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Rachel Cusk: uma introduçãoLeitura em 10 minutos

Por via de um amontoado de obras que encurtam a distância dos extremos opostos da ficção e da não-ficção, o nome da britânica Rachel Cusk já é consolidado na literatura contemporânea ao redor do mundo. O trabalho da autora tanto ganhou para si considerações como os prêmios desde seu romance de estreia e a sua entrada na Sociedade Real da Literatura, quanto no cenário dos romances, da escrita feminina, e da própria escrita em prática. Isso pode ser explicado por um número de aspectos nas suas obras: a sua prosa, que desde Saving Agnes (1993), tem contado com complexidade de humor, de atentividade e de personalidade; os assuntos dela, que têm sido causa de controvérsia sempre que ameaçavam encurtar os laços da realidade dos outros e se distanciar de um território particular a Cusk; e essa relação específica quanto a forma do romance, entre o campo do real (público, impessoal, objetivo) e o do imaginário (eu, pessoal, subjetivo). Esses últimos aspectos podem ser mais acessados nas últimas obras da autora, mas, uma vez que foram seus primeiros trabalhos já o alvo de muitos olhares, do ostracismo à premiação, eles também não deixam de ser importantes de se ler. Dessa forma, buscamos introduzir o leitor à escrita singular de Rachel Cusk.

Começando em 1993, a jornada como autora perseverou uma experiência densamente complexa, o que faz a sua leitura ainda mais interessante. O interesse do jornalismo literário de definir a mulher por trás das obras e as consequências públicas e pessoais desse interesse acabaram não se apartando completamente do verdadeiro conteúdo das obras, e o mesmo pode ser dito sobre a vida pessoal da autora e a sua escrita. 

Nesse sentido, se vê que, por mais que Saving Agnes tenha ganhado o Whitbread Award, um dos mais importantes prêmios literários do Reino Unido, tanto ele quanto a sua consequente entrada no campo de visão pública trouxeram consigo uma dose de cinismo. Esse primeiro romance, publicado por uma Rachel Cusk de 26 anos, recém-saída de um mestrado em Oxford, seguia o Bildungsroman de uma jovem heroína por meio de uma minuciosidade léxica extensiva. Na esperança visceral e sagrada de ser salva, Agnes procura se encontrar – o que eventualmente “a ensina o fato da realidade significar fracasso, feiura e auto-desprezo. Também inculcou nela a crença de que o que era bom nela era mera ficção” (1993, tradução livre).

Ao mesmo tempo em que ela tinha os longos períodos compostos criticados por serem “prolixos, labirínticos e intelectualistas’, Cusk ganhou a fama de ser reclamona demais para sua classe, o que somente piorou ao publicar seu memoir, A Life’s Work: On Becoming a Mother (2001), que explorava honestamente a sua experiência de se ter tornado mãe. 

Foi com essa publicação que chegou ao auge a antipatia do público (mídia, críticos, leitores, internautas) com a escritora ou, mais precisamente, com a própria pessoa dela; mais do que isso, foi também com esse momento que a sua escrita se renovou. Concomitantemente aos sinalizadores do pertencimento da autora na classe média inglesa, a condição feminina também é percebida enquanto classe, de modo que esse ápice do julgamento de Cusk seja respectivo duplamente a experiência em que a autora habita. O fato desse momento chegar com a publicação de sentimentos e verdades difíceis sobre a maternidade (o que levou entrevistadores, assim como os demais incomodados, a perguntarem a escritora se ela se arrepende dos próprios filhos e se os odeia) revela o tom específico em que o mundo a lia. Uma mãe não pode culpar as suas crianças, da mesma maneira que uma mulher que teve acesso a uma vida melhor do que muitos não pode continuar infeliz. O contrário, por sua vez, denunciava a culpa pessoal da personalidade de Cusk.

Esse não foi, no entanto, o último conflito da autora com a não-ficção. Além de ser processada com sucesso por alguém que ela descreveu em The Last Supper: A Summer in Italy (2009), que era uma recontagem das férias que ela passou com suas filhas, ela mais uma vez foi alvo de reprovação ao publicar Aftermath: On Marriage and Separation (2012). 

“Minha ideia de cara-metade era tal a da minhoca: corte ela ao meio e cada metade continuará viva, duas minhocas rastejando e lutando por si mesmas. Eu era o suporte financeiro da nossa família, fazia minha parte da cozinha e da limpeza, pagava alguém para cuidar das crianças enquanto eu trabalhava. E o meu marido ajudava, como ele dizia. Eu era a ‘mulher compartimentada moderna’, a mulher que podia ter e fazer tudo, e ele me ajudou a ter e fazer tudo. Mas eu não queria ajuda: eu queria igualdade. Na verdade, essa ideia de ajuda tinha começado a me irritar. Por que não podíamos ser do mesmo jeito? Por que que era só eu a compartimentada? E por que que era “ajuda” um homem cuidar dos próprios filhos, ou fazer a própria comida? A ajuda é um conceito perigoso porque existe fora da economia humana: o único pagamento para a ajuda é a gratidão. E por que que eu não podia receber algo do mesmo tom agradecido sendo que era eu quem provia financeiramente? Eu não podia pensar que eu também estava ajudando muito, eu, uma mulher provendo para a própria família?” (2012, tradução livre)

Escrita a respeito de seu divórcio e de todo o significado que esse grande rompimento suscita, a não-ficção trouxe ataques pessoais ao “personagem” da própria Cusk, publicamente exposto por ela mesma. As críticas continuaram a falar de um descontentamento crônico da escritora com o mundo, fixando nela uma perversidade auto-centrada. Em direções opostas, a questão de gênero era tão presente em Aftermath quanto nas opiniões negativas sobre a obra, assim como essas duas vias são fora da ficção. Ou seja, por mais que fosse possível a autora escrever sobre a realidade, ela continuava refém dela; continuava tendo que responder aos seus efeitos e consequências. 

“Ao caminharmos, nós conversamos. Nessa conversa, eu fico perdendo o fio. Estou acostumada a falar com outra pessoa. Z anda rápido; eu tenho que correr pra lhe acompanhar. Ele diz, a narrativa é o aftermath dos eventos de violência. É uma maneira de reconciliar a si mesmo com o que passou. Eu quero viver, eu digo. Eu não quero contar a minha história. Eu quero viver. Z diz, a velha história tem que terminar para que a nova história comece.” (2012, tradução livre)

Por meio dessa linha cronológica, é possível captar alguns aspectos importantes para uma introdução à Rachel Cusk, ainda mais tendo em vista os seus títulos publicados no Brasil. Sendo recipientes de um sucesso que aponta para um novo momento da prosa contemporânea, a trilogia composta por Esboço (2019), Trânsito (2020) e Mérito (2021), juntamente com a obra de narrativa semelhante, A Segunda Casa (2022), foi lançada pela Todavia alguns anos depois da publicação original de Outline em 2014. Dessa vez, ainda se escreve sobre a realidade dela sem ser não-ficção; correspondendo ao gênero recente da autoficção. 

A trilogia não é somente protagonizada por uma espécie de alter-ego semi-anônimo de Cusk, como a própria realidade sobre a qual ela escrevia se encontra em circulação em conversas da narradora com os personagens. Como expressa esse texto do New Yorker, 

“É como se eu tivesse perdido alguma capacidade especial de filtrar as minhas próprias percepções”, ela [Rachel Cusk] diz. Mas ela se empresta como filtro para os seus confidentes, e da névoa dos seus lutos e angústias, a maioria deles referentes ao amor, ela extrai algo claro – um senso de tanto o esboço dela e o deles.”

Nesse sentido, Esboço, o primeiro de sua trilogia e o primeiro dela a ser publicado no Brasil, empodera uma interrogação a respeito das experiências relatadas pelos parceiros de conversa de Faye (o nome da protagonista que é somente explicitado uma vez no inteiro romance) e com isso inspira a vida para dentro de todos os envolvidos. De uma maneira que não é dissimilar à psicanálise, o fluxo de consciência de tanto os outros personagens quanto da narradora é intermediado por uma atenção profunda à complexidade humana. Desse jeito, se coloca em evidência os acontecimentos em si mesmos, a experiência que alguém tem deles e o relato que esse mesmo alguém dá sobre eles, cada um existindo intrinsecamente através de Faye. 

A narradora, ou autora, entende isso, como expressado por um dos personagens com quem ela conversa a respeito do que um tradutor disse sobre a linguagem, “uma frase nasce para este mundo nem boa, nem ruim, e estabelecer sua natureza depende dos ajustes mais sutis possíveis, um processo intuitivo em que o exagero e a força são fatais. Essas linhas diziam respeito à arte da escrita, mas ao olhar em volta, no começo da meia-idade, meu vizinho passou a ver que se aplicavam igualmente à arte da vida. Para onde quer que ele olhasse, via pessoas por assim dizer estragadas pelo caráter extremo das próprias experiências […]”.  Desta maneira, fica destacado como a própria vida é um meio que transforma e que transmuta, tal como a linguagem em tradução. 

Nesse sentido, a tensão pública que a autora passou por conta de suas obras de não-ficção, assim como a tensão pessoal dos próprios acontecimentos de vida que as prencheram, foram elas mesmas maneiras de intermediar a realidade, a pessoa de Cusk. Se tanto a maternidade quanto o divórcio, segundo Cusk, representam reorganizações de si na forma de separação, a transformação da realidade em narrativa pode aparecer enquanto a “reconciliação” que fala Z.

Nessa mesma abordagem, pode-se ver o romance A Segunda Casa, que, apesar de não imitar da mesma maneira a autoficção dos livros anteriores, continua se manifestando em personagens quase anônimos e quase não-ficcionais. Baseado em obras de não-ficção como as biografias de D. H. Lawrence e o memoir Lorenzo in Taos de Mabel Dodge Luhan, a narrativa segue a estadia do artista L em casa da escritora M e a leitura, a tradução que L faz da escritora. Sendo tanto as pessoas reais e os personagens que elas inspiraram fortemente marcados pela diferença de gênero, e com os escritos por e sobre o escritor inglês muito mais conservados do que o livro fora de catálogo de Luhan, avista-se a mesma aniquilação de relato de experiência que a não-ficção de Cusk enfrentou. Desse modo, concentra-se nessa narrativa uma reconciliação da voz feminina com a realidade masculina que a formatou.

Por isso, a leitura das obras de Rachel Cusk se mostra tão crucial na literatura contemporânea, ainda que alguns leitores não simpatizem à primeira vista com a autora. Mas é mesmo por meio dessa pre-concepção que se deve encontrar-se com sua escrita, em ordem de transformá-la em algo mais esclarecido. Porque é importante perceber a relação da realidade com a experiência, e das duas com o relato e a sobrevivência do mesmo ao tempo. É através do fim da velha história que uma nova história pode começar.

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É graduando em Letras - Inglês/Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil, sob orientação da Profa. Dra. Marcela Santos Brigida.

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