O The Irish Times publicou recentemente uma matéria assinada por Sheila O’Reilly sobre um sistema de mentoria que auxilia livreiros independentes, conectando-os com especialistas que oferecem orientação sobre uma miríade de tópicos, como projetos de expansão como a adição de um café, por exemplo, ou até mesmo uma transferência para outro local, além de outras questões relativas à administração de uma pequena livraria. O programa estabelece uma conexão entre o livreiro que precisa de ajuda e um profissional experiente que pode auxiliá-lo no processo de tomada de decisão.
Traduzimos trechos da matéria a fim de compartilhar este interessante sistema que tem ajudado estabelecimentos pequenos na Irlanda e no Reino Unido. Isso também nos possibilita introduzir uma discussão acerca das alternativas que o Brasil oferece e pode oferecer às suas livrarias independentes. Será que um modelo assim funcionaria no nosso país? Leia a matéria e compartilhe sua opinião.
A matéria do The Irish Times explica que pesquisas demonstram a presença de uma livraria independente local aprimora a qualidade de vida e a economia local de cidades e aldeias1 no Reino Unido e na Irlanda. A partir desta percepção, surgem algumas questões: “quem ajuda os livreiros independentes? A quem os livreiros independentes recorrem quando precisam de conselhos, ajuda, orientação ou apenas de uma pessoa com quem falar sobre negócios?”
Estas foram perguntas que a The Booksellers Association of Great Britain and Ireland (BA)2 fez a si mesma e aos seus membros no início de 2017. Também neste período, o artigo nos informa, a Unwin Charitable Trust (UCT) procurava oferecer alguma forma de ajuda e suporte para livrarias independentes.
A UCT já oferecia apoio ao mercado editorial predominantemente através do Book Trust, do Publishing Training Centre3 e de instituições beneficentes que incentivam a leitura e a alfabetização. No entanto, a instituição decidiu ampliar seu escopo para incluir livrarias. Após várias conversas entre a BA e a UCT, o Booksellers’ Mentoring Programme4 foi formulado e lançado.
Financiado e administrado pelo Book Trust em parceria com a BA, o esquema está aberto a todos os membros da Booksellers Association com cinco filiais ou menos. O objetivo é oferecer ajuda a livrarias físicas pequenas e independentes, financiando o custo total do aconselhamento profissional oferecido por livreiros altamente experientes.
O’Reilly sublinhou que “muitos livreiros trabalham em relativo isolamento e têm oportunidades limitadas para discutir seus planos de negócios e ideias” e que, desta forma, “o programa de mentoria oferece a chance destes profissionais falarem sobre ideias, preocupações e planos com um colega em total confiança.”
A autora do artigo citou um livreiro que elogiou o sistema de mentoria, observando que muitas vezes é importante estabelecer um diálogo com um colega de profissão que tenha experiência com a situação a ser enfrentada. Ele apontou, ainda, que embora livreiros costumem ser amistosos e prestativos, nem sempre é fácil encontrar a pessoa ideal para perguntar. Logo, “a beleza desse esquema é que ele oferece um processo simples para pedir conselhos.”
Desde o lançamento do projeto em setembro de 2017, mais de 30 livrarias já se beneficiaram dos conselhos e da ajuda da equipe de mentores. Sheila O’Reilly contou um pouco sobre como o processo funciona, ilustrando seu relato com os casos de algumas livrarias que foram beneficiadas na Irlanda e no Reino Unido.
Livraria Sheelagh na Gig em Cloughjordan, Co Tipperary, Irlanda
O’Reilly contou que teve “o prazer de conhecer as incríveis Mollie Barrow e Elizabeth O’Shea, que administram a livraria” e que antes do processo de mentoria, “elas estavam cheias de ideias para aumentar as vendas de livros; de certa forma eu era apenas uma caixa de ressonância para elas. Ambas têm muitos planos para desenvolver o negócio, ideias para incentivar as crianças a ler mais e são apaixonadas por seus livros.”
“A primeira visita a qualquer loja é fundamental”, ela explica. “Do lado de fora, pude ver que uma das duas janelas tinha uma vitrine com livros, mas a outra tinha um assento convidativo, mas que não ‘gritava’ livros. Conversando com Barrow e O’Shea, ficou claro que elas estavam pensando em substituir o assento da janela por uma vitrine. E elas também estavam falando sobre a ideia de remover outra unidade de exposição de livros. Muitas vezes, tirar uma unidade de exposição pode parecer contraditório. Nossa inclinação natural é encher a loja com prateleiras para que possamos encaixar tantos livros quanto possível. No entanto, isso muitas vezes trunca o espaço e não oferece espaço para que os livros se vendam ou exponham.”
“Uma bela capa de livro muitas vezes é tudo o que é necessário para alguém para pegá-lo e dizer: ‘Este parece o meu tipo de livro’. Às vezes é bom julgar um livro pela capa, mas tem que ser fácil vê-la. A unidade que Barrow e O’Shea estavam considerando retirar era uma peça grande logo depois da entrada da loja.”
“Para mim, a questão já estava resolvida. Ao entrar na livraria, tive que chegar para o lado para permitir que outro cliente passasse. Além disso, não era possível me distanciar o suficiente da unidade para ver os livros melhor. Voltei algumas semanas depois de terem removido a unidade e a livraria parecia muito mais aberta, espaçosa e convidativa. Eu senti que o meu papel ali era apenas dizer’experimentem por alguns meses e, se não der certo, coloquem tudo de volta.’”
Uma das donas da livraria, Elizabeth O’Shea, declarou: “substituir o assento da janela por prateleiras foi provavelmente o mais importante. Vimos um aumento nos gastos de novos clientes e agora dá para ver do lado de fora que somos uma livraria. Não ficava tão claro antes disso.”
The Blessington Bookshop, Co Wicklow, Irlanda
Relato de O’Reilly: “Eu conhecia a proprietária, Janet Hawkins, há vários anos, muitas vezes nos encontramos em conferências do setor nas quais discutimos ideias e planos. Blessington é agora uma cidade pequena conhecida por sua proximidade de Dublin. No entanto, tenho idade suficiente para lembrar quando minha família ia para lá passar o dia e uma vez até tiramos férias curtas por lá. Agora a cidade tem que competir não apenas com as compras online, mas também com os moradores que trabalham em Dublin e compram o que querem a caminho de casa e não na aldeia em si.”
“Janet declarou depois: ‘Foi muito útil ouvir sobre os problemas enfrentados por uma profissional experiente na organização de eventos. Isso nos ajudou a perceber que devemos ir em frente e experimentar com as coisas.’”
The Little Ripon Bookshop em North Yorkshire, Reino Unido
“Ripon é a cidade perfeita para uma livraria e quando Gill Edwards abriu a loja há dez anos, ela foi recebida de braços abertos pela comunidade local. No início de 2018, ela ouviu que a galeria de arte ao lado ficaria disponível no final do ano, e ela e Simon sentiram que, se algum dia fossem expandir, essa era a hora.”
“Eu me encontrei com os dois, junto com a filha deles (que se juntaria aos negócios da família), em uma manhã ensolarada de primavera. Foi um dos dias de mentoria mais divertidos que eu já tive: muita discussão, muitas risadas e a paixão deles por vender livros era fantástica.”
Ela prosseguiu: “Para mim, esta visita sintetizou o programa de mentoria, já que eles já tinham as ideias, mas ainda assim queriam sentar e conversar com uma pessoa de fora da família, mas dentro da indústria.”:
“Conversar com nossa mentora da UCT nos deu a confiança necessária para levar adiante nossos planos estratégicos, ao mesmo tempo em que nos deu muito em que pensar”, disse Edwards.
O’Reilly compartilhou, por fim, o relato de um livreiro que “também está no ramo há muito tempo” e disse que o esquema é “uma oportunidade maravilhosa para todos os livreiros revisarem sua forma de operar.”
Dado o cenário complicado no Brasil tanto para pequenos negócios quanto para livrarias de forma geral (com duas gigantes do setor em recuperação judicial), talvez um sistema de mentoria fosse benéfico em uma tentativa de conter e reverter a crise no setor.
Para quem gosta e trabalha com literatura, o fechamento em série de livrarias de qualquer porte, mas especialmente as independentes, é calamitoso e lamentável, um processo que em muito prejudica as comunidades em que se inserem, dificultando o acesso a livros e o desenvolvimento cultural do país como um todo. É importante procurar soluções de forma proativa e aprender com iniciativas que deram certo, ainda que as adaptando à nossa realidade.
Publicado por
Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.