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Bicentenário de George Eliot: Relendo Middlemarch – Book SevenLeitura em 25 minutos

Bicentenário de George Eliot - Middlemarch: Book Seven

Dando continuidade à nossa série comemorativa do bicentenário de George Eliot, nesta semana abordamos o Sétimo Livro de Middlemarch, “Two Temptations”. Você pode ler as postagens anteriores clicando nos links a seguir: Book OneBook TwoBook ThreeBook Four, Book Five, Book Six.

Introdução

O Sétimo livro se inicia com os médicos de Middlemarch e Mr Farebrother falando sobre o trabalho de Lydgate no novo hospital. De certa forma, essa congregação de profissionais da medicina prenuncia outra reunião que se dará no final de “Two Temptations”. O livro acompanha a queda de Nicholas Bulstrode de cidadão eminente a pária social em Middlemarch e, incidentalmente, uma queda para Lydgate também: conforme a crise no seu casamento é progressivamente agravada pela sua crise financeira, chegando ao ponto culminante de Lowick Gate começar a ser retomada pelos credores do médico, Lydgate se vê involucrado nos eventos que levaram à morte de Raffles, pela qual os cidadãos de Middlemarch culpam Nicholas Bulstrode, após Bambridge compartilhar com quem quisesse ouvir o que o padrasto de Mr. Rigg havia compartilhado com ele sobre o passado do banqueiro.

As duas tentações referenciadas pelo título do Sétimo Livro afligem os dois protagonistas dessa seção do romance. Bulstrode tem duas tentações. A prmeira delas se dá quando ele se dá conta de que esquecera de compartilhar com Mrs. Abel que as doses de ópio administradas a Raffles deveriam ser interrompidas após um intervalo de tempo indicado por Lydgate. Em dúvida se deveria voltar e avisar à governanta ou simplesmente permitir que o mal-entendido precipitasse o agravamento do estado de saúde do chantagista, o banqueiro opta pela segunda opção, ansiando por se ver livre da figura do seu passado. Ainda nesse ínterim, quando Mrs. Abel pede que o patrão lhe forneça a chave do armário de bebidas para que ela saciasse o pedido do doente por um pouco de brandy, ele hesita mas aquiesce, sem contar à mulher que Lydgate o havia orientado especificamente nesse sentido: nenhuma bebida alcoólica deveria ser oferecida a Raffles, já que ele estava se recuperando de uma intoxicação por álcool.

De sua parte, Lydgate também é tentado duas vezes ao longo do Sétimo Livro. Primeiramente, ele considera viajar para pedir um empréstimo a Sir Godwin, mas tal expectativa é frustrada por Rosamond, que, sem o conhecimento do marido, havia enviado uma carta ao tio do marido pedindo ajuda financeira, prontamente negada pelo mesmo. Alternativamente, podemos apontar a primeira tentação de Lydgate na cena em que, deprimido pelos seus prospectos financeiros e pela reação de Rosamond à crise, ele se encaminha ao Green Dragon, já alterado pelo ópio. Em uma postura que ele antes desprezava, o médico se perde em apostas no bilhar, sendo resgatado por Fred Vincy. Após uma conversa com o cunhado e Farebrother, Lydgate volta para casa sem maiores prejuízos. Quanto à segunda tentação, no entanto, não há ambiguidade ou dúvida: trata-se do momento em que, após ter tido um pedido de empréstimo friamente recusado por Mr. Bulstrode, Lydgate aceita as mil libras ofertadas pelo banqueiro mais tarde naquele mesmo dia. Ainda que se sinta desconfortável com a situação, estando tratando de Raffles a essa altura, o médico aceita o socorro financeiro do tio da esposa, em um gesto do qual se arrependeria amargamente quando, após as circunstâncias suspeitas da morte de Raffles, a sociedade de Middlemarch desconfia que o silêncio dele teria sido comprado por Bulstrode, fazendo parte de uma aliança espúria para eliminar um desafeto de Nicholas. A reputação de Tertius Lydgate é destruída junto com a de Nicholas Bulstrode.

Book Seven: A queda de Bulstrode e Lydgate

Como apontamos na ilustração, a primeira cena do Sétimo Livro prenuncia alguns dos desfechos de “Two Temptations”. Discutindo a dedicação de Lydgate ao Novo Hospital, Mr. Farebrother defende o amigo quando alguns dos colegas de profissão do médico reclamam das inovações de Tertius. O pároco aponta, se referindo às pesquisas de Lydgate, que “se um homem vai um pouco longe demais por uma nova estrada, geralmente é a ele próprio que ele prejudica, mais do que a qualquer outra pessoa” (p. 395). Mais tarde, antes de o escândalo estourar em Middlemarch, Lydgate se sente inseguro pelo fato de que o tratamento que prescrevera a Raffles ser fruto de pesquisas recentes de um médico norte-americano. No entanto, como sabemos, a razão de o tratamento não ter resultado na recuperação do paciente foi a forma deliberada como Bulstrode omitiu informações cruciais das orientações que compartilhou com Mrs. Abel. Uma reunião dos médicos da cidade chega à conclusão de que não havia nada errado com o tratamento prescrito por Tertius, embora concordem que algo “não cheirava bem” no caso em questão. Não apenas a conexão de Lydgate com Bulstrode, mas o empréstimo que contraíra em ocasião tão próxima à morte de Raffles fez com que suspeitas recaíssem imediatamente sobre ele.

Em uma festa na casa dos Vincy, a crise no casamento de Rosamond e Tertius transparece. Ela é calculadamente distante e, embora a maior parte dos presentes estejam preocupados com seus próprios problemas (Mrs. Vincy sofre imaginando o casamento de Mary e Fred; este último, por sua vez, sofre com ciúmes de Farebrother e Miss Garth), Mr. Farebrother percebe que há algo errado entre os dois. Consciente da ajuda que Lydgate lhe prestou ao indica-lo para o vicariato de Lowick, Camden tenta retribuir o favor, mas não é bem-recebido. Por orgulho, Lydgate desconversa e não aceita ajuda. No capítulo seguinte (LXIV), é revelado que mesmo que Lydgate estivesse disposto a aceitar de Farebrother, o pároco dificilmente teria fundos necessários suficientes para tirá-lo da enrascada em que caíra: Lydgate precisava de um empréstimo de ao menos 1000 libras. O fim do ano  de 1831 se aproxima (significando que os credores o pressionariam ainda mais) e Tertius se ressente por passar uma parcela considerável do seu tempo se preocupando com assuntos financeiros, julgados por ele como residindo muito abaixo de suas capacidades. Ele classifica suas tensões atuais como “ansiedades vulgares”. O mau-humor de Lydgate, causado pelas circunstâncias financeiras, leva Rosamond a se afastar ainda mais do marido, agravando a crise do casal.

Embora Lydgate procure enfrentar a situação com coragem e tente se aproximar da esposa, compartilhando a gravidade da situação, os dois acabam discutindo por causa do corte de gastos proposto por ele. Rosamond se sente profundamente ofendida pelas expectativas de Tertius. Nessa cena, Eliot trabalha bem os efeitos das expectativas diferentes que os dois tinham para a vida de casados. Lydgate esperava companheirismo, Rosamond esperava não apenas a manutenção do seu padrão de vida de solteira, mas uma elevação social que Tertius não ofereceu. Em vez disso, ela se sente degradada pela proposta de estilo de vida que ele ora faz. Novamente, Rosie enfrenta o marido e compartilha com ele a sua visão do que ele deveria fazer, o que o aborrece. No entanto, ao orientar o marido (embora aja de forma contrária ao costume), Rosamond não deixa de estar certa – ela tem bom senso e conhece a sociedade de Middlemarch muito melhor do que o marido:

“Por que você não deveria ter uma boa clínica, Tertius? Mr. Peacock tinha. Você deve ter mais cuidado para não ofender as pessoas e deveria fornecer medicamentos como os outros. Tenho certeza de que você começou bem e conseguiu várias boas casas. Não pode ser uma boa ideia ser excêntrico; você deve pensar no que será geralmente apreciado”, disse Rosamond, em um tom decidido de advertência. (p. 401-402)

Por sua vez, Lydgate simplesmente não compreende a dimensão da humilhação que a ideia de vender Lowick Gate para Ned Plymdale, especificamente, representa para Rosamond. Mais uma vez, Eliot sublinha que os elementos que levaram à união dos dois partiam de uma comunicação equivocada: Tertius e Rosamond esperavam coisas diferentes da vida de casados e a diferença em suas mentalidades afeta gravemente a sua vida compartilhada:

“Acho que vejo um recurso que nos libertaria de boa parte da dificuldade atual. Ouvi dizer que o jovem Ned Plymdale vai se casar com a senhorita Sophy Toller. Eles são ricos, e não é sempre que uma boa casa está vazia em Middlemarch. Tenho certeza de que eles ficariam felizes em tirar esta casa de nós com a maioria de nossos móveis e estariam dispostos a pagar generosamente pelo aluguel. Eu posso empregar Trumbull para falar com Plymdale sobre isso.” (p. 402)

Rosamond é obstinada e, embora mantenha-se em silêncio diante das admoestações do marido, ela “deixa a sala em silêncio” com “uma determinação imensa de impedir o que Lydgate pretendia fazer” (p. 403). Assim, ela procura Mrs. Plymdale e, na sequência, Mr. Trumbull. Para a mãe de Ned, ao ouvir que o jovem tinha uma casa nada ideal em vista, ela nada diz sobre Lowick Gate estar disponível. A Trumbull, ela comunica que Ned Plymdale já teria encontrado uma residência e que, portanto, ele deveria não apenas interromper quaisquer planos de conversar com o jovem, mas deixar de anunciar Lowick Gate a quaiquer outros possíveis interessados. Mais tarde, Rosamond escreve uma carta para o tio de Lydgate, Sir Godwin, indo deliberadamente contra a vontade do marido nessas três ocasiões. No entanto, embora admoestada pelo marido quando ela o informa sobre o que fizera quanto à situação de Lowick Gate, ela se mantém no controle da situação, respondendo que Lydgate deveria ter-lhe dito antes que casassem que ele a “colocaria na pior posição em vez de abrir mão da própria vontade” (p. 408). As palavras duras de Rosamond causam um impacto no marido, que começa a entreter a possibilidade de visitar o tio e pedir um empréstimo. A essa altura ele não sabe, evidentemente, que a esposa já havia enviado uma carta para Sir Godwin sem lhe avisar.

Neste capítulo também nos é revelado que, embora grande parte da irritação de Rosamond se devesse à sua situação financeira e à forma como Lydgate estava lidando com a crise, ela também se encontrava aborrecida por sentir a falta de Ladislaw.

No capítulo de LXV, chegamos a 1832, ano da aprovação do Reform Bill e último ano retratado em Middlemarch. A narradora comenta a respeito da lentidão de Sir Godwin Lydgate para responder a carta de Rosamond – quase três semanas já haviam se passado desde o ano novo – e observa que Dover, que havia comprado parte das dívidas de Lydgate, estava ansioso para receber seu pagamento. Novamente, aqui, fica latente a falta de comunicação entre Dr. e Mrs. Lydgate: ela nada dissera sobre a carta e ele nada dissera sobre seus planos de viajar para Quallingham porque “não queria admitir o que pareceria a ela uma concessão aos seus desejos após uma recusa indignada, até o último momento” (p. 410). A narradora observa, ainda, que ele tinha planos para partir em breve quando a resposta de Sir Godwin à missiva da esposa – endereçada a Tertius – chegou. Evidentemente, o tio de Lydgate não apenas se recusou a oferecer um empréstimo como criticou o sobrinho por supostamente ter-lhe pedido dinheiro através da mulher. Enfurecido pela humilhação e traição de Rosamond, Lydgate explode:

“Será impossível suportar a vida com você, se vai sempre agir em segredo – agindo em oposição a mim e escondendo suas ações.” (p. 410)

Rosamond chora, impactada pela frieza de Sir Godwin e pela fúria de Lydgate. Ainda assim, ela se mantém no controle da situação. Mrs. Lydgate se defende argumentando que “apenas desejava impedi-lo de nos apressar à desgraça sem necessidade alguma” e observando que “é muito difícil cair em desgraça em meio a todas as pessoas que conhecemos e viver de uma forma tão miserável” (p. 413). Tendo já tocado a sensibilidade do marido, que se sentia culpado por falhar em oferecer o padrão de vida a que Rosie estava acostumada, ela encerra suas observações de forma certeira: “Queria ter morrido junto com o bebê” (ibid.). No parágrafo que se segue, a narradora descreve a forma como Rosamond havia tocado Lydgate, que se compadecia da esposa ao pensar que, enquanto ele tinha uma vida ativa fora de casa, o seu trabalho, ela só tinha sua vida doméstica: “ele queria desculpar tudo nela se pudesse – mas era inevitável que nesse humor ele pensasse nela como se ela fosse um animal de outra espécie mais fraca.” (p. 413). No entanto, a narradora arremata, “ela o havia dominado” (ibid.).

No Capítulo LXVI, seguimos acompanhando os dilemas de Lydgate: embora conclua que o trabalho na clínica o ajudava a pensar em outras questões que não os seus problemas financeiros, ele lamenta que a rotina drenasse sua energia, o deixando exausto demais para se engajar em “pesquisa espontânea e pensamentos especulativos” (p. 413).

A narradora também confidencia ao leitor que as suspeitas de Mr. Farebrother quanto ao uso de ópio pelo médico tinham fundamento: ele havia feito uso da droga, movido pelo “estado de esforço de seguir amando sem se importar muito se era amado de volta” (p. 413). No entanto, fica claro que Tertius não adquiriu um vício, seu uso configurando “escapadas transientes dos assombros da infelicidade” (ibid.). Embora Lydgate não bebesse e não fosse dado a apostas, certa noite ele foi jogar bilhar no Green Dragon, taberna onde Mr. Farebrother também apostava dinheiro antes de obter o vicariato em Lowick e onde Fred Vincy adquirira muitas dívidas no passado.

Na noite em questão, embora Fred viesse “trabalhando com tudo de si há seis meses em todas as ocupações ao ar livre sob orientação de Mr. Garth” (p. 415) e se esforçando para aprimorar sua caligrafia (para fins de registros contábeis) sob orientação de Caleb e Mary, a amada de Fred estava passando a quinzena em Lowick Parsonage e, entediado, ele decidiu se distrair jogando bilhar no Green Dragon. No entanto, o encontro com Lydgate o desconcertou, dando fim ao interesse de Vincy em qualquer das atividades oferecidas pela taberna. A imagem do cunhado, a quem Fred via como um homem que olhava para atividades de aposta e bebedeiras com superioridade, completamente entregue as circunstâncias, o chocou. Embora possuísse um conhecimento superficial acerca das dívidas de Tertius, ele não teve a dimensão da crise até aquela noite. Uma inversão se deu a seguir:

Era uma estranha inversão de atitudes: o rosto louro e olhos azuis de Fred, geralmente brilhantes e descuidados, prontos para dar atenção a qualquer coisa que oferecesse uma promessa de divertimento, pareciam involuntariamente graves e quase envergonhados como se vissem algo impróprio; enquanto Lydgate, que habitualmente tinha um ar de força e autocontrole e de uma certa meditação que parecia estar por trás de sua atenção mais observado, estava agindo, observando, falando com aquela excitada consciência estreita que lembra um animal com olhos ferozes e garras retráteis. (p. 416)

Dessa forma, foi Fred que decidiu e sucedeu em resgatar Lydgate, quando este começou a perder apostas. Sob a justificativa de que Mr. Farebrother gostaria de falar com ele, conseguiu não apenas afastar Lydgate do jogo como também despertá-lo do estado em que se encontrava, levando o cunhado a se dar conta do espetáculo que oferecia aos frequentadores do local.

Por sua vez, Fred tem uma conversa com Farebrother acerca de sua própria presença ali. Camden relembra Vincy do favor que lhe fizera em relação a Mary e que, para ser digno de se casar com a jovem, ele deveria seguir no caminho pelo qual havia enveredado, de trabalho e esforço, e não voltar a seus antigos hábitos. Eles se despedem em tom amigável, o aviso de Farebrother em parte supérfluo após o choque que Lydgate oferecera ao irmão da esposa.

No Capítulo LXVII, vencido pelas circunstâncias e pela falta de perspectivas de melhora, Lydgate decide procurar Bulstrode. Esta não é uma decisão fácil: o médico se sente humilhado por perder sua independência e a superioridade moral de poder dizer a todos em Middlemarch que não devia nada ao banqueiro que financiava o hospital. No entanto, em certa manhã ele recebeu um bilhete de Nicholas pedindo que comparecesse ao banco. Atribuindo o pedido à recente tendência hipocondríaca de Bulstrode, Lydgate não estranha o chamado e decide aproveitar a oportunidade para pedir ajuda.

No entanto, a real razão do chamado era que Bulstrode desejava informar a Lydgate que tinha planos para deixar Middlemarch e, com isso, deixar de atuar como principal administrador e investidor do Novo Hospital. Abandonando o projeto, ele pouco se preocupa com o fato de que a instituição perderá seu caráter de hospital de pesquisa se, conforme ele havia proposto, ela fosse convertida em uma ala do hospital antigo. Como possível forma de remediar as perdas iminentes, Bulstrode apenas menciona que Mrs. Casaubon havia manifestado um possível interesse em assumir a posição ora ocupada pelo banqueiro. Com a mesma impassibilidade, Bulstrode se recusa a ajudar Lydgate, recomendando que ele declare falência se não possui condições de arcar com os hábitos pródigos dos membros da família Vincy. Essa é uma decisão da qual, no entanto, que Bulstrode virá a se arrepender muito em breve, quando Raffles retorna a Stone Court de forma inesperada.

No Capítulo LXVIII, atendendo aos temores de Bulstrode, Raffles retorna. A narradora compartilha com o leitor que na véspera de Natal o homem havia aparecido na residência oficial de Bulstrode, The Shrubs, escandalizando o resto da família. Nicholas, no entanto, foi bem sucedido em impedir que o indesejável “convidado” conversasse com a família e, irritado com a impossibilidade de controlar as aparições do padrasto de Mr. Rigg, o expulsou na manhã seguinte, o alertando para o fato de que o estava pressionando para além dos patamares aceitáveis e que, caso voltasse a desobedecer suas orientações, sofreria as consequências:

Raffles estava prestes a falar, mas Bulstrode se antecipou imperiosamente, com as palavras: “Fique em silêncio, senhor, e ouça o que eu tenho a dizer. Vou lhe fornecer dinheiro agora, e eu lhe darei uma quantia razoável de tempo em tempo, quando fizer solicitações para mim via correspondências, mas se você optar por se apresentar aqui novamente, se retornar a Middlemarch, se usar sua língua de uma maneira prejudicial a mim, terá que viver dos frutos que a sua malícia pode lhe trazer, sem a minha ajuda Ninguém lhe pagará bem por destruir o meu nome: Eu sei o pior que você pode fazer contra mim, e eu devo enfrentá-lo se ousar se impor sobre mim novamente. Levante-se, senhor, e faça como eu te ordeno, sem barulho, ou mandarei um policial o tirar de minhas instalações, e você poderá levar suas histórias para todas as tabernas da cidade, mas não terá nenhum centavo da minha parte para pagar suas despesas lá”. (p. 425)

Pagando cem libras a Raffles, Bulstrode o acompanha até os limites da cidade. Certo de que ele retornaria, no entanto, o banqueiro apressa os preparativos para deixar a cidade com a esposa, Harriet. Ele lamenta ter que infligir essa mudança a ela, uma Vincy quando solteira, nascida e criada em Middlemarch. Ao saber que ele havia recusado ajuda a Lydgate, Harriet havia lamentado a falta de estima do marido pela sua família, preocupada com o destino da sobrinha. Por conta disso, quando Mr. Garth – que ficaria responsável pela administração de Stone Court – propôs que Fred (e, possivelmente, Mary, após o casamento) arrendasse a propriedade, Bulstrode aquiesceu prontamente, pensando em oferecer algum conforto à esposa ao garantir o futuro de outro de seus sobrinhos.

No Capítulo LXIX, no entanto, Caleb Garth rompe sua relação profissional com Bulstrode. Tendo oferecido uma carona a Raffles, que está de volta a Middlemarch, doente e quase sem fundos, o pai de Mary ouviu o que o homem tinha a dizer sobre o passado do banqueiro e decidiu não ser mais possível manter qualquer tipo de relação com Bulstrode. Assim, avisa que Raffles está doente em Stone Court e, após Bulstrode mandar  um funcionário chamar Lydgate, solicita ao patrão que encontre outra pessoa para administrar Stone Court. Garantindo a Nicholas que o que Raffles lhe disse jamais seria por ele repetido a outrem, ele se despede. Aliviado pela esperança de que Raffles só teria conversado com Garth e que, portanto, seu segredo estaria seguro, Bulstrode segue para Stone Court.

Lá, Lydgate informa ao banqueiro que o estado de saúde de Raffles não é grave – trata-se de uma intoxicação alcoólica e um homem robusto como o padrasto de Rigg tem plenas condições de se recuperar. Bulstrode declara que cuidará dele pessoalmente, vez que Mrs. Abel e seu marido não são experientes o bastante para tratarem do doente sozinhos. Lydgate não estranha a presteza do banqueiro e comunica a ele, exclusivamente, o tratamento a ser dispensado.  O médico também não tira conclusões sobre a identidade de Raffles, presumindo que se trata de um caso de caridade de Bulstrode, se ressentindo pelo fato de que o banqueiro não se compadeceu o bastante de sua condição para ajudá-lo.

Desanimado, Lydgate retorna a Lowick Gate, esperando “nada mais do que o jantar” para confortá-lo de suas preocupações. Ao chegar lá, no entanto, encontra os homens de Dover dando início à execução da dívida sobre a casa. Rosamond, distante, declara que em breve irá para a casa dos pais, incentivada por eles a se afastar de Lydgate até que sua situação se estabilizasse. Após ela garantir que pretendia ir no dia seguinte, o marido recomenda que ela “espere um pouco mais do que até amanhã”: “‘não é possível saber o que pode acontecer” – disse Lydgate com ironia amarga. ‘Eu posso quebrar o pescoço e isso facilitaria as coisas para você’” (p. 434). Não comovida pelas palavras do marido, mas irritada mais uma vez pela agressividade das mesmas, Rosamond anuncia com indiferença que, já que o marido claramente prefere que ela permaneça junto a ele, ela o fará.

No Capítulo LXX, Bulstrode hesita quanto à aplicação do tratamento prescrito por Lydgate a Raffles, temendo a recuperação do chantagista e calculando que a morte dele significaria não apenas a sua própria permanência em Middlemarch, como a recuperação de sua plena liberdade. A despeito dos desejos de Bulstrode, Raffles está melhor quando Lydgate retorna a Stone Court para verificar o estado do seu paciente.

Calculando as possíveis consequências de não seguir as orientações de Lydgate e permitir que Raffles morresse, Bulstrode lamenta não ter aquiescido quando o médico lhe pediu ajuda financeira. O médico responde de forma pouco cortês quando o banqueiro toca no assunto, mas, com a casa sendo já executada, ele fica feliz quando Bulstrode diz que vai lhe conceder o empréstimo. Ao deixar Stone Court, no entanto, não deixa de pesar sobre os ombros do médico a impressão de que algo não estava certo e que aquelas mil libras lhe custariam caro no futuro.

Bulstrode, por outro lado, já se considerando “um instrumento a serviço de Deus” (p. 437), considera a possibilidade de permitir que Raffles morra. Mais tarde, antes de se retirar para descansar após horas administrando ópio ao chantagista, conforme as orientações de Lydgate, Bulstrode instrui Mrs. Abel a administrar a droga, mas se esquece de avisar quando ela deveria parar, um ponto que Lydgate havia frisado. Quando Bulstrode se dá conta de seu deslize, decide, deliberadamente, não avisar Mrs. Abel. Quando Raffles piora, a governanta pede para oferecer um pouco de conhaque ao doente (Lydgate havia insistido que não se oferecesse álcool ao doente, mas ela não sabia) e Bulstrode permite. Na manhã seguinte, Raffles morre diante de Lydgate, que havia chegado a Stone Court para uma visita ao paciente. O médico fica arrasado, se questionando se o erro teria sido de sua parte ou da parte daqueles que administraram o tratamento. Ainda assim, paira sobre ele a dúvida se a piora e subsequente morte de Raffles não teriam sido deliberadas. Após o ocorrido,

Ele e Bulstrode voltaram juntos para Middlemarch, conversando sobre muitas coisas – principalmente a cólera e as chances do Reform Bill na Câmara dos Lordes e a firme determinação das alianças políticas. Nada foi dito sobre Raffles, exceto que Bulstrode mencionou a necessidade de oferecer um túmulo para ele no cemitério da igreja de Lowick e observou que, até onde ele sabia, o pobre homem não tinha conexões, exceto Rigg, quem ele declarara ser hostil em relação a ele. (p. 440)

No Capítulo LXXI, Mr. Bambridge revela ter oferecido uma carona a Raffles até Middlemarch e conta, para quem quiser ouvir, o que o homem falou para ele sobre o passado de Bulstrode. Agora que o homem morrera em circunstâncias suspeitas na casa do banqueiro, estoura um escândalo em Middlemarch envolvendo Bulstrode e Lydgate. Os cidadãos decidem que será necessário expulsar o hipócrita Bulstrode de Middlemarch. O barbeiro, Mr. Dill, conta que Mr. Fletcher, Mr. Hawley e Mr. Thesiger se voltaram contra o banqueiro e querem que o mesmo seja expulso da paróquia local.

Uma reunião na prefeitura a respeito de questões sanitárias se daria em Middlemarch – um caso de cólera havia sigo registrado na cidade – e era esperado “quase todas as pessoas importantes da cidade” comparecessem. No entanto, embora a reunião tivesse sido chamada por causas alheias à polêmica e aos rumores envolvendo Bulstrode, logo que chegou, “Lygdate percebeu uma troca de olhares peculiar quando ele e Bulstrode tomaram seus assentos” (p. 448) que se repetiu antes de Mr. Hawley interromper o início das manifestações (Bulstrode seria o primeiro a falar) a respeito da pauta para se manifestar sobre uma “questão de sentimento público” percebida por ele e por outros cavalheiros como sendo preliminar. O relator, Mr. Thesiger, sancionou o pedido e Bulstrode precisou se sentar. Hawley declarou estar falando em nome de mais oito cavalheiros presentes antes de expressar que “Mr. Bulstrode deveria ser instado a renunciar a posições públicas que ele ocupa não apenas como contribuinte, mas como cavalheiro entre cavalheiros” já que, “há práticas e há atos os quais, devido as circunstâncias, a lei não pode tocar, apesar de poderem ser piores do que muitas coisas puníveis legalmente”. A fim de preservar a integridade moral de seus pares, Mr. Hawley exige que Bulstrode “negue e refute publicamente as declarações escandalosas feitas contra ele por um homem agora morto e que morreu em sua casa – a afirmação de que ele esteve há muitos anos envolvido em práticas nefastas e que ganhou sua fortuna por procedimentos desonestos” ou que se retirasse “de posições que só lhe podiam ser permitidas como cavalheiro entre cavalheiros” (p. 448-449).

Bulstrode tenta se defender atacando as práticas profissionais e o zelo religioso dos cavalheiros que o desafiaram, mas sua estratégia de superioridade moral não é mais aceita pelos outros diante dos eventos recentes. Ele é praticamente expulso da prefeitura por Mr. Hawley e os outros que se sentiram atacados: Mr. Toller, Mr. Chicely e Mr. Hackbutt. Conforme ele se levanta para ir embora, as pernas de Nicholas Bulstrode o traem e ele precisa de ajuda. Lamentando a forma como seu auxílio seria interpretado pelos presentes, Lydgate ainda assim oferece apoio ao banqueiro, consciente de como sua atitude fortaleceria os rumores a seu respeito.

Profundamente decepcionado com o amigo, Mr. Farebrother retorna para Lowick com Mr. Brooke, que pretende visitar Dorothea. Mrs. Casaubon passa a maior parte do Sétimo Livro ausente, em uma viagem em Yorkshire. Quando os dois homens chegam a Lowick, Dorothea os cumprimenta e imediatamente pergunta sobre Lydgate quando ouve que eles estavam em uma reunião na prefeitura. Ela conta que pretende conversar com o médico sobre o Hospital, tendo conversado com Mr. Bulstrode sobre a possibilidade de tomar o lugar dele como principal investidora na instituição. Quando os dois homens contam para Dorothea o que aconteceu, explicando que a reputação de Lydgate havia sido arruinada junto com a de Bulstrode, ela reage imediatamente:

Ela escutou com profundo interesse e pediu para ouvir duas vezes os fatos e impressões sobre Lydgate. Após um breve silêncio, parando no portão da igreja e dirigindo-se Mr. Farebrother, ela disse energicamente: “Você não acredita que Mr. Lydgate seja culpado de qualquer coisa baixa? Eu não vou acreditar. Vamos descobrir a verdade e limpar sua reputação!” (p. 451)

***

Na próxima semana, nossa série dedicada à releitura de Middlemarch no ano do bicentenário de George Eliot abordara o oitavo e último livro do romance, “Sunset and Sunrise”. Não deixe de compartilhar suas experiências de leitura desta e outras obras de Eliot nos comentários aqui, no Facebook, no Instagram ou no Twitter!

REFERÊNCIAS

ELIOT, George; HORNBACK, Bert G. Middlemarch: A Norton Critical Edition. New York: Norton, 2000.

Publicado por

Marcela Santos Brigida
Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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