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Atores revelam seus personagens shakespearianos favoritos8 min read

Na data em que celebramos o aniversário de William Shakespeare, o jornal britânico The Guardian entrevistou atores que já atuaram em peças do Bardo para saber quais são os seus personagens shakespearianos favoritos.

Ophelia Lovibond sobre Iago: ‘Não faz sentido’

Ophelia Lovibond | Reprodução do Instagram

O que é ótimo em Shakespeare é que ele te oferece muitos desafios e problemas para resolver. Iago é fascinante. Ele convence Otelo – o homem que é o seu chefe e que pensa que eles são melhores amigos – que a esposa dele dormiu com outra pessoa, e leva Otelo à loucura por causa do ciúme. E não fica muito claro por que ele faz isso. Iago tem solilóquios direcionados à plateia nos quais ele oferece uma série de razões: que ele foi preterido numa promoção, que ele precisa de dinheiro, que a esposa dele havia sido infiel e que ele quer vingança. Ele é puramente mau? Ele tem inveja? Não faz sentido.

A minha impressão é que ele é um psicopata, no sentido clínico. Ele parece não sentir empatia ou remorso. Ele é o cara que quando vê um acidente de carro, diz: “ah, isso é interessante”. Talvez este seja o elemento mais assustador sobre Iago: ele não é um vilão de pantomina. Ele está entre nós.

Há muitos papeis shakespearianos que eu gostaria de interpretar, mas Iago está no topo da lista. Não vejo nenhuma razão por que uma atriz não poderia interpretar um personagem masculino. Produções brilhantes com elencos exclusivamente femininos já mostraram isso. Na verdade, dá pra imaginar uma história por trás disso. Se Iago é uma mulher no exército, talvez seja por isso que ela foi preterida na promoção. Ou talvez haja uma dinâmica particular entre ela e Otelo, algo com uma certa tensão. Eu adoraria atuar em algo assim.

Ophelia Lovibond está em cartaz em The Bay at Nice na Menier Chocolate Factory, Londres, até o dia 4 de maio.

Paapa Essiedu sobre Lady Macbeth: ‘Ela absorve os horrores da peça’

Paapa Essiedu como Hamlet | Foto: MANUEL HARLAN/RSC

Quando as pessoas descrevem Lady Macbeth como uma máquina de guerra com um coração gelado, isso faz um enorme desserviço à personagem; Ela é uma das criações mais camaleônicas de Shakespeare. Você a vê sendo íntima, ambiciosa, calculista, feroz, uma esposa amorosa, a vida e a alma da festa, a pessoa mais charmosa onde estiver. Ela é uma política muito astuta. Ela sabe como atuam os homens no poder. Então, em sua cena de sonambulismo perto do final da peça, ela está insuportavelmente vulnerável. É chocante ver isso. É quase como se ela absorvesse os horrores da peça. Macbeth simplesmente se retira e desaparece, mas Lady Macbeth realmente os sente. E então ela é destruída por eles.

É a vulnerabilidade dela que me impressiona. Ela diz muito claramente que teve um filho e sabe “quão terno é amar o bebê que amamento”, e, no entanto, não há sinal dessa criança no palco. Então ela deve tê-lo perdido de alguma forma, e se você considerar esse trauma, talvez ele faça parte do que está acontecendo.

É uma visão misógina enxergar Lady Macbeth como uma mulher que manipula seu marido de caráter fraco a fazer algo. Ao meu ver, ela está libertando algo que está dentro dele. É simplesmente o fato de que ela tem coragem para enxergar isso e que ela sabe o que precisa ser feito. Ela entende, eu suponho. Isso é o que eu admiro nela.

Paapa Essiedu atua em Gangs of London, que estreia em breve no canal Sky Atlantic.

Jade Anouka sobre Viola: ‘A máscara e a personagem se misturam’

Jane Anouka | Foto: Reprodução do Instagram (@jadeanouka)

O elemento frustrante nos papéis femininos em Shakespeare é que muitas vezes eles não parecem atuar como a força motriz. Elas não estão realmente no comando. Elas reagem tanto quanto agem. Nos últimos sete anos, participei da trilogia de Shakespeare com elenco exclusivamente feminino em Londres e Nova York, interpretando Marco Antônio em Júlio César, Hotspur em Henry IV e Ariel em A Tempestade. Foi como olhar para Shakespeare com um novo olhar, você o encerga de uma forma inédita.

Mas uma das personagens femininas que é um pouco diferente é Viola em Twelfth Night. Eu interpretei Olivia no Bolton Octagon anos atrás, mas sempre tive um fraco pela Viola. Essas duas mulheres realmente parecem estar no comando: elas são o centro em torno do qual o resto da peça gira. Talvez seja porque Viola não é realmente uma mulher durante a maior parte da peça. O enredo é que ela se disfarça de homem, e então Olivia se apaixona por ela. Há muita comédia nessa situação, muita delicadeza e leveza. As duas têm ótimas cenas juntas: a cena grande no terceiro ato, em que Viola percebe o que está acontecendo e tenta se desvencilhar da situação, é muito bem construída.

A forma como Shakespeare brinca com gênero é incrível. Tecnicamente, Viola está se vestindo como um homem, mas ao longo de toda a peça isso meio que fica entre uma coisa e outra – ela é de alguma forma masculina e feminina. Talvez Olivia saiba disso, e isso faz parte da emoção. A máscara e a personagem se misturam. Essas peças têm 400 anos, mas continuam nos oferecendo coisas novas.

Jade Anouka estrela a série Cleaning Up da ITV.

Roger Allam sobre Benedick: ‘Você torce por ele’

Roger Allam como Falstaff em Henry IV, Part 1 no Shakespeare’s Globe. | Crédito: John Haynes

Eu interpretei Benedick em Much Ado About Nothing há quase 30 anos com a Royal Shakespeare Company, ao lado de Susan Fleetwood como Beatrice, e adorei cada minuto. Benedick reflete o movimento da peça: no início, ele é engraçado de um jeito alegre, depois muito sério, e engraçado de um jeito diferente – mais sábio, mais adulto. O papel tem muitos monólogos, você troca confidências com a plateia o tempo todo. E quando você o interpreta, é como estar dentro de alguém muito mais inteligente e sagaz do que você. Quando você acerta, você sente que há 1.500 apoiadores de Benedick na sala.

Embora, é claro, o público também esteja torcendo por Beatrice: os embates entre os dois, em que eles trocam uma série de observações sagazes, são o coração da peça. O estranho é que, tecnicamente, Beatrice e Benedick são o enredo secundário. A história principal de Much Ado é a relação entre outro casal, Claudio e Hero, que ameaça ter um final desastroso depois que Claudio é levado a pensar que Hero foi infiel. Beatrice e Benedick são arrastados para a confusão: ele é forçado a escolher entre seu melhor amigo e a mulher que ama, momentos após ter declarado o seu amor. É disso que eu gosto na peça: ela é muito humana. Você vê como a vida é complicada.

Eu gostaria de interpretá-lo novamente? Talvez. Eu acho que é algo que pode funcionar bem quando Beatrice e Benedick são mais velhos. Há indícios de que eles tiveram algum tipo de relacionamento no passado, embora seja algo meio conflituoso. Mas gosto da ideia de que é a última chance para eles. A gente torce por eles, não é?

Roger Allam atua em Rutherford and Son no National Theatre, Londres. A peça estreia no dia 16 de maio.

John Kani sobre Otelo: ‘o estranho na peça’

John Kani como Otelo. | Foto retirada do Pinterest.

Na África do Sul, em 1987, o apartheid ainda era forte. Algumas das leis de raça mais brutais haviam sido relaxadas, mas não revogadas. Ainda havia muita tensão. Um dia, Janet Suzman, que era uma velha amiga, me ligou e disse: “Nós devíamos fazer Otelo.” Alguns anos antes, eu tinha feito Miss Julie de Strindberg com uma atriz branca, Sandra Prinsloo, e alguém me atacou. Eu levei 11 facadas. Eu disse: “Janet, não sei se isso vai acabar bem”.

No fim das contas, começamos a ensaiar no teatro Market em Joanesburgo. Eu tinha lido Shakespeare na escola, traduzido para xhosa e amava as histórias, mas eu não tinha me dado conta, antes de começar a ler o texto em inglês, o quanto a linguagem era poderosa – os grandes discursos que Otelo faz. “Her father loved me, oft invited me; / Still questioned me the story of my life …” 1 Parece música.

Otelo é o estranho na peça, o único homem negro em um mundo cheio de pessoas brancas. Ele nos conta a incrível história da vida dele – que ele foi vendido como escravo e escapou de alguma forma, antes de se tornar um soldado. Agora ele havia sido contratado como mercenário e tratado como um grande general no exército veneziano. Mas ele nunca está realmente em casa nessa sociedade. Ele é um deles, até que decide se casar com uma de suas filhas brancas. É uma linha que você não pode cruzar.

Professores às vezes dizem que Otelo vive uma fantasia racista – um homem negro violento mata uma garota branca inocente. Mas quando eu o estava interpretando, eu nunca vi as coisas desse jeito. As emoções na peça eram muito mais fortes para mim: o medo e o ciúme, a angústia e a ansiedade. No decorrer de sua vida, Otelo viu muitas coisas. E eu faço parte da geração de sul-africanos que sentem ter sorte por estar vivos. Sempre que eu interpreto Shakespeare, fico pensando: “como esse homem inglês sabia tanto sobre mim?”

John Kani atua em Kunene and the King no Swan Theatre em Stratford upon Avon, no dia 23 April.

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Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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