou para a assinatura.
“Mr. Ladislaw! O que ele pode ter a dizer para mim?” ela exclamou, em um tom de surpresa satisfeita. “Mas”, acrescentou ela, olhando para o sr. Casaubon, “posso imaginar o que ele escreveu para você.”
“Você pode, por favor, ler a carta”, disse Mr. Casaubon, apontando severamente para a correspondência com a caneta e sem olhar para ela. “Mas posso também dizer de antemão, que devo recusar a proposta que contém, para fazer uma visita aqui. Confio que posso ser desculpado por desejar um intervalo de total liberdade de distrações que até agora têm sido inevitáveis, e especialmente de convidados cuja vivacidade desordenada torna sua presença uma fadiga”. (p. 177-178)
Surpresa com a resposta agressiva de Casaubon, Dorothea se aborrece, questionando o que poderia ter levado o marido a pensar que ela sugeriria qualquer coisa que pudesse lhe atrapalhar de alguma maneira. Os dois discutem brevemente e pouco tempo depois, Casaubon passa mal. Sir James sugere chamar o Dr. Lydgate, que, após atender Casaubon, explica para Dorothea que o marido poderia viver mais 15 anos com saúde, mas que poderia ter outro ataque em poucas semanas, já que doenças cardíacas são, muitas vezes, imprevisíveis. O médico explica para a jovem que Casaubon deveria evitar o excesso de trabalho (ao que ela lhe explica que isso o deixaria muito infeliz) e qualquer tipo de aborrecimento. Com isso, ela entrega a carta de Will a seu tio, pedindo que ele responda explicando que Casaubon não poderia receber visitas por motivos de saúde. Mr. Brooke reflete acerca do encontro que tivera com Ladislaw alguns meses antes e pensa que seria bom ter a companhia de um jovem em Lowick, já que em breve Celia se casaria com Sir James Chettam.
Mr. Featherstone e os dois testamentos
Enquanto Mr. Casaubon repousa para se recuperar do ataque cardíaco em Lowick, o estado de saúde de Mr. Featherstone se deteriora em Stone Court. Mary Garth cuida de Peter e lida com a súbita horda de visitantes e familiares que desejam se aproximar do velho Featherstone conforme a morte dele se torna iminente. Ele se recusa a receber a maior parte deles, brigando com seus irmãos Solomon Featherstone e Jane Waule. Considerando que seu tio aceita somente a sua companhia e a de Mrs. Vincy, Fred – já plenamente recuperado – acredita que suas expectativas serão justificadas muito em breve. No entanto, o leitor logo descobre que Peter Featherstone possui dois testamentos.
Na noite de sua morte, Mr. Featherstone acorda Mary às 3 da manhã e a instrui a destruir um dos testamentos. A jovem se recusa a se envolver e pede que Mr. Featherstone permita que ela chame o seu advogado. Featherstone então pede que ela chame Fred Vincy. Mary começa a pensar sobre as implicações da destruição do documento e diz que chamará Fred somente se Featherstone permitir que ela chame os outros também. Por mais que ele insista e lhe ofereça dinheiro, Mary não cede. Peter Featherstone morre sem queimar nenhum dos testamentos, já que Mary Garth se recusa a participar de algo que poderia fazer com que acusações recaíssem sobre ela mais tarde.
“Eu não posso tocar no seu baú de ferro nem no seu testamento. Eu devo me recusar a fazer qualquer coisa que possa gerar suspeitas em relação a mim.”
“Eu lhe garanto, eu estou em plena posse de minhas faculdades mentais. Não devo fazer o que quero em meus momentos finais? Eu fiz dois testamentos de propósito. Pegue a chave, falo sério.”
“Não, senhor, eu não vou”, disse Mary, mais decidida ainda. Sua repulsa estava ficando mais forte.
“Eu lhe digo, não há tempo a perder.”
“Eu não posso fazer nada a respeito, senhor. Eu não vou deixar o fim de sua vida manchar o começo da minha. Eu não vou tocar no seu baú de ferro nem no seu testamento.” Ela se distanciou um pouco da cabeceira. (p. 198)
A firmeza de Mary terá implicações significativas para o futuro de Fred Vincy e para o desenvolvimento do rapaz ao longo do romance. Dessa forma, o Terceiro Livro se inicia com escolhas infelizes de Fred e se encerra com uma escolha de Mary com o potencial de mudar a postura e o futuro do amigo.
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Na próxima semana, nossa série dedicada à releitura de Middlemarch no ano do bicentenário de George Eliot abordara o quarto livro do romance, “Three Love Problems”. Não deixe de compartilhar suas experiências de leitura desta e outras obras de Eliot nos comentários aqui, no Facebook, no Instagram ou no Twitter!
REFERÊNCIAS
ELIOT, George; HORNBACK, Bert G. Middlemarch: A Norton Critical Edition. New York: Norton, 2000.