Dando continuidade à nossa série comemorativa do bicentenário de George Eliot, nesta semana abordamos o Quinto Livro de Middlemarch, “The Dead Hand”. Você pode ler as postagens anteriores clicando nos links a seguir: Book One, Book Two, Book Three, Book Four.
Introdução
No início do Quinto Livro de Middlemarch, encontramos Dorothea profundamente melancólica e desiludida em relação ao marido. Após os desentendimentos dos dois em “Three Love Problems” – majoritariamente ligados a insegurança de Edward e aos ciúmes de Ladislaw e Dorothea, no Quinto Livro ele finalmente decide engajar a esposa na compilação dos seus estudos para posterior publicação. No entanto, a essa altura Dorothea é movida exclusivamente pela pena que sente do marido, sabendo que a mudança de atitude se deu não por que ele passou a confiar mais nela ou em sua capacidade intelectual, mas por que sabe que pode morrer a qualquer momento. Assim, com ressentimento mútuo, Dorothea e Casaubon trabalham em Key to All Mythologies.
Nesta seção de Middlemarch, também aprendemos muito sobre Will Ladislaw. Impedido de visitar Dorothea em Lowick, ele lamenta a dificuldade de encontrá-la. No entanto, logo no início do livro os dois têm um encontro inesperado que constrange a ambos. Alternando entre Middlemarch e Tipton, Will faz amizades na cidade. Ele passa um tempo considerável na casa dos Lydgate, especialmente com Rosamond. Interessada em esclarecer o tema da conversa que o médico teve com Casaubon no final do Quarto Livro, Dorothea visita Lowick Gate.
Ela é informada por Rosamond que ele está no hospital e que ela pode enviar uma mensagem pedindo que o marido volte para casa enquanto Mrs. Casaubon aguarda. No entanto, Dorothea se sente instantaneamente incomodada pelo convidado de Rosamond, que por sua vez, fica profundamente sentido pela frieza de Dorothea, lamentando a impressão que supõe ter passado e presumindo que Casaubon lhe imprimiu noções desagradáveis sobre a diferença de status entre os dois.
A caminho do hospital, Dorothea chora ao pensar na impropriedade de Ladislaw visitar Rosamond sem a presença de Tertius e percebe que sente ciúmes de Will. Tal evento pode ser analisado em seus diferentes aspectos: (i) o choque entre inovação e tradição: embora as visitas de Ladislaw possam ser mal vistas mesmo pelos habitantes da cidadezinha onde vivem, Rosamond quer ser uma mulher cosmopolita, não provinciana. Seus valores do que é apropriado não necessariamente convergem com os de seus vizinhos; (ii) o choque entre valores urbanos e rurais: Rosamond pertence a uma família respeitada em Middlemarch, mas Dorothea integra uma classe que Rosamond admira: a elite da Inglaterra rural e (iii) Will é um homem diferente de todos os outros personagens do romance: ele é um outcast e, por não pertencer a classe ou lugar algum, as regras não se aplicam a ele. Mais tarde, Tertius e Rosamond riem do aborrecimento de Ladislaw com a situação e da impossibilidade da sua relação com Dorothea.
No Quinto Livro também acompanhamos a aproximação da Reforma Política e um fiasco que encerra a candidatura de Mr. Brooke antes mesmo de ela começar. Com a morte de Casaubon, Dorothea mal tem tempo de se reajustar à sua nova realidade antes de saber que Edward fizera uma alteração em seu testamento original, incluindo como condição para que Dorothea permaneça sua herdeira e proprietária de Lowick que ela não se case com Ladislaw, algo visto pelos amigos da viúva como uma atitude grosseira de Edward, por sugerir que haveria algum tipo de relação ou interesse entre o primo e a esposa durante a sua vida.
Por fim, neste Livro Fred retorna já formado e pede ajuda a Mr. Farebrother para tentar descobrir se Mary o aceitaria como marido algum dia. Além disso, o passado vem assombrar Mr. Bulstrode: Raffles, o desagradável padrasto de Joshua Rigg-Featherstone, encontra o banqueiro e começa a chantageá-lo, confirmando para o leitor as suspeitas dos moradores de Middlemarch: há segredos no passado de Nicholas Bulstrode com o potencial de arruinar a sua reputação.
Will Ladislaw e Dorothea Brooke
No Quinto Livro, Dorothea tem um encontro inesperado com Ladislaw na casa de Dr. Lydgate. Tendo percebido uma mudança no comportamento de Casaubon após a conversa que ele tivera com o médico, ela se preocupa que o marido tenha sido informado sobre alguma piora na sua condição. Embora o relacionamento dos dois esteja passando por uma grave crise após as brigas do Quarto Livro, Dorothea possui um grande senso de dever em relação a Casaubon.
Que havia alguma crise na cabeça do marido, ela tinha certeza: no dia seguinte [à conversa com Lydgate], ele iniciara um novo método para organizar suas anotações e a associara muito recentemente à execução de seu plano. A pobre Dorothea precisava se revestir de paciência. (p. 267)
Dorothea segue para Lowick Gate. No entanto, ao chegar na casa do médico, ela não apenas não o encontra lá, como se depara com Ladislaw e Rosamond cantando juntos ao piano. Mrs. Lydgate fica encantada por receber Mrs. Casaubon em sua casa, mas Ladislaw fica profundamente envergonhado ao pensar que Dorothea poderia – o que de fato acontece – interpretar mal a situação.
Rosamond percebe a inclinação de Ladislaw e mais tarde acha graça da situação conversando com Lydgate. Dorothea, por sua vez, sofre ao perceber a extensão dos seus sentimentos por Will.
Tertius Lydgate
De sua parte, Lydgate enfrenta uma série de problemas ao longo do Quinto Livro. Suas discordâncias com os colegas se acirram cada vez mais por conta de suas práticas e mesmo alguns pacientes se incomodam com o fato de ele próprio não fornecer medicamentos (muitas vezes desnecessários).
Muitos dos habitantes de Middlemarch – como o comerciante Mr. Mawmsey e sua esposa – consideram absurda ideia de pagar exclusivamente pelo atendimento de um médico, não pelo medicamento que ele receita. Além disso, se escandalizam com a prática de Lydgate de realizar autópsias em cadáveres. A narradora conta que Mrs. Dollop estava convencida que Dr. Lydgate “queria deixar as pessoas morrerem no hospital, se não as envenenar” para “cortá-las” e que todos sabiam que ele queria “cortar Mrs. Goby, uma mulher respeitável como qualquer outra em Parley Street”. Mrs. Dollop reflete que “se ele era médico, deveria saber o que estava acontecendo antes de você morrer, e não querer bisbilhotar suas entranhas depois que você fosse embora”. A mulher pensa que se tal prática não fosse condenada e interrompida, “não haveria limites para o corte de corpos, como havia sido bem visto em Burke e Hare” (p. 274), uma referência a William Burke, um assassino famoso e William Hare, seu cúmplice. Na década de 1820, eles eram conhecidos por asfixiar pessoas e vender seus corpos para serem dissecados por acadêmicos engajados na pesquisa sobre a cólera.
Contando basicamente com o apoio de Bulstrode para manter o hospital, Lydgate tem ao menos um triunfo: Dorothea concorda em contribuir com a manutenção da instituição com 200 libras anuais. Com todas essas dificuldades, o médico se encontra endividado. Após uma discussão entre Tertius e Will, Rosamond pergunta por que o marido estava tão mal-humorado e ele desconversa. A narradora, no entanto, revela que o contraste entre o estilo de vida e a renda de Lydgate estava se tornando palpável:
“O que te aborreceu?”
“Ah, assuntos externos – negócios.”
Era, na verdade, uma carta insistindo no pagamento de uma conta de mobília. Mas Rosamond esperava um bebê e Lydgate queria poupá-la de qualquer perturbação. (p. 290)
Reformas políticas
Enquanto isso, a parceria entre Mr. Brooke e Ladislaw no Pioneer prosseguia e as tensões políticas também. A narradora informa que, enquanto Lydgate “sentia estar lutando pela Reforma Médica contra Middlemarch, Middlemarch se tornava cada vez mais consciente da luta nacional por outro tipo de reforma”. Fica claro que à altura em que a Reform Bill estava sendo discutida no Parlamento (1831-32), os habitantes de Middlemarch não apenas enxergavam com bons olhos a ideia da ampliação da franquia de eleitores como ansiavam por isso. Mr. Brooke estava decidido a lançar sua candidatura com uma agenda progressista, mas suas aspirações logo são lançadas por terra.
Observando as conversas entre Brooke e Ladislaw, o leitor percebe que o editor do Pioneer tem uma noção muito mais clara da situação e do jogo político do país. Enquanto Will pretende usar o jornal para fins educativos e para explicar a necessidade da Reforma, Brooke afirma preferir “permanecer independente sobre a Reforma”, não querendo ir longe demais. O tio de Dorothea diz ter intenção de se alinhar a William Wilberforce, apoiando a emancipação de pessoas negras escravizadas e de católicos. Will, por sua vez, explica não ser possível se esquivar de oferecer apoio à Reforma Política como um todo ao adotar uma orientação progressista.
Ironicamente, Mr. Brooke elogia a perspicácia de Ladislaw, mas avalia que o amigo “jamais seria eleito” (p. 285) e que, portanto, gostaria que alguém lhe pudesse oferecer um pocket-borough, uma das práticas que a Reforma almejava encerrar. Como candidato, Brooke não sobrevive ao seu primeiro contato com o povo.
O fiasco de Brooke
Na primeira ocasião em que Brooke falaria ao povo de Middlemarch, ele foi antecedido por excelentes oradores, fato que, por si só, deixou seus maiores apoiadores apreensivos. No entanto, para além das expectativas, o tio de Dorothea e Celia ainda teria que lidar com os próprios nervos – ansioso, ele tomou dois copos de xerez, sendo que não tinha o hábito de beber – e as artimanhas de seus adversários.
Após um início de discurso oscilante e reticente, Brooke é interrompido por um enorme boneco feito à sua imagem e que, ecoando tudo que ele dizia, arrancava gargalhadas do público. O tio de Dorothea deixou o palanque sob vaias e ovos. Após esse choque, Arthur desiste da candidatura e decide se ausentar de Tipton por um tempo. Ele abre mão, inclusive, do Pioneer e o vende para outros interessados.
A essa altura, Casaubon já havia falecido, deixando para trás seu polêmico testamento. Atendendo aos pedidos de Sir James, Brooke tenta convencer Ladislaw a deixar Middlemarch. Ainda ignorando o conteúdo do testamento do primo, Will decide permanecer na cidade pelo tempo que desejar.
A morte de Casaubon
No período que antecedeu a morte de Edward, Dorothea se encontrava profundamente infeliz e desesperançada. Lamentando o juízo equivocado que fizera de Casaubon antes do casamento e agora convencida que o marido havia sido injusto em relação a Ladislaw, a jovem se sente presa em sua condição. Ela lamenta não poder mais conversar com Will, que parecia entende-la com tanta facilidade e o fato de que todo o seu tempo agora era tomado pelas atividades ligadas aos estudos de Edward:
Esta tarde, seu desamparo era mais terrivelmente entorpecedor do que nunca: ansiava por objetos que pudessem lhe ser caros e a quem pudesse ser querida. Ela ansiava por um trabalho que fosse diretamente beneficente como o sol e a chuva, e agora parecia que ela viveria mais e mais no que era basicamente um túmulo, onde havia o aparato de um labor horrível produzindo o que nunca veria a luz. (p. 295)
Na véspera de sua morte, Casaubon pressiona Dorothea para que ela aceite seguir a vontade dele sem, contudo, explicitar que vontade seria essa. Ela hesita em concordar, prevendo que se trataria de uma renovação do “jugo” que Edward já lhe impunha em vida. Nossa protagonista anseia pela liberdade:
“Antes de dormir, tenho um pedido a fazer, Dorothea.”
“Do que se trata?” disse Dorothea, com medo em sua mente.
“É que você me informe, deliberadamente, se, no caso de minha morte, vai realizar meus desejos: se você evitar fazer o que eu depreciaria, e se aplicar para fazer o que eu desejaria.”
Dorothea não foi pega de surpresa: muitos incidentes a levaram à conjectura de alguma intenção por parte do marido, que poderia constituir um novo jugo para ela. Ela não respondeu imediatamente.
“Você se recusa?” disse o Sr. Casaubon, com mais intensidade em seu tom.
“Não, eu não me recuso ainda”, disse Dorothea, em uma voz clara, a necessidade de liberdade se afirmando dentro dela; “mas é solene demais – acho que não é certo – fazer uma promessa quando sou ignorante quanto a que isso me obrigará. Qualquer que seja o afeto solicitado, eu faria sem prometer.”
“Mas você usaria seu próprio juízo: peço-lhe para obedecer ao meu; você se recusa.”
“Não, querido, não!” disse Dorothea, suplicando, esmagada por medos opostos. “Mas posso esperar e refletir um pouco? Desejo com toda a minha alma fazer o que vai confortá-lo; mas não posso fazer qualquer promessa subitamente – ainda menos uma promessa de fazer algo que desconheço.” (p. 296)
Consciente dos defeitos do marido e da futilidade de grande parte dos seus estudos, Dorothea se sente conflitada. Ela reflete que, antes de saber que poderia morrer a qualquer momento, Edward tentara mantê-la distante de suas atividades. Foi a “severidade terrível da necessidade humana” que o levou a contar com a ajuda da esposa. É justamente esse aspecto que leva Dorothea a considerar a possibilidade de dizer sim à solicitação de Casaubon: “a perspectiva de uma morte rápida demais” faz com que a jovem sinta pena do marido. Ainda assim, ela tem consciência que assentir seria abrir mão de qualquer possibilidade de ser livre novamente algum dia:
E ela não quis se casar com ele para poder ajudá-lo no trabalho de sua vida? – Mas ela achara que o trabalho seria algo mais grandioso, ao qual ela poderia servir devotamente pelo trabalho em si. Era certo, mesmo para acalmar a dor dele – seria possível, mesmo que ela prometesse – trabalhar repetidamente de forma infrutífera? (p. 297)
Na manhã seguinte, quando Dorothea finalmente tem uma resposta para o seu marido, ela já o encontra morto. O luto não faz com que a jovem deixe de sentir o alívio de não ter concordado com o pedido do marido quando movida exclusivamente por piedade. No entanto, Edward Casaubon ainda não tinha terminado de expor suas exigências.
O testamento
Após o enterro de Casaubon, Dorothea passa uma temporada em Freshitt. Celia, já casada e mãe de um filho, faz companhia à irmã enquanto Sir James e Mr. Brooke discutem sobre o testamento. Embora o cunhado queira proteger Dorothea do conteúdo do documento, Brooke aponta que seria inútil esperar que ela – a executora do espólio – se mantivesse passiva diante da situação. Embora todos adiem expor a verdade a Dorothea, Celia é sincera e conta a ela o que Edward fez:
“Bem, ele fez uma cláusula adicional no testamento, para dizer que a propriedade deveria ser tirada de você caso se casasse – quero dizer”
“Isso não tem importância”, disse Dorothea, interrompendo-a impetuosamente.
“Mas se você se casasse com Mr. Ladislaw, e ninguém mais”, Celia continuou com uma quietude perseverante. “É claro que isso não tem importância, de certa forma – você nunca se casaria com Mr. Ladislaw; mas isso só torna pior a atitude de Mr. Casaubon.”
O sangue correu para o rosto e o pescoço de Dorothea dolorosamente. Mas Celia estava administrando o que ela considerava ser uma dose sóbria de realidade. Estava confrontando noções que tinham prejudicado tanto a Dodo. Então ela continuou em um tom neutro, como se estivesse falando sobre as roupas do bebê.” (p. 304)
Celia segue criticando Casaubon e aponta que ninguém o considerava um marido adequado para Dorothea. Retomamos assim algo anunciado desde o Primeiro Livro, quando a jovem, ainda como Miss Brooke, se encantou pelo “intelecto” do senhor de Lowick: ela tinha noções muito infantis sobre o casamento, como apontou então a narradora. Celia diz: “o que eu acho, Dodo, é que Mr. Casaubon era rancoroso, nunca gostei dele, e James também nunca gostou” (p. 305). Dorothea fica profundamente abalada e ainda mais decepcionada com o homem que antes admirara com tanta intensidade. No entanto, a adição ao testamento também faz com que ela reflita sobre seus sentimentos por Will:
Uma mudança a aterrorizou como se tivesse sido um pecado; foi um choque violento de repulsa do marido que partira, que tinha pensamentos ocultos, talvez pervertendo tudo o que ela dizia e fazia. No entanto, ela também estava consciente de outra mudança que também a deixava trêmula; foi um súbito e estranho anseio de coração por Will Ladislaw. Nunca antes havia entrado em sua mente que ele pudesse, sob qualquer circunstância, ser seu amante: conceber o efeito da súbita revelação de que outra pessoa havia pensado nele sob essa luz – que talvez ele próprio tivesse consciência de tal possibilidade – e isso com a visão apressada e repleta de condições inadequadas e questões que não seriam resolvidas tão cedo. (p. 305)
Confusa quanto aos seus sentimentos, Dorothea acaba sentindo-se presa mais uma vez, incapaz de agir. De certa forma, ela se mantém na mesma posição que ocupou durante o seu casamento e na qual temia permanecer após a morte de Casaubon.
Por sua vez, Ladislaw considerava deixar Middlemarch. Não tendo chegado até ele a “fofoca sobre o testamento de Mr. Casaubon”, Will ainda assim reflete que seria absurdo pensar em se casar com Dorothea com uma distância tão considerável entre o status dos dois. Livre do seu vínculo com o Pioneer, ele pensa que seria bom deixar Middlemarch e retornar em cinco anos, com uma vida já estabelecida e podendo então se aproximar de Dorothea em condições mais próximas das dela.
Fred retorna a Middlemarch
No Capítulo 52, Fred retorna a Middlemarch já formado. Ele procura Mr. Farebrother – agora responsável pelo vicariato de Lowick – e lhe faz um pedido. Vincy explica estar dividido entre se dedicar a uma profissão pela qual não possui qualquer tipo de interesse e a possibilidade de decepcionar o seu pai. Ele também aponta que sabe que Mary jamais o aceitaria se ele se tornasse um clérigo sem vocação e então pede a Farebrother – sem saber que Camden também nutria sentimentos pela jovem – que pergunte a Miss Garth se ele pode ter alguma esperança de que ela o aceite um dia. Caso sim, diz, ele procurará outra ocupação.
Diante do pedido de Farebrother que ela fosse absolutamente sincera, Mary diz que nunca poderia “ser realmente feliz se pensasse que Fred estava infeliz por tê-la perdido”:
“Já que considera este o meu dever, Mr. Farebrother, eu vou lhe dizer que tenho um sentimento por Fred que é forte demais para desistir dele por qualquer outra pessoa. Eu nunca seria feliz se pensasse que ele estava infeliz por ter me perdido. Isso tem raízes tão profundas em mim – minha gratidão a ele por sempre me amar mais, e por se preocupar tanto se eu tinha me machucado, desde quando éramos muito pequenos. Eu não consigo imaginar nenhum novo sentimento que poderia enfraquecer este. Eu gostaria, mais do que qualquer coisa, de vê-lo digno do respeito de todos. Mas, por favor, diga-lhe que não prometo me casar com ele até então; eu envergonharia e entristeceria meu pai e minha mãe. Ele está livre para escolher outra pessoa.” (p. 322)
O passado vem assombrar Bulstrode
Embora incomodado com o fato de que Dorothea Brooke havia concedido o vicariato de Lowick a Camden Farebrother, Nicholas Bulstrode se encontrava consideravelmente satisfeito consigo mesmo por ter comprado Stone Court do herdeiro de Mr. Featherstone, Joshua Rigg. No entanto, enquanto admirava sua nova propriedade acompanhado por Caleb Garth, o banqueiro se deparou com Mr. Raffles.
Chocado que Bulstrode conhecesse a estranha figura representada por Raffles, Garth se despede. O forasteiro logo começa a chantagear o “amigo”, que chama apenas de Nick. É revelado ao leitor que, quando jovem, Bulstrode se casou com uma mulher mais velha por dinheiro. A filha dela havia fugido de casa e, já idosa e doente, a senhora ansiava por reencontrar a moça.
Raffles conta que conseguiu localizar Sarah, mas que Bulstrode jamais revelou a verdade para a esposa a fim de herdar sozinho toda a sua fortuna. Assim, a hipocrisia do banqueiro se anuncia ao leitor: apresentando-se como um modelo de homem cristão, Mr. Bulstrode fez sua fortuna enganando uma senhora e a afastando da própria filha, que ficou na miséria.
O mais chocante para o leitor, no entanto, é a revelação da identidade da jovem em questão: Sarah Dunkirk se casou com um homem de sobrenome Ladislaw. Isto é, Nicholas Bulstrode herdou uma fortuna que deveria, por direito, ter sido dividida com a mãe de Will. A avó paterna de Will havia sido deserdada por se casar com um homem polonês pobre chamado Ladislaw. Seu filho se casou com Sarah Dunkirk, jovem que havia fugido de casa e abandonado sua fortuna e, mais tarde, privada de um reencontro com a mãe pela ganância de Bulstrode. Will Ladislaw, forasteiro aonde quer que estivesse, foi indiretamente prejudicado em ambos os lados da família.
Depois que Bulstrode parte para buscar o dinheiro solicitado por Raffles para manter-se em silêncio e longe de Middlemarch, o homem tenta se lembrar do nome do marido de Sarah:
“Mas qual era o nome?” (…) Afinal de contas, entretanto, havia um espaço de tempo sem graça que precisava ser aliviado com pão, queijo e cerveja, e quando ele estava sentado sozinho com esses recursos na sala de visitas, de repente bateu no joelho e exclamou: “Ladislaw!” Aquela ação de memória que ele tentara estabelecer e abandonara em desespero terminara subitamente sem esforço consciente – uma experiência comum, agradável como um espirro completo, mesmo que o nome lembrado não tivesse valor. Raffles imediatamente pegou sua caderneta e anotou o nome, não porque esperasse usá-lo, mas apenas para se lembrar, caso desejasse usar. Ele não ia contar a Bulstrode: não havia nenhum benefício em contar e, para uma mente como a de Mr. Raffles, sempre há uma probabilidade de vantagem ao guardar um segredo.” (p. 329-330)
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Na próxima semana, nossa série dedicada à releitura de Middlemarch no ano do bicentenário de George Eliot abordara o sexto livro do romance, “The Widow and the Wife”. Não deixe de compartilhar suas experiências de leitura desta e outras obras de Eliot nos comentários aqui, no Facebook, no Instagram ou no Twitter!
REFERÊNCIAS
ELIOT, George; HORNBACK, Bert G. Middlemarch: A Norton Critical Edition. New York: Norton, 2000.