Considerado um livro de estreia ambicioso e emocionante pelo The Guardian, o romance de Caleb Azumah Nelson consegue atender às altas expectativas que foram geradas ainda no seu momento de pré-lançamento. Em 2019, o manuscrito de Mar Aberto chamou atenção de quinze editoras e passou por um leilão intenso antes de ser vendido para a Viking e finalmente publicado em 2021, segundo o New York Times. Toda a ansiedade em volta da obra de Nelson é justificada para quem lê as primeiras páginas do livro. O romance entrega personagens memoráveis e complexos, apresentando uma história comovente e delicada entre dois jovens negros londrinos, além de conduzir a trama de uma forma ousada mas acertada, usando uma estratégia poética e narrativa incrível.
Mar Aberto é ambientado entre 2017-18 e inicia com a celebração de uma festa de aniversário em um pub no sudeste de Londres. A comemoração é recheada de amigos, incluindo um jovem fotógrafo e uma dançarina. Os dois, cujos nomes não são revelados em nenhum momento, se conhecem na ocasião por meio de um amigo em comum: Samuel.
A cena da festa é importante porque o fotógrafo fica admirado pela dançarina. No momento em que eles conversam pela primeira vez, o leitor parece fazer parte da festa pela maneira como Nelson narra a história, que é feita majoritariamente na segunda pessoa, conforme a gente vê abaixo:
Você não sabe o que dizer. Você quer preencher o vazio, mas as ideias não surgem. Vocês ficam parados, observando um ao outro, num silêncio que não é desconfortável. Você imagina que o olhar no rosto dela está refletindo o seu, um olhar de curiosidade. (Nelson, 2021, p. 6)
O trecho acima ilustra bem a ansiedade sentida pelo jovem, ao se deparar com alguém que achou interessante e que quer conhecer mais. O uso de “você” faz com que o leitor saia do estado de inércia e participe não só da conversa, mas dos pensamentos dos personagens.
Samuel os introduz como dois artistas. Mas ao ser informada que o rapaz é fotógrafo por Samuel, a moça fica confusa ao ouvir depois que “Eu tiro fotos de vez em quando”, em uma tentativa de diminuir o prestígio da sua profissão. A modéstia do protagonista é expandida ao longo do livro, revelando na realidade uma profunda vulnerabilidade emocional e ressaltando, assim, uma dificuldade de se abrir verdadeiramente não só com o seu ciclo de amigos e familiares como para si próprio.
A personalidade do fotógrafo faz com que ele tome decisões que não deseja e cria uma barreira ainda maior na busca por ser autêntico. Para além das suas dificuldades internas, ele ainda precisa lidar com as expectativas de ser um homem negro morando em Londres, assim como as suas violências do dia a dia.
Não demora muito para os artistas se apaixonarem e começarem um relacionamento. Na medida em que eles se conhecem, mais eles se conectam. Ambos descobrem que ganharam uma bolsa de estudo em uma escola particular onde lutaram para pertencer por serem minoria em um ambiente repleto de pessoas brancas. Ao mesmo tempo que compartilham histórias parecidas, a questão de classe também é atravessada na relação dos dois personagens, gerando falhas na comunicação do relacionamento.
O livro é constantemente associado ao romance de outros autores como de Sally Rooney, por exemplo, devido aos conflitos de classe na relação de casais que a irlandesa também desenvolve em seus trabalhos. Além de citar a autora de Pessoas Normais, The New York Times também menciona Michaela Coel e Teju Cole como autoras que escrevem narrativas semelhantes ao de Nelson. Ainda que as comparações sejam inevitáveis, ainda mais para um romancista estreante, Nelson escreveu um enredo sensível e extremamente poético, podendo ter a sua prosa facilmente reconhecida pelos seus próprios méritos.
Ao mesmo tempo, Mar Aberto não tenta ser um livro revolucionário que ignora o seu passado. A quase todo capítulo, a história é permeada com alguma referência da literatura, fotografia e em canções de autoria negra. Em uma sessão de autógrafos do romance NW (2012), o fotógrafo se encontra com a escritora inglesa Zadie Smith e a sua forma de enxergar a situação é emocionante, além de muito bonita de se ler. A obra de Nelson não deixa de ser uma celebração aos artistas que o autor cresceu acompanhando, como fica claro na entrevista feita em 2021 pela Penguin:
NW, de Zadie Smith [é um livro que mudou a trajetória da minha vida]. Era diferente de qualquer romance que eu tinha lido na época, e me encorajou a contar minha própria história, sobre meu pedaço de Londres. (…) Nenhum livro mudou mais minha visão sobre o que a ficção poderia ser. Ele informa como escrevo hoje e o considero demais. (…) Mar Aberto é uma história de amor, mas também é uma ode a tudo que eu amo: o sudeste de Londres e livros, música e fotografia, filme e belas artes. Eu queria escrever um livro que fosse lido como um álbum, como música, então músicos como Kendrick Lamar, Solange e J Dilla foram fundamentais para a concepção do livro. Fotografia também – muitas vezes sinto que quando estou escrevendo, estou transcrevendo instantâneos de momentos que posso ver.
O mar aberto é uma excelente analogia criada pelo romancista para representar a imensidão na qual o jovem protagonista se vê no mundo e como os traumas podem ressurgir à superfície e flutuar no oceano. Como abrir a boca para se expressar em um mar aberto sem ter medo de se afogar? É uma das questões que o livro tenta lidar. Além disso, a obra de Nelson se propõe a trabalhar os sentimentos de não pertencimento, o medo diante da violência racial e a experiência de vivenciar a masculinidade.
O romance foi celebrado por diversos veículos de imprensa e escritores também consagrados. Alguns já lidos no Clube do Livro Fernanda Carvalho, como Bernardine Evaristo, Candice Carty-Williams e Bolu Babalola, que elogiaram a estrutura poética do livro. Outros como Benjamin Zephaniah, Diana Evans, Yaa Gyasi, David Nicholls e Nikesh Shukla reconheceram o mérito do livro e não poupam elogios para a escrita do autor.
Além do reconhecimento de escritores, Mar Aberto entrou para o hall de livros que contemplam a literatura de autoria negra contemporânea, agora segundo o Cambridge Companion to Contemporary African American Literature (2023). O livro editado pela pesquisadora e professora universitária Yogita Goyal inaugura o romance de Nelson ao lado de autores como Toni Morrison e Gayl Jones, por exemplo. O feito sugere o potencial do autor para ser aprofundado não só no mercado editorial como em espaços acadêmicos também.
Caleb Azumah Nelson é um nome que veio para se firmar na literatura britânica e Mar Aberto é um livro que merece ser lido o quanto antes. Todos os elogios fazem jus à obra que Nelson criou. No Brasil, o romance recebeu tradução de Camila von Holdefer, pelo selo da Morro Branco. O autor publicou o seu segundo romance Small Worlds em 2023, ainda sem tradução para os brasileiros. Não perca a sensação do momento literário!