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Bessy Higgins: a personagem e a mártirLeitura em 6 minutos

Vamos começar pelo começo. Sei que devo falar a respeito do romance industrial e tudo que o rodeia. No entanto, é de extrema importância, para introduzir melhor esse tema, falar sobre o conceito do ‘anjo do lar’. Como provavelmente você já deve ter visto em Aurora Leigh, por exemplo, na Era Vitoriana era esperado que as mulheres fossem esposas submissas, lindas e puras, bem como mães devotas. Esse termo foi introduzido pelo poeta Coventry Patmore e o nome de sua criação é exatamente este: ‘o anjo do lar’. À luz do romance industrial e da época que ele se passava, essa designação só seria imposta e encaixada nas características das mulheres da classe alta. E por quê? Porque as mulheres mais pobres, aquelas que não podiam bancar estar em casa e serem mulheres perfeitas e “domesticadas” para seus cônjuges, deveriam, na verdade, não apenas ganhar dinheiro para sobreviver, mas sustentar a vida de outras pessoas que dependiam de seu trabalho.

Em Norte e Sul, a autora britânica Elizabeth Gaskell reporta o contraste entre a região do Norte e a região do Sul – como o título já anuncia, a priori. Enquanto a primeira era urbana e industrial, girando em torno do trabalho em fábricas, a segunda era mais rural e pacata, com metrópoles como Londres como a exceção. Em seu romance industrial, Gaskell focaliza a luta dos trabalhadores industriais e também desenvolve, em paralelo, a história de Margaret Hale que eventualmente se apaixona por John Thornton, um homem de negócios que possuía uma manufatura na cidade de Milton Northern.

A verdade é que uma grande personagem que desperta muito carinho por parte dos leitores se chama Bessy Higgins. A sua presença nesse romance é uma forma brilhante de denunciar as condições trabalhistas bem como a desigualdade causada pela industrialização da região. Gaskell procura fazer com que seus leitores estejam conscientes das injustiças do sistema vigente na época bem como inspirar as pessoas a provocar mudanças sociais, como a própria protagonista ansiava.

De maneira geral, a industrialização causava péssimos efeitos nos trabalhadores da época no que dizia respeito a como eles se portavam enquanto cidadãos e indivíduos. A precariedade desse período industrial, de fato, levou as pessoas a fazer qualquer coisa para ganhar dinheiro, efetivamente normalizando o absurdo: o salário era o meio não apenas para suprir as necessidades dos trabalhadores, mas também de vislumbrar uma vida melhor – ainda que eles soubessem que esse vislumbre seria praticamente utópico.

Bessy Higgins é a personagem perfeita para descrever, em sua essência, a realidade das fábricas e das pessoas que nelas trabalhavam. Ela é, podemos argumentar, uma mártir e sua história é uma forma dolorosa de despertar uma conscientização político-social nas pessoas que leem o romance. A vida de Bessy é o relato puro de uma grande questão do romance, uma vez que ela representa a classe trabalhadora e é um símbolo de todas as dificuldades experienciadas pelos empregados das fábricas ao longo de toda a Revolução Industrial e seus desdobramentos.

Para contextualizar, Bessy Higgins era uma trabalhadora de uma manufatura de algodão em Milton, cidade fictícia retratada no livro – geograficamente, corresponderia à Manchester na qual Gaskell se inspirou. Bessy era uma jovem esperançosa e cheia de coragem, embora a sua saúde não correspondesse à maior das esperanças. Ela tinha um quadro de saúde debilitado justamente pelo trabalho que desenvolvia na fábrica – todo aquele algodão passando por suas vias aéreas e sendo depositado em seus pulmões a fez adoecer. Ao longo do romance, a vemos tossindo a todo momento e a cada dia ficando mais debilitada. Podemos dizer que Bessy representa todos os trabalhadores que adoeceram e faleceram por conta das péssimas condições de trabalho nas fábricas oitocentistas. A rotina cansativa, a forma como trabalhavam horas a fio e ganhavam tão pouco significava que eles pagavam para trabalhar – e o pagamento era a própria saúde.

Você se lembra do ‘anjo do lar’? No que concerne as mulheres pobres, como Bessy Higgins, sua irmã e outras, não era uma expectativa que as contemplava. A regra de ficar em casa, cuidar das crianças, ser uma boa esposa e mãe, ser linda, pura e submissa não se encaixava na realidade das trabalhadoras de Milton. Homens e mulheres não só trabalhavam como punham seus filhos, mesmo os menores de idade, para ajudar. Eles trabalhavam por míseras moedas e eram extremamente maltratados por seus chefes.

O contraste que a autora mostra entre a realidade privilegiada de quem possuía mais bens e aqueles outros que mal podiam manter o teto sobre suas cabeças, pode ser visto claramente na amizade entre Margaret e Bessy. Quando Margaret encontra Bessy pela primeira vez, a jovem fala tão bem do lugar onde nasceu – o sul da Inglaterra – e por mais que Bessy adorasse ouvi-la, a jovem trabalhadora estava mais preocupada com garantir o sustento do dia seguinte. A amizade de ambas é tão importante para Margaret pois a ensina como uma realidade diferente da dela pode existir, e como esta pode ser cruel ao ponto de Bessy morrer por conta de sua vida dura. É quando Bessy conta e mostra para Margaret as consequências de sua vida na fábrica que a menina do Sul acorda em si uma leoa que decide lutar por aqueles que tinham muito pouco para sobreviver no Norte.

É por conta da amizade de Margaret e de Bessy que Margaret aprende como estar em uma posição privilegiada na sociedade poderia servir de ajuda para a luta trabalhista do local. Nicholas Higgins, pai de Bessy, foi um homem forte que não podia evitar lutar por direitos mais justos para os trabalhadores das fábricas de Milton. O homem era líder de um sindicato que planejou diversas iniciativas, como negociações sindicais e greves, para garantir à sua classe salários mais dignos e jornadas de trabalho mais razoáveis. Quando sua filha conheceu Margaret, a moça do Sul ofereceu a ela flores. Para ganhar o coração e admiração de Nicholas, bastava apenas que alguém fizesse bem aos seus. Isso pode ser visto quando Margaret oferece visitá-los em sua casa e o homem prontamente diz “não gosto de ter estranhos na minha casa” (…), mas “deu à minha menina aqui as flores que colheu com suas mãos. Pode vir, se quiser.” (2011, p. 64).

Em suma, Bessy foi uma grande representante da classe trabalhadora fabril do norte da Inglaterra. A trama que a envolve no romance expõe os problemas e a precariedade que rodeavam a classe trabalhadora de cidades industriais como Milton. Ela morreu em decorrência de seu trabalho. Jovem demais. Ela deu um rosto às questões sociais que o romance aborda e, como uma personagem, mostrou o duro reflexo do trabalho industrial na vida das pessoas. Bessy foi, podemos supor, criada para despertar empatia nas pessoas e conscientizá-las sobre as condições precárias experienciadas pela sociedade pobre da época, que morria aos milhares apenas por tentar garantir o pão de cada dia em suas despensas.

 

REFERÊNCIAS

GASKELL, Elizabeth. Norte e Sul – North and South. Tradução e notas por Doris Goettems. São Paulo: Editora Landmark, 2011.

 

Publicado por

Ester Cruz

Ela/dela. Graduanda em Letras - Inglês e suas literaturas na UERJ.

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