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Poéticas negativas do Sul Global: Gótico e Distopia em Las indignasLeitura em 29 minutos

Capa do Post sobre "Las indignas", com a capa do livro de Bazterrica

Convergências entre Gótico e Distopia no Sul Global:

A sociedade contemporânea é marcada por múltiplos colapsos. O avanço das crises ecológicas, o aprofundamento das desigualdades econômicas, a intensificação das tecnologias de controle e as violências herdadas pela colonialidade e renovadas pelo neocolonialismo moldam um presente distópico que, cada vez mais, se expressa por meio da literatura, da cultura e das artes. Nesse cenário, narrativas produzidas no Sul Global têm explorado os limites entre gêneros para dar forma a poéticas negativas, com uma estética que se constrói a partir das ruínas, da inquietação e da crítica à ordem vigente. 

Nessa perspectiva, o presente texto propõe uma leitura do romance Las indignas (2023), da escritora argentina Agustina Bazterrica, como narrativa que apresenta convergências entre o Gótico e a Distopia em uma chave de leitura latino-americana. Para isso, parto da ideia de que a Ficção Especulativa contemporânea do Sul Global, herdeira da tradição do Realismo Mágico – principalmente na América Latina -, se transforma, no Antropoceno, em uma linguagem do desespero, da resistência e da denúncia. Assim, ao invés de apostar em futuros redentores, essas narrativas colocam em cena corpos marcados pela exclusão, territórios em decomposição e instituições corroídas pela barbárie – e, com isso, aproximam-se das atmosferas sombrias do Gótico e das críticas estruturais da Distopia.

Jeffrey Weinstock, em Gothic Things: Dark Enchantment and Anthropocene Anxiety (2023), propõe o Antropoceno como uma metanarrativa gótica, afirmando que “em sua essência, o Gótico trata do que acontece quando as coisas adquirem uma animacidade estranha, do que acontece quando os humanos são contados como coisas entre outras coisas, e de como o humano se relaciona com o não-humano” (Weinstock, 2023, p. 13, tradução minha). A partir dessa perspectiva, o Gótico pode ser entendido como uma sensibilidade crítica que ressurge diante das ansiedades do presente. Longe de se restringir a um gênero literário histórico, manifesta-se como uma forma de pensar o colapso ambiental, o medo do outro, o descontrole tecnológico e a ruína da subjetividade racional. Portanto, no cerne do Gótico está algo que o aproxima da Distopia, que é o problema da transgressão: da ciência que ultrapassa os limites éticos, das estruturas sociais que se deformam, dos corpos que escapam da norma.

Essa transgressão indica uma permanência do mito de Prometeu e pode ser pensada a partir dessa narrativa mítica – fundamental para a tradição ocidental e eixo de ligação entre o Gótico, a Ficção Científica e a Distopia. Nesse sentido, Frankenstein (1818), de Mary Shelley, é representativa do Prometeu na Modernidade, por meio de uma obra fundamental para a Ficção Científica e o Gótico. No entanto, na literatura contemporânea o mito continua reverberando em narrativas como Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968), de Philip K. Dick, Dança da Morte (1978), de Stephen King, Estação Onze (2014), de Emily St. John Mandel, e tantas outras que apresentam a permanência do mito, seja pela desmedida da ciência, a figura de um Prometeu trazendo o fogo do conhecimento para a sociedade ou outro elemento da narrativa mítica. 

Mais recentemente, tal transgressão também pode ser identificada nas ficções latino-americanas que colocam em questão a desumanização radical operada por sistemas necropolíticos, coloniais e extrativistas, como Las indignas (2023). No entanto, o romance de Bazterrica não é um caso isolado. Outras obras recentes do Sul Global como Distância de Resgate (2014), da argentina Samanta Schweblin, Las Voladoras (2020), da equatoriana Mónica Ojeda, Corpos Secos (2020), dos brasileiros Luisa Geisler, Natalia Borges Polesso, Samir Machado de Machado e Marcelo Ferroni, O deus das avencas (2021), do brasileiro Daniel Galera, Gosma Rosa (2022), da uruguaia Fernanda Trías, o filme O mal que nos habita (2023), do diretor argentino Demián Rugna, a série Eternauta (2025), baseada na HQ produzida pelos argentinos Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López, entre tantas outras, constroem imaginários em que, em diferentes medidas, o corpo feminino, o corpo coletivo, o corpo-território e o corpo-híbrido são violentados, deslocados e, ao mesmo tempo, reconfigurados como espaços de resistência e denúncia. O que essas obras compartilham é uma poética negativa: não no sentido de ausência de estética, mas de uma estética construída pela recusa. Recusa da ordem dominante, das promessas do progresso e da racionalidade iluminista que, no Sul Global, sempre se impuseram como violência. Las indignas articula essa recusa ao criar um mundo que associa Distopia e Gótico, em que os limites do que seria considerado uma sociedade normal foram rompidos e se encontram tão ou mais borrados quanto na sociedade contemporânea.

Ao longo deste texto, portanto, analiso como Bazterrica mobiliza elementos do Gótico (corpos degradados, instituições corrompidas, espaços de horror – entre outros) para construir uma Distopia que critica o presente e denuncia a permanência das estruturas coloniais e patriarcais no coração da América Latina no Antropoceno. Para desenvolver a análise proposta e configurar uma ideia de poética negativa, mobilizo uma base teórica que articula os conceitos de Ficção Especulativa e Distopia, Distopias pós-apocalípticas, Sul Global, Antropoceno e Gótico. As Distopias serão abordadas aqui a partir de suas manifestações contemporâneas, especialmente aquelas que emergem em contextos marcados por desigualdades estruturais. Como discuti em A jornada do anti-herói no romance distópico contemporâneo ou O Prometeu pós-moderno (2024), as Distopias podem ser entendidas como narrativas que imaginam futuros de colapso a partir da extrapolação de tendências presentes, situadas no futuro ou em um presente alternativo, expondo falhas estruturais da sociedade. No entanto, quando a realidade se aproxima da Ficção Distópica – como ocorre em muitas regiões do Sul Global -, esse conceito exige uma reflexão mais complexa. Para populações historicamente marginalizadas, como os povos indígenas da América Latina, a Distopia não é mais apenas uma projeção futura, mas uma experiência concreta do passado e que em muitas medidas segue se desenvolvendo no presente. Assim, entendo a Distopia não apenas como uma advertência, mas como uma narrativa que evidencia os efeitos do capitalismo e da colonialidade sobre a sociedade contemporânea, expondo tanto suas falhas estruturais quanto os impasses enfrentados na tentativa de imaginar alternativas viáveis a esse sistema.

A articulação entre Ficção Especulativa e Distopia constitui um eixo fundamental desta análise. Como categoria abrangente, a Ficção Especulativa engloba diversos subgêneros – entre eles, a Distopia, a Ficção Científica e o Fantástico -, criando universos e realidades alternativos. As Distopias, nesse conjunto, aparecem como um subgênero que dialoga tanto com a tradição utópica quanto com a Ficção Científica, valendo-se da especulação para potencializar debates sobre desigualdades sociais, políticas e ambientais. No caso do Sul Global – aqui compreendido a partir de uma abordagem pós-colonial e próximo ao conceito de sul epistemológico formulado por Boaventura de Sousa Santos em O fim do império cognitivo (2018), que o entende como um espaço de resistência e subalternidade frente às formas dominantes de saber e poder -, essa dimensão especulativa atua simultaneamente como crítica e como ferramenta de insurgência: “conhecimentos nascidos em lutas contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado” (Santos, 2019, p. 17). Assim, as projeções de futuro nessas narrativas denunciam injustiças históricas e propõem fissuras no presente, abrindo possibilidades para a imaginação de alternativas transformadoras.

Na pesquisa acadêmica sobre Distopia no Brasil, a obra Dystopia: A Natural History (2016), de Gregory Claeys, tem exercido forte influência, mas sua abordagem exige uma leitura crítica, especialmente considerando uma perspectiva situada no Sul Global. Claeys propõe uma separação entre Distopias e Ficção Científica, além de sugerir que narrativas pós-apocalípticas não se enquadram como distópicas, por supostamente lidarem com cenários de recomeço, em que há a possibilidade de superação dos problemas em uma nova sociedade. Essa interpretação, no entanto, desconsidera que, em muitos contextos, o colapso não representa uma libertação, mas sim a intensificação das desigualdades já existentes. Nessas narrativas, o apocalipse não é um acidente ou uma metáfora abstrata, mas a expressão radical das contradições do sistema capitalista, ecológica e socialmente insustentável. Longe de constituírem uma tábula rasa, os mundos devastados das Distopias pós-apocalípticas, como em No país das últimas coisas (1987), de Paul Auster, Oryx e Crake (2003), de Margaret Atwood, e A estrada (2006), de Cormac McCarthy, – entre tantas outras – denunciam, com crueza, as consequências extremas de decisões políticas, sociais e econômicas tomadas no presente. A figura do sobrevivente, marcada por angústia, desencanto e perda de vínculos éticos, não sinaliza um novo começo, mas evidencia o esvaziamento de qualquer horizonte coletivo. Nesse sentido, rejeitar a dimensão distópica dessas narrativas é ignorar que elas revelam, com potência especulativa, a continuidade da opressão em um estágio pós-colapso. Essa crítica ganha ainda mais força quando se considera o Sul Global, em que o colapso social e ambiental não é uma hipótese distante, mas uma realidade cotidiana. Reconhecer as Distopias pós-apocalípticas como parte integrante do gênero distópico é, portanto, fundamental para ampliar e complexificar os estudos sobre futuros imaginados, especialmente em contextos marcados pela desigualdade estrutural.

O Antropoceno é abordado, neste contexto, não só como uma era geológica – ainda não reconhecida oficialmente – em que a ação humana deixou marcas profundas no meio ambiente, acelerando a degradação do planeta, mas também como uma chave crítica que evidencia os impactos devastadores da atuação humana, marcada sobretudo por lógicas capitalistas e coloniais, sobre a Terra e suas formas de vida. Essa leitura estabelece um vínculo direto com a noção de Sul Global, uma vez que é justamente nesses territórios que se concentram os efeitos mais severos do capitalismo tardio. Nesse cenário de desigualdade ambiental e social, a literatura contemporânea se apresenta como um espaço privilegiado para o surgimento de narrativas que tensionam tais questões, aproximando, de maneira significativa, os registros distópicos e góticos.

Sobre o Gótico, o conceito aqui é considerado como uma sensibilidade estética que, ao lidar com o excesso, a ruína, o estranho e o monstruoso, permite tensionar os limites do humano e dar forma às inquietações que atravessam o presente distópico. Sua origem remonta ao século XVIII, com a publicação de O Castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, obra que inaugura o romance Gótico ao introduzir o que o próprio autor chamou de “maquinário gótico”. Entre os elementos fundadores dessa estética, destaca-se o locus horribilis – espaços sombrios, degradados e opressivos, como castelos em ruínas, passagens subterrâneas e paisagens claustrofóbicas, que ecoam o medo e a incerteza que permeiam as tramas. Soma-se a isso a presença persistente do passado , que retorna sob a forma de traumas, maldições ou fantasmas, instaurando uma atmosfera de assombro contínuo. Por fim, a figura do monstro – literal ou simbólica – que encarna o desvio das normas, o medo do outro e a ameaça à ordem estabelecida. Esses traços estruturais do Gótico clássico são reconfigurados na literatura contemporânea, em que os espaços de ruína e os corpos monstruosos ganham novas camadas de sentido, refletindo ansiedades ligadas a desigualdades históricas, crises ambientais e distorções do presente, como Las indignas .

Tratar do Gótico também é importante para consolidar um cenário em que a crítica literária brasileira reavalie a presença do gênero na tradição da história da literatura do Brasil, reconhecendo as formas pelas quais o Gótico foi historicamente silenciado ou marginalizado por não se alinhar com o ideal de uma literatura de cor local, critério estético que, desde o Romantismo, orientou os projetos de construção da identidade nacional. Como argumenta Júlio França, em “O sequestro do Gótico no Brasil” (2017), o apagamento desse imaginário sombrio e dissonante revela um gesto de exclusão que acompanha o próprio processo de canonização literária:

Dentre os muitos fatores que ajudam a explicar o que estamos chamando de sequestro do Gótico no Brasil, sobressai a perspectiva assumida pela crítica de que a literatura gótica possuiria temas e ambientações estranhos à cultura e ao território brasileiro – e, por conseguinte, seu influxo sobre a literatura nacional seria, quando muito, contingencial. A crítica literária da primeira metade do XIX contribuiu de modo decisivo para esse entendimento, baseando-se na suposição de haver uma relação necessária entre a literatura, a geografia e o espírito de uma nação. Conferiu-se, desse modo, à “cor local” a condição de critério essencial para a valoração estética da literatura brasileira (França, 2017, ps. 111-112). 

Nesse sentido, um exemplo expressivo é Noite na Taverna (1855), de Álvares de Azevedo, obra que, embora tenha alcançado grande popularidade entre leitores desde o século XIX até hoje, foi por muito tempo subestimada pela crítica por sua estética voltada ao grotesco, ao trágico e ao fantástico e – principalmente – por se vincular ao Gótico. Tal desprestígio crítico não é exclusivo do Brasil: em outros países latino-americanos, o Gótico também foi frequentemente mal compreendido ou absorvido em categorias como o Realismo Mágico, Fantástico e Insólito, ocultando suas especificidades e invisibilizando uma tradição que os estudos literários ainda precisa recuperar. Assim, uma reaproximação entre o Gótico e as formas narrativas do Sul Global na literatura contemporânea ajuda a revelar a existência dessa tradição gótica latino-americana, marcada por ruínas coloniais, corpos marginalizados e memórias assombradas, que afirma sua potência crítica e estética.

O presente texto, portanto, parte de eixos conceituais específicos: a Ficção Especulativa, a Distopia, o Sul Global, o Antropoceno e o Gótico, que articulam um arcabouço teórico de poéticas negativas com as quais leio Las indignas como uma narrativa que, ao mesmo tempo em que denuncia as estruturas de opressão enraizadas no presente, também figura possíveis futuros e formula estratégias simbólicas de resistência. Ao conjugar crítica social, fabulação radical e sensibilidade estética, a obra insere-se no campo da Ficção Especulativa como uma proposta de imaginação contra-hegemônica, capaz de tensionar os limites do real e convocar outras formas de pensar, sentir e habitar o mundo, a partir do Sul Global no Antropoceno, com uma aproximação entre Distopia e Gótico que reverbera os horrores e a devastação ambiental da sociedade contemporânea.

O horror Gótico na Distopia pós-apocalíptica Las indignas, de Agustina Bazterrica:

Agustina Bazterrica, em Las indignas (2023), mobiliza uma intersecção entre elementos do horror Gótico e da devastação da Distopia pós-apocalíptica. O romance mobiliza convenções desses dois gêneros para construir uma narrativa de denúncia marcada por violência de gênero, degradação ambiental e colapso civilizatório no Sul Global, por meio de uma trama que acompanha os registros escritos por uma narradora sem nome que documenta, de forma clandestina, a rotina de horrores vivida na Casa da Irmandade Sagrada, um espaço que inicialmente funciona como abrigo para mulheres em meio ao colapso social, mas que posteriormente revela sua natureza repressiva. Em um mundo devastado por conflitos armados em torno da escassez de água e pela destruição ambiental, os resquícios da civilização sobrevivem em condições de extremo desamparo. Nesse contexto, a Casa – liderada pela figura autoritária da Irmã Superior e subordinada à vontade de um “Ele” onipresente e invisível – funciona como uma seita religiosa que submete as mulheres a rituais de fé baseados em tortura, mutilação e silenciamento. Apesar das tentativas constantes de apagamento de sua subjetividade, a narradora persiste em sua escrita, criando um testemunho que desafia o regime de violência instaurado. Sua voz, embora contida nos limites do terror, inscreve-se na linhagem das narrativas subalternas que fazem da palavra um gesto de resistência, como O conto da aia (1985), de Margaret Atwood. Escrever torna-se, portanto, um ato político e existencial: uma forma de manter viva a memória e a identidade diante da desumanização absoluta.

Las indignas apresenta uma relação estabelecida entre a narradora e uma gata – Circe – que ilustra uma forma de coexistência que se distancia dos paradigmas de dominação e exploração, predominantes tanto nas relações inter-humanas quanto nas interespécies. Após o colapso civilizacional, surge entre ambas uma aliança pautada no cuidado mútuo e na solidariedade cotidiana, em uma prática que se impõe como antítese à lógica de violência que estrutura o mundo à sua volta. Essa parceria manifesta-se na proteção recíproca e na partilha de cuidados que permite a sobrevivência. A narradora demonstra um envolvimento sensível com o ambiente, próximo ao gesto ético de “prestar atenção”, proposto por Donna Haraway em Ficar com o problema: fazer parentes no chthuluceno (2023). O vínculo com Circe se constrói de maneira delicada, mediado por pequenos rituais de confiança e reciprocidade. Em uma cena simbólica, a gata oferece à narradora um pedaço de pombo, num gesto que sela um pacto de sobrevivência e partilha em meio à escassez. Pouco depois, a confiança se solidifica em um momento terno de reconhecimento mútuo:

Primeiro, ela cheirou a água e depois, enquanto a bebia, não parava de me olhar com cautela, mas já sabíamos que poderíamos confiar um no outro. Ninguém alimenta quem vai matar. Algumas das estrelas que viviam nas constelações de seus olhos começaram a brilhar. Adormecemos perto do fogo (Bazterrica, 2023, p. 116, tradução minha). 

Nesse gesto de alimentar o outro, rompe-se simbolicamente com a lógica predatória circundante, instaurando-se um espaço de cuidado e confiança. Ainda assim, essa experiência de solidariedade ocorre em um mundo devastado / locus horribilis, como revela a imagem de peixes deformados por contaminação: “Na água do riacho da loucura, encontramos peixes com buracos no lugar dos olhos” (Bazterrica, 2023, p. 49, tradução minha). 

A destruição ambiental configura o pano de fundo sombrio contra o qual se desenham essas alianças frágeis e potentes. Essa ética da interdependência se estende também à relação da narradora com a personagem Lucía. Em um contexto de controle absoluto, ambas constroem um refúgio afetivo clandestino, onde podem compartilhar confidências e intimidade. O cuidado, tanto com Circe quanto com Lucía, emerge como forma de resistência. Em meio à destruição e ao desamparo, gestos de afeto, partilha e cuidado tornam-se insurgências vitais contra o colapso. No contexto do Sul Global de horror Gótico e Distopia pós-apocalíptica, amar é um gesto revolucionário.

Ao ambientar essas relações em um cenário de devastação, Bazterrica inscreve sua narrativa nas discussões críticas do Antropoceno, termo que tem sido problematizado como Capitaloceno, Chthuluceno ou até Plantationoceno por autoras como Donna Haraway (2023), evidenciando as formas específicas de exploração, colonialismo e desigualdade que moldaram a crise ambiental atual. Nesse sentido, o romance argentino mobiliza uma sensibilidade enraizada no Sul Global, em que os efeitos do colapso ecológico não são meramente especulativos e configuram uma experiência histórica contínua. A imagem dos “peixes com buracos no lugar dos olhos” ecoa os corpos explorados e contaminados pelas economias extrativistas, denunciando a face mais brutal do Antropoceno nos territórios periféricos. As alianças interespécies e os laços afetivos, então, não surgem como utopias reconfortantes, mas como práticas insurgentes frente à devastação – modos de “ficar com o problema” e inventar formas de vida possíveis entre os escombros.

Em Las indignas, Bazterrica mobiliza esse contexto de devastação ecológica e alianças insurgentes – marca do Antropoceno visto a partir do Sul Global – com a maquinaria gótica clássica, tal como formulada por Horace Walpole em O Castelo de Otranto, ressignificando seus elementos fundadores no interior de uma Distopia pós-apocalíptica contemporânea. O primeiro deles, a figura monstruosa, encontra sua expressão máxima na presença do personagem “Ele”, entidade invisível e onipotente que rege com violência simbólica e concreta a lógica perversa do espaço. Embora inicialmente não apareça diretamente, “Ele” está em toda parte, funcionando como uma espécie de figura totêmica do mal em um panóptico de Foucault, que impõe o medo e a obediência, representando o poder patriarcal e teocrático levado ao extremo. 

O segundo elemento, o fantasma do passado, perpassa a narrativa principalmente por meio das lembranças fragmentadas da narradora – especialmente as memórias da mãe, da infância e da gata Circe -, que surgem como fantasmas íntimos, evocando a dor e o trauma de tempos anteriores. Essas aparições funcionam como espectros persistentes que assombram sua subjetividade e resistem ao apagamento imposto pela Casa, além de revelarem o impacto do apocalipse, que levou a um colapso da sociedade:

Era a época em que eu ainda tinha uma mãe que me ensinava a ler e escrever; que tratava os livros com cuidado porque dizia: são maravilhas contidas em papel, chamava-os de nossos amigos; […] Um mundo com falta de água, sem escola, sem luz. Um mundo com inundações, chuvas de oito meses caindo em menos de uma hora, ficando, por dias, no telhado de nossa casa até que a água baixasse, nosso choro ao ver nossos amigos boiando na água imunda: Lispector, Morrison, Ocampo, Saer, Woolf, Duras, O’Connor, com as páginas encharcadas, inutilizáveis, mas as palavras estavam dentro de mim, as palavras que minha mãe me instou a amar […] os calores extremos, peixes cozidos vivos pelo mar fervente, peixes morrendo de sede nos rios, as secas, as guerras pela água, a escassez, a fome, a sede, o colapso, minha mãe morta na mesma cozinha em que havia dançado alguns anos antes (Bazterrica, 2023, ps. 69-70, tradução minha).

Já o locus horribilis manifesta-se de diversas formas, como a Casa da Irmandade Sagrada, espaço enclausurado e opressivo que, sob a fachada de um santuário, revela-se um cenário de controle absoluto, tortura e terror físico e psicológico. A arquitetura fechada da Casa, seus corredores vigiados, as celas onde as mulheres dormem e o silêncio e mutilações impostas por seus rituais religiosos contribuem para instaurar uma atmosfera de claustrofobia e ameaça constante. Além disso, o antigo bosque, agora um ambiente aterrador e devastado, constitui outra manifestação do locus horribilis, ressignificado pela lógica do pós-apocalipse. Inclusive chama a atenção que, ao longo da narrativa, a narradora risca a palavra bosque de suas anotações, como um gesto simbólico de recusa ou negação daquilo que já não existe – um espaço outrora natural, agora marcado pelo trauma e reduzido a uma paisagem inóspita. Esse gesto revela o colapso ecológico e o caráter espectral da paisagem, que deixa de ser um lugar de refúgio ou contemplação para tornar-se um cenário monstruoso, disforme e hostil à vida. Assim, o ambiente externo replica e amplifica o terror instaurado no interior da Casa nas subjetividades, conformando uma espacialidade marcada pela destruição, vigilância e desumanização. Esses três elementos – o espaço aterrador, os espectros do passado e o monstro que encarna a autoridade – articulam a maquinaria gótica em chave distópica, contribuindo para a criação de um universo narrativo de horror, devastação e resistência.

Nesse cenário, a figura da bruxa ou feiticeira desponta como um ponto de convergência entre a tradição gótica europeia e as reconfigurações contemporâneas desse imaginário no Sul Global. Em Las indignas, a narradora e Lucía – sua amada – se aproximam desse arquétipo ao encarnarem saberes alternativos, práticas de cuidado e uma relação sensível com o ambiente, atributos que remetem a um tipo de poder feminino ancestral, frequentemente marginalizado. Essa presença se inscreve na linhagem do Gótico por meio da corporalidade ameaçada: a mulher vigiada, controlada, passível de punição. No entanto, também a transcende ao investir essa corporalidade de agência e de práticas insurgentes. A passagem em que Lourdes, personagem que havia espalhado o boato de que Lucía era bruxa, depois dança nua no jardim sob efeito de cogumelos, utilizados por Lucía a partir do conhecimento da narradora sobre a natureza, verbaliza isso: “[…] bruxa, bruxa da noite, bruxa da lua” (Bazterrica, 2023, p. 159, tradução minha). 

A bruxa ou feiticeira, aqui, é tanto um resíduo espectral do passado quanto uma promessa de futuro: figura liminar que atravessa tempos e mundos, mediando o contato com o não humano e desestabilizando os binarismos civilização/barbárie, humano/animal, natureza/cultura. Ao articular uma ética do cuidado em meio ao colapso, esse arquétipo sintetiza elementos centrais do Gótico, como a temporalidade não linear, a presença de espectros e a paisagem em ruínas, evocando também saberes e práticas das cosmovisões latino-americanas. Assim, a bruxa torna-se emblema de um Gótico feminista do Sul e vários elementos apontam para a presença desse arquétipo ao longo do romance. Por exemplo, a personagem da narradora estabelece um vínculo com uma gata – e bruxas normalmente têm um animal familiar como um gato ou corvo -, chamada Circe, que tem o mesmo nome da feiticeira Circe, da Odisseia: “Circe, minha Circe. Minha maga” (Bazterrica, 2023, p. 107, tradução minha). Além disso, ela tem conhecimento sobre cogumelos comestíveis e a natureza, o que na idade média já seria o suficiente para a condenar a uma fogueira. A protagonista anônima tem, ainda, um envolvimento com Lucía, personagem que em determinada passagem da narrativa é descrita como uma encantadora de insetos e aparece coberta por um manto de vespas, em um forte conteúdo imagético associado à feiticeiras: “As vespas, negras e amarelas, a rodeavam, mas nenhuma iria atacá-la; voavam no mesmo lugar como se estivessem esperando ordens” (Bazterrica, 2023, p. 103, tradução minha). Em outro trecho, Lucía não se queima após caminhar sobre brasas e é vista como “[…] imune ao fogo” (Bazterrica, 2023, p. 102, tradução minha), o que reforça a aproximação ao arquétipo da feiticeira.

No Gótico europeu, a bruxa aparece frequentemente como uma figura de ameaça ou transgressão, associada ao oculto, à desordem e ao feminino monstruoso. No entanto, na literatura latino-americana contemporânea, essa figura tem sido resgatada como símbolo de resistência e ancestralidade, especialmente por autoras que escrevem a partir de perspectivas feministas, decoloniais e ecológicas. Essa releitura aproxima Las indignas de outras obras que também se inscrevem na tradição do Gótico latino-americano feminista, ainda que nem sempre tenham claramente a figura da bruxa ou feiticeira associadas às suas protagonistas. Em Distância de Resgate (2014), da argentina Samanta Schweblin, o horror ambiental emerge como força perturbadora, revelando os perigos invisíveis que cercam o vínculo materno em um mundo contaminado. Em Gosma Rosa (2022), da uruguaia Fernanda Trías, a narradora tenta sobreviver em uma cidade portuária devastada por um incidente ambiental e uma doença que se espalha rapidamente. Já Voladoras (2023), da equatoriana Mónica Ojeda, apresenta contos que exploram a violência e a subjetividade feminina por meio de um universo Fantástico, Gótico e de violências distópicas da sociedade contemporânea, com elementos da cultura andina. Assim, Bazterrica se inscreve e colabora na consolidação de uma nova tradição de escritoras que utilizam o Gótico para confrontar o legado colonial, patriarcal e ecocida na América Latina, de um ponto de vista feminino, transformando o que antes era considerado monstruoso em potência vital e insurgente.

Considerações finais:

O presente artigo propõe que no contexto do Sul Global a estética distópica frequentemente deixa de ser uma projeção futurista para se tornar uma representação das violências já vividas e naturalizadas por populações historicamente marginalizadas. Assim, ao invés de imaginar um futuro hipotético de colapso, essas narrativas partem de um presente marcado por desigualdades estruturais, degradação ambiental, necropolítica e heranças coloniais ainda ativas. O pós-apocalipse, nesse sentido, não é um acontecimento extraordinário, mas a continuidade de processos de destruição que se intensificam. Essa perspectiva ressignifica a tradição distópica ao inseri-la em realidades concretas e vividas, em que o horror não é uma ruptura com a normalidade, é a intensificação de um cotidiano já assombrado. É nesse ponto que a Distopia e o Gótico se aliam: ambos revelam o que o discurso dominante tenta apagar: os fantasmas de um passado colonial, os corpos abjetos e os espaços arruinados. A pesquisadora Erika Natalia Nicolau, no artigo “Las Indignas de Agustina Bazterrica y el cuerpo de la mujer como territorio de resistencia: la hoguera que nunca deja de arder” (2024), corrobora com essa visão, aproximando sua análise do romance de Bazterrica com a ideia da caça às bruxas e também indicando a presença do distópico na sociedade contemporânea:

A mulher que se submete ao controle masculino ou pode ser controlada não recebe castigo direto, embora sua mera existência como mulher implique a possibilidade de ser considerada propensa ao pecado. No entanto, aquela mulher que demonstra sinais de rebeldia, que desafia o controle e se recusa a ser usada, aquela que se recusa a ser cegada, calada ou ensurdecida, é identificada como uma bruxa, uma descendente de Lilith, e é condenada à fogueira. 

Essa dicotomia levanta questionamentos sobre a posição das mulheres no presente. Se o passado e o futuro estão unidos por um fio de sangue, onde nos encontramos no presente? Se as experiências vividas por muitas mulheres continuam a se manifestar no futuro, isso simplesmente implica que essas realidades estão sendo gestadas no presente (Nicolau, 2024, p. 86, tradução minha)

Essa poética negativa, fusão entre Distopia e Gótico, torna-se particularmente potente em narrativas como Las indignas, nas quais a catástrofe ecológica e o controle biopolítico se entrelaçam com atmosferas de ruína, assombração e corpos ameaçados. O Sul Global, assim, não é representado como espaço de redenção, recomeço ou esperança tecnológica, mas como o epicentro de uma crise que é ao mesmo tempo social, ambiental e espiritual, com raízes históricas. A linguagem do Gótico, com sua obsessão por espectros, labirintos, cadáveres e opressões intergeracionais, permite figurar essa experiência de modo sensorial, afetivo e político. O medo, aqui, é uma chave para desvelar o horror estrutural que organiza o mundo contemporâneo – uma ferramenta de denúncia e, paradoxalmente, de imaginação insurgente – verbalizada pela protagonista de Las indignas em seu relato.Assim, ao articular Antropoceno, Distopia e Gótico em Las indignas, Agustina Bazterrica participa de um movimento mais amplo de reconfiguração das poéticas negativas no contexto latino-americano. Essas poéticas operam como forma de evocar o sofrimento e o colapso e revelam camadas da violência histórica que continuam estruturando o presente no Sul Global. A presença constante de espectros, ruínas e corpos ameaçados aponta para uma América Latina assombrada por seu passado colonial – um passado que não cessa de retornar sob novas formas de dominação e exploração. Nesse sentido, o Gótico se configura como uma estética herdada da tradição europeia, mas que se reinscreve como linguagem crítica, capaz de figurar o trauma histórico e a resistência afetiva nos territórios do Sul Global. A literatura, ao mobilizar essas imagens sombrias, transforma o horror em ferramenta de leitura do mundo e em espaço de reimaginação política. Como vozes de feiticeiras que afirmam sua identidade mesmo diante dos horrores das fogueiras que enfrentam.

 

Referências:

Bazterrica, Agustina. Las indignas. Alfaguara, 2023.

França, Julio. O sequestro do Gótico no Brasil. In: FRANÇA, Julio; COLUCCI, Luciana. (Org.). As nuances do Gótico: do setecentos à atualidade. Rio de Janeiro: Bonecker, 2017, p. 111-124.

Nicolau, Erika Natalia. Las Indignas de Agustina Bazterrica y el cuerpo de la mujer como territorio de resistencia: la hoguera que nunca deja de arder in Revista Catedral Tomada, Vol. 12 Núm. 23 (2024): Dossier: Narrativas pedagógicas y violencia de género en América Latina: aproximaciones teóricas y analíticas en el aula del siglo XXI. Disponível em: https://catedraltomada.pitt.edu/ojs/catedraltomada/article/view/686. Acesso em: 03 mai. 2025.

Santos, Boaventura de Souza. O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.Weinstock, Jeffrey. Gothic Things: Dark Enchantment and Anthropocene Anxiety. New York: Fordham University Press, 2023.

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Professora substituta na UERN

Paula Pope Ramos é doutora em Literaturas de Língua Inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/CAPES. Sua pesquisa se debruça sobre a figuração da mulher vingativa na poética gótica do século XIX inglês, perpassando a ligação entre mulher e monstro, monstruosidade e gênero. No mestrado (UERJ, 2021), pesquisou a dessexualização da personagem Victoria di Loredani no romance gótico Zofloya, or the Moor (Charlotte Dacre, 1806). É licenciada em Letras/Inglês (UFRRJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2022-2023). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, com especial interesse na poética gótica e suas reflexões sobre gênero, corpo feminino, monstrousidade e sexualidade.

Luiz Spinelli

Doutor em Letras, História da Literatura, pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Professor de Língua Portuguesa e Literatura da Escola SESI de Ensino Médio Eraldo Giacobbe. Guitarrista da banda Josephines.

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