Dando continuidade à nossa série comemorativa do bicentenário de George Eliot, nesta semana abordamos o Sexto Livro de Middlemarch, “The Widow and the Wife”. Você pode ler as postagens anteriores clicando nos links a seguir: Book One, Book Two, Book Three, Book Four, Book Five.
Introdução
Em “The Widow and the Wife”, reencontramos Dorothea três meses após a morte de Edward. Tendo passado este período em Freshitt com Celia e o bebê – o pequeno Arthur – a viúva Mrs. Casaubon está entediada, inquieta, e ansiosa para retornar a Lowick. Tal ansiedade, é confidenciado ao leitor, não se resume apenas à vontade de Dorothea de dar andamento aos seus projetos na propriedade e sua ânsia para ouvir os sermões de Mr. Farebrother. Na realidade, mesmo contra a vontade de seus amigos e familiares, ela espera encontrar Will Ladislaw outra vez, ainda que se sinta impossibilitada de reparar a injustiça que, a seu ver, Casaubon impôs ao primo.
Dorothea se sente desconfortável com sua fortuna – julgando que Will também deveria ser herdeiro de Edward – e repudia a implicação da decisão do marido de inserir uma cláusula adicional em seu testamento deserdando-a caso se casasse com Ladislaw. Conforme discutimos na semana passada, a cláusula parecia – à Dorothea e à sociedade de Middlemarch – sugerir que haveria algum tipo de relação imprópria entre os dois ou que, ao menos, Will teria intenções predatórias (como o próprio Edward revelou pensar, em suas elucubrações) ao se aproximar de Dorothea.
Embora Will e Dorothea se encontrem e tenham duas despedidas, o Sexto Livro é marcado pelos mal-entendidos entre os dois. Na primeira vez em que Will se despede de Dorothea, ele ainda não sabe da cláusula adicional. Na segunda ocasião, ele já sabe. A tensão deste constrangimento somada à insegurança de Dorothea em relação à proximidade de Will e Rosamond impede que ela tenha certeza que, quando ele lamenta ter que deixar aquilo que mais ama por lhe ser inalcansável, ele está falando dela e não da esposa do Dr. Lydgate.
O tema do contraste entre conservadorismo e progresso – tradição e reforma – retorna no Sexto Livro com a iminência da chegada das ferrovias. A noção de que a linha férrea cortará campos de pastagem ao meio assusta grandes proprietários como o Solomon Featherstone e trabalhadores rurais que, em um ato de vandalismo, ferem um dos funcionários de Caleb Garth. “Alguém vem lhes contando mentiras” (p. 346), o pai de Mary diz aos homens que rejeitam a ferrovia, explicando que os esforços para impedir a instalação da mesma eram fúteis. Assim como as demais reformas retratadas no romance, não é possível conter a revolução sobre trilhos.
No episódio do protesto contra a ferrovia, Fred Vincy, que passava por acaso naquele momento, auxilia Mr. Garth no socorro do seu funcionário. Os dois homens conversam e Fred manifesta interesse de trabalhar para o pai de Mary. Como sabemos, Caleb já havia mencionado que gostaria de ajudar Fred no Quinto Livro. Dessa forma, ele não apenas não precisará seguir em uma profissão que não lhe interessa, como poderá lutar por Mary, que deixara claro que Fred não teria chances com ela caso se tornasse um clérigo sem ter interesse ou aptidão para tal.
Enquanto isso, a crise que já se anunciava no casamento de Dr. Lydgate no Quinto Livro se agrava profundamente. Seriamente endividado, o médico percebe que o companheirismo que esperava da esposa no momento de crise não chegará. Por sua vez, Rosamond começa a se arrepender de ter casado com Tertius. Além dos problemas financeiros, a jovem perde o bebê que esperava após cavalgar com o Capitão Lydgate – primo de Dr. Lydgate – contra as orientações do marido. Aquilo que antes ele via como “firmeza de propósito” logo se converte em uma tenacidade preocupante à medida em que Rosamond se recusa a atender à vontade de Tertius na maioria das ocasiões.
Por fim, a verdade sobre as origens de Will – exposta ao leitor no Quinto Livro – é revelada ao jovem por Nicholas Bulstrode. Diante da pressão exercida por Raffles, que se recusava a deixar Middlemarch e chegou a abordar Will querendo falar sobre os seus pais, Mr. Bulstrode decide revelar por conta própria a história de como seu caminho e o de Ladislaw se entrelaçaram no passado. A intenção do banqueiro era oferecer uma quantia anual ao filho de Sarah Dunkirk e garantir a ele uma parcela de sua herança. Ao ver confirmadas suas suspeitas de que a razão para sua mãe ter fugido de casa eram os negócios escusos da família, Will rechaça a oferta de Bulstrode e mantém sua honra. Após se despedir de forma definitiva de Dorothea, ele deixa Middlemarch.
A viuvez de Dorothea
Três meses após a morte de Casaubon e finalmente de volta a Lowick Manor, Dorothea lida com o seu luto e reflete sobre a vida de casada. É revelado ao leitor que ela passara dezoito meses como esposa de Edward e, concluindo que a pena que sentia pelo marido foi a força motriz por trás de suas atitudes durante seu casamento, Dorothea se sente desobrigada em relação às expectativas de Casaubon que ela levasse seu trabalho adiante.
No começo, ela entrava em todos os cômodos, questionando os dezoito meses de sua vida de casada e conduzindo seus pensamentos como se fossem um discurso a ser ouvido pelo marido. Então, ela permanecia na biblioteca e não podia descansar até ter cuidadosamente arranjado todos os cadernos de anotações como imaginava que ele desejaria vê-los, em sequência ordenada. A pena, que tinha sido o que a impelia e restringia em sua vida com ele, ainda se agarrava a sua imagem, mesmo enquanto ela protestava com ele em indignação e lhe dizia que ele era injusto. Um pequeno ato dela talvez seja considerado supersticioso. A tabulação sinóptica para o uso de Mrs. Casaubon ela cuidadosamente fechou e selou, escrevendo dentro do envelope: “Eu não poderia usá-la Você não vê agora que eu não poderia submeter minha alma à sua, trabalhando desesperadamente naquilo em que eu não acredito? – Dorothea”. Então ela depositou o papel em sua própria mesa. (p. 333-334)
No entanto, embora Dorothea tenha uma visão mais clara do tempo que passou com Casaubon, seus sentimentos em relação a Will ainda são confusos, especialmente após a divulgação da cláusula adicional no testamento de Edward. A jovem, agora aos 21 anos, sabe que não pode sequer entreter a ideia de dar vazão ao sentimento que nutre por Ladislaw, mas ainda assim se questiona se ele sente algo por ela. Após tê-lo “flagrado” na casa dos Lydgate sem a presença do médico e descoberto que aquela era uma ocorrência constante, Mrs. Casaubon não sabe ao certo por quem Ladislaw se apaixonou.
Sem que o jovem saiba da cláusula adicional no testamento do primo, ele se despede de Dorothea, pretendendo retornar a Middlemarch quando tivesse “feito um nome para si” e se elevado a uma posição à altura da dela. No entanto, Ladislaw não deixa a cidade imediatamente e por diversas vezes adia sua partida. Quando ele procura Dorothea para se despedir pela segunda – e derradeira – vez, a moça se pergunta se seria ela a razão que manteve Will em Middlemarch por tanto tempo ou se sua relutância em partir seria Mrs. Lydgate. Em uma conversa definida por mal-entendidos e palavras não ditas, Will deixa Middlemarch decidido a não mais retornar. Enquanto ele pensa ter se declarado de forma inequívoca e sido recebido com frieza por Dorothea, ela não consegue ter certeza se era a ela que ele se referia quando lamentava a impossibilidade de ter perto de si o que mais lhe importava:
‘Sim; mas eu ignorava coisas que agora conheço – coisas que alteraram meus sentimentos em relação ao futuro. Quando a vi antes, sonhava que poderia voltar algum dia. Agora, acredito que jamais voltarei.” Will fez uma pausa aqui.
(…)
“O que você fará na vida?” disse Dorothea, timidamente. “Suas intenções permaneceram exatamente as mesmas de quando dissemos adeus antes?”
“Sim”, disse Will, em um tom que pareceu renunciar ao assunto como desinteressante.
“Eu devo trabalhar na primeira coisa que apareça. Suponho que me habitue a viver sem felicidade ou esperança.”
“Oh, que palavras tristes!” disse Dorothea, com uma perigosa tendência a soluçar. Em seguida, tentando sorrir, ela acrescentou: “Nós costumávamos concordar que éramos semelhantes no hábito de nos expressarmos com demasiada intensidade”.
“Eu não falei com muita intensidade agora”, disse Will, recostando-se no ângulo da parede. “Há certas coisas que um homem só pode passar uma vez em sua vida; e ele deve saber em algum momento que o melhor já passou para ele. Essa experiência aconteceu comigo enquanto sou muito jovem – isso é tudo. O que eu estimo mais do que qualquer outra coisa é absolutamente proibido para mim – não me refiro apenas a estar fora do meu alcance, mas proibido a mim, mesmo que estivesse ao meu alcance, por meu próprio orgulho e honra – por tudo digno de respeito em mim. É claro que continuarei vivendo como um homem faria se tivesse visto o céu em transe. ” (p. 391)
O retorno de Fred Vincy
Quando uma afeição terna vive em nós por muitos anos, a ideia de que poderíamos aceitar qualquer tipo de troca por ela parece um barateamento de nossas vidas. E podemos estabelecer uma vigilância sobre nossas afeições e nossa constância tanto quanto podemos sobre outros tesouros. (p. 358)
Tendo concluído seu bacharelado, Fred Vincy está de volta a Middlemarch. No entanto, ele segue desanimado com a perspectiva de se tornar um clérigo, não apenas por sua falta de aptidão e vontade, mas porque Mary garantiu que não se casaria com ele caso seguisse por esse caminho. Por outro lado, Fred não quer decepcionar seu pai, que investiu tanto em sua educação.
Por coincidência, em uma tarde que passava cavalgando por Lowick, Fred se depara com Caleb Garth enquanto alguns aldeões protestam contra a chegada da ferrovia. Em sua irritação, eles acabaram machucando um dos funcionários de Mr. Garth. Após Caleb conversar com os homens em questão, explicando que a ferrovia seria uma boa novidade para eles, o pai de Mary aceita empregar Fred e lhe ensinar tudo sobre o trabalho nas grandes propriedades que administra. É importante lembrar que no Quinto Livro Mr. Garth já havia manifestado este interesse.
Exultante, Fred mal pode esperar para contar a novidade a Mary. No entanto, antes que esse encontro aconteça, a mãe da jovem o critica por ter pedido a Mr. Farebrother que falasse com Mary sobre a possibilidade de ela um dia vir a aceitar se casar com Fred, dando a entender que Farebrother também nutria sentimentos pela moça.
Quanto Fred e Mary finalmente se encontram na casa dos Farebrother – Mary era muito amiga da família – o jovem tem uma crise de ciúme dizendo que seria impossível competir com um homem tão superior a ele e que Mary certamente acabaria casada com Camden. Ela, por sua vez, ri da tolice de Vincy e diz a ele que se ela fosse uma coquete, poderia se divertir deixando-o acreditar que ela tinha interesse por outra pessoa. Fred, enfim, percebe que tem uma chance real de se casar com a amiga de infância.
Mary x Rosamond
A observação de Mary sobre o comportamento da coquete permite que o leitor identifique um contraste entre ela e Rosamond, com quem tivera atritos no início do livro. Enquanto Mary é sempre direta e sem melindres, deixando claro para Fred – e para Mr. Farebrother, quando a ocasião se apresentou – as circunstâncias nas quais ele poderia contar com a possibilidade de se casar com ela e que ela não pretendia aceitar a nenhum outro – Rosamond é a típica coquete. O fato de manter essa postura mesmo após o seu casamento frequentemente a coloca em situações pouco favoráveis.
Embora Rosamond se aborreça com o comportamento de Lydgate quando o considera pouco cortês e na ocasião em que ele, afundado em dívidas, aceita receber um dos seus credores para avaliar a prataria e os móveis da casa como garantia, sua própria postura é motivo de comentários pouco elogiosos em Middlemarch. Que as fofocas e julgamentos em torno da amizade de Rosamond e Ladislaw não são meros frutos de uma mentalidade provinciana atrasada fica claro quando a narradora confidencia ao leitor que Mrs. Lydgate pensava estar causando ciúmes no jovem e que a ideia lhe agradava:
– Pergunte a Ladislaw se ele não acha seu capitão o maior chato que já conheceu. Ladislaw quase não nos visitou mais desde que ele chegou.
Rosamond achava que sabia muito bem por que Mr. Ladislaw não gostava do Capitão: ele estava com ciúmes e ela gostava que ele tivesse ciúmes.
“É impossível compreender os gostos de pessoas excêntricas”, respondeu ela, “mas na minha opinião, o Capitão Lydgate é um pleno cavalheiro, e acho que você não deve, em respeito a Sir Godwin, tratá-lo com negligência.” (p. 360)
Por sua vez, o homem que teria causado os supostos ciúmes também era objeto dos flertes e atenções de Mrs. Lydgate ao ponto de ela desobedecer as orientações do marido, pondo em risco sua própria saúde e a integridade do bebê que esperava. Em dado momento, Lydgate sugere que Rosamond gostaria que ele fosse mais parecido com o primo, o que deixa claro que a postura da esposa o deixava inseguro sobre sua afeição.
A crise em Lowick Gate
Rosamond ficou perfeitamente imóvel. O pensamento em sua mente era que, se soubesse como Lydgate se comportaria, nunca teria se casado com ele. (p. 368)
A crise financeira de Dr. Lydgate, que começava a dar sinais já em “The Dead Hand”, atinge seu auge no Sexto Livro. Cercado pelos credores e afundado em dívidas, Tertius enfrenta a árdua tarefa de pedir a colaboração de Rosamond para reduzir gastos até que a situação melhorasse. A jovem, como era de se esperar, reage mal e imediatamente se torna distante, se ressentindo do marido pela crise. Ela sugere que ele peça ajuda ao sogro, embora há tempos Mr. Vincy já deixasse claro para ela que não os ajudaria. Quando Lydgate se nega, ele se sente inseguro por saber que Rosamond age de acordo com o próprio juízo e que havia grande chance de procurar o pai de qualquer maneira.
Ela sugere então que ele peça ajuda à sua própria família e quando ele recusa, explicando que um homem irá até Lowick Gate no dia seguinte para avaliar os móveis e prataria, Rosamond se choca com a humilhação das circunstâncias e, de início, se recusa a receber o profissional. Com a insistência do marido, ela cede, mas se ofende pelo que considera uma afronta indizível, implorando para que eles deixem Middlemarch.
A reação de Rosamond à crise e a subsequente dificuldade do casal de se manter em harmonia revelam uma incompatibilidade já assinalada pela narradora no início do romance. Os dois se relacionavam com as expectativas que tinham em relação ao outro e não com a pessoa em si.
Por meio dos dois casamentos que se dão no início do romance – Dorothea e Casaubon, Rosamond e Lydgate – Eliot quebra com a convenção do matrimônio como chave para um final feliz. Para ambos os casais, as uniões foram imprudentes, com noções equivocadas movendo os envolvidos a despeito dos conselhos de seus familiares e amigos. A essa altura, Tertius pensa na devoção com que Dorothea falava das pesquisas de Casaubon e percebe que Rosamond sempre desaprovaria aquilo que era mais importante para ele porque era algo que lhe trazia pouco retorno financeiro ou prestígio social. Rosamond, por sua vez, já se arrependia da união, mortificada pelo comportamento do marido.
As origens de Will Ladislaw
Sua crença [de Mr. Bulstrode] nesses momentos de pavor era que, se ele fizesse algo correto espontaneamente, Deus o salvaria das consequências de seus erros. Pois a religião só pode mudar quando as emoções que a preenchem são alteradas; e a religião do medo pessoal permanece quase ao nível do selvagem. (p. 384)
Após a cena no Quinto Livro em que Raffles se esforça para lembrar o nome do marido de Sarah Dunkirk e finalmente comemora ao escrever o nome “Ladislaw” na sua agenda, em “The Widow and the Wife” o grande segredo de Mr. Bulstrode vem à tona, ao menos para Will. Após um leilão, Ladislaw é abordado por Raffles, que anuncia ter conhecido Sarah Dunkirk e o pai do jovem. Incomodado, Will não lhe dá ouvidos.
Mais tarde, Ladislaw recebe um convite de Bulstrode para se dirigir à sua casa e, pensando se tratar de um assunto relacionado ao Pioneer, não estranha o pedido. No entanto, Bulstrode decide contar toda a verdade sobre o seu envolvimento com a família materna de Will. O jovem, por sua vez, percebe que o banqueiro sabia o paradeiro de sua mãe e mesmo assim não contou à Mrs. Dunkirk para que ela aceitasse se casar com ele. Por outro lado, também confirma com o banqueiro que os negócios da família não eram legítimos e que essa foi a razão que levou Sarah a fugir de casa e se tornar atriz. Dessa maneira e a fim de preservar sua honra e seus valores, Ladislaw rechaça a oferta de apoio financeiro de Bulstrode e decide deixar Middlemarch de forma definitiva após se despedir de Dorothea.
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Na próxima semana, nossa série dedicada à releitura de Middlemarch no ano do bicentenário de George Eliot abordara o sétimo livro do romance, “Two Temptations”. Não deixe de compartilhar suas experiências de leitura desta e outras obras de Eliot nos comentários aqui, no Facebook, no Instagram ou no Twitter!
REFERÊNCIAS
ELIOT, George; HORNBACK, Bert G. Middlemarch: A Norton Critical Edition. New York: Norton, 2000.
Publicado por
Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.
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