Além de poeta renomado e autor de diversas obras — como apresentado em publicação recente aqui no blog —, Seamus Heaney (1939-2013) foi, também, responsável por mais de cem traduções ilustres de extrema relevância cultural e política dentro do contexto pós-colonial em que foram publicadas. O poeta irlandês, vencedor do prêmio Nobel de Literatura, traduziu grandes obras de diversas línguas, incluindo italiano, espanhol, francês, alemão, russo, tcheco, romeno e grego, além de irlandês antigo e médio, assim como do inglês, gaélico escocês, italiano medieval, grego clássico e latim, denotando enorme maestria linguística e, indo além, especial interesse por obras clássicas, como observado em sua primeira obra dramática, The Cure at Troy (1990), uma peça que faz releitura de Filoctetes, de Sófocles (496-406 a.C). Nessa publicação, Heaney é capaz de trazer uma situação da Antiguidade e compará-la aos eventos de violência que aconteciam na Irlanda do Norte daquele período, obra que contém um dos trechos mais citados de sua carreira:
But then, once in a lifetime
The longed-for tidal wave
Of justice can rise up,
And hope and history rhyme.
Partindo desta obra e de suas implicações dentro de um contexto plural, devemos entender como que Heaney, em uma conjuntura de produções artísticas na Irlanda pós-colonial, utilizou esse material Clássico de forma subversiva. Para o autor, em Crediting Poetry (1995), a poesia possui natureza formativa, sendo assim, pode ser ferramenta política capaz de moldar opiniões:
O formato do poema … é crucial ao poder da poesia para fazer o que é e sempre será mérito da poesia; o poder de persuadir essa parte vulnerável de nossa consciência de seu caráter justo, apesar de toda a inverdade que a cerca, o poder de nos lembrar que somos caçadores e coletores de valores.¹
Entendendo a visão de Heaney e o conceito de literatura pós-colonial, que se apoia em fatores extratextuais — como os processos de colonização e descolonização, tanto como a consciência de ideologias imperialistas aplicadas à arte — a escolha de traduzir e reinterpretar textos Clássicos aponta-se como posicionamento de esforço de retomada da identidade irlandesa, que, segundo a pesquisadora Lorna Hardwick, ajudam a recriar, mas também a cauterizar feridas da colonização, tanto em sua significação quanto na criação imagética gerada nessas traduções e reinterpretações.
No caso de uma de suas mais aclamadas traduções, Beowulf: A New Verse Translation (1999), que ganhou o prêmio Whitbread Book of the Year do mesmo ano, a necessidade de uma tradução de cunho pós-colonial irlandês fica mais clara, exatamente por ser uma tradução da Irlanda: um país que, historicamente, recebeu diversas influências, através das sucessivas invasões de povos pagãos, seguidas dos Cristãos. Toda essa mistura cultural acaba por criar uma sobreposição que apaga a noção individual de identidade nacional, cabe, aí, utilizar a tradução como forma de resgate.
Ainda em 1999, o aclamado crítico literário, Terry Eagleton, escreveu em um ensaio acerca da natureza provocativa da tradução que, dentro de universidades renomadas, tudo aquilo escrito em inglês antigo era considerado como Literatura Inglesa, apesar de apresentar drásticas diferenças do inglês falado atualmente. Esse fato, atestado por Heaney, que se referia a Beowulf como uma obra ‘em inglês’, demonstra novamente o poder colonizador da poesia, capaz de ditar o que é “inglês” e o que fica de fora. E a identidade irlandesa? De quem seria essa história que Beowulf contempla? O poema é capaz de entregar uma realidade similar àquela da Irlanda, quando apresenta realidades contrastantes: escrito por um autor Cristão sobre o passado pagão de seu povo escandinavo, paralelo que podemos traçar em Heaney e a Irlanda do Norte, situação igualmente recheada de conflitos violentos numa luta contra o engolimento de sua cultura local. Seamus Heaney ainda comenta em sua introdução sobre o processo de traduzir:
Aceitar a comissão de Beowulf seria (discuti comigo mesmo) um tipo de antídoto para a aura, uma forma de ter certeza de que minha âncora linguística estaria alojada no fundo do mar Anglo-Saxão, então, eu me empreendi a fazê-la
Ainda assim, tive um instinto de que eu não deveria largá-la. Um acordo que eu havia feito comigo mesmo acerca das minhas próprias origens linguística e literária, o que me deixou relutante em abandonar a tarefa.²
Heaney continua a narrar sua experiência, atestando como teria sido sua criação e relação com sua própria língua irlandesa:
Eu aprendi a língua irlandesa e vivi dentro de um contexto cultural e ideológico que entendia ela como a língua que eu deveria, por direito, estar falando, porém da qual fui roubado.³
Essa relação é analisada quando Heaney fala que entendia inglês e irlandês como línguas adversárias, visão essa que se expande à dualidade celta/saxã. Continua dizendo que essas antíteses se romperam ao perceber o léxico usado de forma compartilhada entre essas culturas, demonstrando que, apesar de todas as tentativas de apagamento, sua língua deixou rastros que aparecem em Beowulf, que diz ser uma ‘odisséia multicultural’ que reconta o verdadeiro passado da Grã-Bretanha. Após isso, conseguimos entender o épico anglo-saxão como uma obra que representa, de uma forma ou outra, todas as culturas locais, incluindo a identidade irlandesa que a colonização tanto lutou por apagar. Quando Seamus Heaney empreendeu esforços em traduzir uma obra desta natureza, se propôs a utilizar a arte da tradução como forma de reconciliação política, trazendo de volta sua história e reafirmando os direitos do povo irlandês.
Notas:
¹ The form of the poem … is crucial to poetry’s power to do the thing which always is and always will be to poetry’s credit; the power to persuade that vulnerable part of our consciousness of its rightness in spite of the wrongness all round it, the power to remind us that we are hunters and gatherers of values. (Heaney, Seamus. Crediting Poetry, 1995)
² Saying yes to the Beowulf commission would be (I argued with myself) a kind of aural antidote, a way of ensuring that my linguistic anchor would stay lodged on the Anglo-Saxon sea-floor. So I undertook to do it.
Even so, I had an instinct that it should not be let go. An understanding I had worked out for myself concerning my own linguistic and literary origins made me reluctant to abandon the task. (Heaney, Seamus. Translator’s Introduction, p. xxii, xxiii.)
³ I had learned the Irish language and lived within a cultural and ideological frame that regarded it as the language which I should by rights have been speaking but which I had been robbed of. (Heaney, Seamus. Translator’s Introduction, p. xxiv.)
Referências:
Eagleton, Terry. Hasped and hooped and hirpling: Heaney conquers Beowulf. London Review of Books, 3 November 1999.
Hardwick, Lorna. Classical Texts in Post-Colonial Literatures: Consolation, Redress and New Beginnings in the Work of Derek Walcott and Seamus Heaney. In: International Journal of the Classical Tradition, Vol. 9, No. 2, Fall 2002, pp. 236-256.
Heaney, Seamus. Translator’s Introduction. In: Donoghue, Daniel (Ed.). Beowulf: A Verse Translation. Translated by Seamus Heaney. New York: W. W. Norton & Co, 2019. P. xxiii-xxxviii.