Philip Pullman lidera uma lista de 33 escritores que assinaram uma carta endereçada a Greg Clark, Secretário de Estado para os Negócios, Energia e Estratégia Industrial no Reino Unido. Eles exigem medidas severas contra a pirataria. “Trata-se de uma ofensa contra a justiça moral”, Pullman declarou. O vencedor do Nobel Kazuo Ishiguro e a premiada Margaret Drabble também assinaram a carta.
Pullman, o aclamado autor da trilogia His Dark Materials, é presidente da Society of Authors, instituição que elaborou uma carta apoiada por dezenas de escritores e enviada ao Secretário de Estado para Negócios do Reino Unido, Greg Clark. Autoras como Joanna Trollope, Malorie Blackman e Wendy Cope e o historiador Antony Beevor defendem que os downloads ilegais de obras literárias estão se tornando cada vez mais comuns. Eles se basearam numa pesquisa realizada pelo Intellectual Property Office que indica que um em cada seis ebooks lidos online no Reino Unido é pirateado.
“A pirataria online de livros, canções e outras expressões do espírito humano precisa ser realmente compreendida: é uma ofensa à justiça moral”, disse Pullman. “É exatamente o oposto da liberdade de expressão, porque ela atua no sentido de impedir que aqueles que criam beleza, conhecimento, consolação ou prazer mantenham mesmo uma subsistência modesta a partir dos seus esforços.”
O escritor prosseguiu: “É um dever fundamental de qualquer governo decente defender os direitos daqueles que ajudam a criar aquilo que é a civilização. A lei dos direitos autorais é um dos bastiões da vida civilizada, mas a chuva ácida da pirataria online está dissolvendo lentamente algo que pensávamos estar firmemente estabelecido.”
Na carta a Clark, os escritores advertiram o Secretário que o crescimento da pirataria de livros pode “dificultar ainda mais a subsistência de escritores a partir do seu trabalho”. Atualmente, a renda média de um autor do Reino Unido é de £ 10.500, uma queda de 42% em comparação a 2005.
“Isso prejudicará escritores e leitores – se os autores não puderem mais escrever, a oferta de novos textos inevitavelmente acabará”, afirma a carta. “A grande herança literária do Reino Unido sempre foi sustentada por um robusto regime de direitos autorais. Infelizmente, este regime não é respeitado pelos piratas da internet, que infringem flagrantemente a lei de direitos autorais copiando nossos livros e oferecendo-os para download. Como Secretário de Estado cujo departamento é responsável pelos direitos autorais e pela pirataria, exigimos que tome medidas contra a praga da pirataria de livros na internet”.
Joanna Trollope acrescentou: “O que essas pessoas que estão acostumadas a obter música ou livros de graça não percebem é que a criatividade vai acabar se não houver recompensa para ela. Não haverá músicas novas. Nenhuma escrita nova. Nenhuma nova ideia ou expressão de ideias. E a pirataria só ajuda a acelerar esse dia triste”.
Em artigo publicado ontem (8 de abril de 2019) no The Guardian, consta a informação de que os autores ainda aguardam um retorno do Secretário.
Pirataria Literária e Direitos Autorais
Embora o cenário sombrio delineado pelos autores signatários da carta enviada a Clark reflita ansiedades que têm base em reivindicações justas (eles são, afinal, detentores dos direitos autorais de suas próprias obras), alguns equívocos precisam ser apontados.
Primeiramente, as noções de civilização ocidental e de direitos autorais não estão tão historicamente entrelaçadas quanto Philip Pullman defende. A legislação britânica atual relativa a copyright foi promulgada em 1989 e suas origens remontam ao Estatuto da Rainha Ana de 1710. Ou seja, a primeira norma legal que reconheceu o que entendemos como copyright na legislação britânica surgiu no século XVIII. Na época, os direitos sobre determinada obra expiravam após 14 anos, podendo ser renovados uma só vez.
Ao longo dos anos, a norma foi substituída por outras com prazos e durações diversas. Após a revolução digital, grandes produtores de conteúdo vêm gradativamente se ajustando às características e peculiaridades das novas mídias. Trollope falou sobre o downloads ilegais no território musical, fenômeno que nos conduziu à ascensão das plataformas de streaming como uma resposta às formas contemporâneas de consumo de conteúdo e uma tentativa de erradicar a pirataria. Embora haja indicadores de que a pirataria persiste mesmo na configuração atual, estudos apontam que é a profusão de plataformas, cada qual com uma assinatura fixa e conteúdo exclusivo, que segue dificultando o acesso de consumidores e instigando a pirataria. Este panorama é observado principalmente na indústria do streaming audiovisual, com plataformas como Netflix, Amazon, HBO, Hulu oferecendo conteúdo exclusivo em seu catálogo. Na indústria musical, a transição parece ter sido mais efetiva, com o Spotify contando com um catálogo mais amplo. Taryn Hamilton do Vocus Group explicou que:
“A pesquisa [citada acima] confirma algo que muitos especialistas da internet já acreditavam instintivamente ser a realidade: a pirataria não é movida por foras-da-lei. Ela é movida por pessoas que não conseguem custear fácil ou sustentavelmente o conteúdo que querem acessar.”
Outro exemplo de flexibilização e adaptação na reivindicação de direitos autorais se dá pelo hábito de fãs publicarem na internet vídeos dos shows a que comparecem. No cenário atual, é raro que gravadoras exijam a remoção de vídeos gravados ao vivo em shows dos artistas que representam, prática corriqueira nos primeiros anos do Youtube. Considerando o alto potencial de lucro oferecido pelas visualizações que esse tipo de conteúdo atrai, as grandes empresas preferem monetizar os vídeos em questão, gerando receita extra com publicidade.
Outro ponto levantado pelos autores que gera uma discussão interessante é o fato de que são justamente best sellers as espécies de obras mais pirateadas no contexto abordado na carta a Clark. Embora a Society of Authors atue como uma espécie de sindicato que representa autores “em todos os estágios de suas carreiras”, os signatários que receberam destaque na matéria do The Guardian são majoritariamente autores premiados e internacionalmente conhecidos. São escritores, justamente, de livros que ocupam o topo das listas dos mais vendidos por semanas a fio. Essa condição de forma alguma reduz ou desmerece o argumento estabelecido na carta e é nobre que eles defendam os interesses de colegas menos favorecidos ou em início de carreira.
Ainda assim, o problema da pirataria em massa atinge de forma majoritária autores que dificilmente se enquadram na faixa de renda média de £ 10.500. Talvez fosse interessante, então, focalizar a experiência de escritores que se enquadram nessa faixa de rendimentos e que se sentem afetados diretamente pela pirataria.
Por fim, vale lembrar que o campo das Humanidades Digitais tem produzido discussões interessantes sobre o lugar das legislações que regem direitos autorais no mundo todo. Jeffrey Schnapp, Todd Presner, Peter Lunenfeld e Johanna Drucker abordaram o tema em seu Digital Humanities Manifesto 2.0 e o Google Acadêmico conta com diversos artigos sobre o tema. Por enquanto, resta aguardar a resposta que Greg Clark oferecerá aos signatários da carta da Society of Authors.