“[…] De qualquer maneira, até que achei bom eles terem inventado a bomba atômica. Se houver outra guerra, vou me sentar bem em cima da droga da bomba. E vou me apresentar como voluntário para fazer isso, juro por Deus que vou.”(2019: pp. 171).
Ao escrever o poema Comin’ Thro’ the Rye (“vindo pelo campo de centeio”), Robert Burns fez mais do que poetizar a canção e o falar tradicionais da Escócia; ele simbolicamente deslocou a narrativa da cantiga originária, Common’ Frae The Town (“vindo pela cidade”), para o campo, e nisso se evidenciou as dinâmicas discrepantes entre os dois cenários. Além disso, o poema inspirou o título e a história do romance do estadunidense J.D. Salinger, O apanhador no campo de centeio. Publicado oficialmente em 1951, o livro repete a atenção do poema a ambientação da narrativa, ao apresentar seu jovem protagonista, Holden Caulfield, enfrentando sozinho os seus próprios demônios no boom econômico da cidade americana pós-guerra. Expulso de mais um internato, o adolescente de 16 anos resolve matar tempo passeando por Nova York, enquanto não chega o dia esperado de sua volta para casa. Neste espaço de três dias, Holden acumula suas ruminações sobre tudo o que ele viveu até então no cenário urbano e gradualmente adoece sob este peso, destacando verdades sobre a sua vida e sobre o espaço sócio-geográfico e o período histórico nos quais ela se localiza.
Holden Caulfield é uma figura marcada por uma perspectiva apática. Essa aparenta ser uma das impressões mais populares do romance. Porém a redução do texto tanto a uma vilania adolescente quanto a afirmação de uma verdade pessoal pode frear a interpretação das condições em que vive Holden, desconsiderando a devastação mutual de sua mente e dos seus arredores. Por isso, é importante se atentar às descrições que Holden dá aos alvos do seu escárnio, tal como a fajutice (a preocupação com as aparências e convenções acima da humanidade) e a perversão (o desvio sexual ou a sexualidade acima da humanidade), para identificar o cerne da solidão existencial do jovem protagonista.
A história, cuja narração tem início depois dos eventos da trama e é feita pelo próprio protagonista, começa no seu último sábado na escola de onde ele acabou de ser expulso. Pencey Prep é apenas uma dos internatos de elite da qual Holden já foi expulso e, embora ele pudesse ficar até o início das férias de natal e ir com os seus colegas, ou mesmo ir direto para casa ainda antes de seus pais receberem a carta da escola os notificando de sua expulsão, Holden escolhe vagar sozinho por Nova York. Segundo o garoto, é mais esperto esperar seus pais já receberem a notícia da mais nova expulsão do que os informá-los sozinho, e ele “meio que estava precisando de umas férias” do quão facilmente deprimido ele ficava na Pencey. Assim, em poucos capítulos, se inicia a aventura do protagonista, já apresentadas sutilmente as suas aflições, desdém e familiaridades pelas quais ele irá navegar a metrópole.
Neste primeiro momento, já se faz evidente a solidão do menino em relação aos seus pais, colegas e ao mundo em maneiras diferentemente marcadas. Embora Holden não fale tanto dos seus pais, o seu desconforto com a vida escolar e, principalmente, a sua decisão de os evitar expressa que o seu desconforto ultrapassa a vida familiar também, e que o protagonista se sente sozinho tanto rodeado com pessoas da sua idade quanto com pessoas do seu sangue.
O adeus de Holden a colega nenhum também fala dos seus sentimentos sobre os outros adolescentes – sob o escopo da vida da classe média estadunidense pós-guerra. A trama começa com seu narrador em uma colina em frente ao estádio de futebol americano no qual se dava um jogo que correspondia à audiência de toda a escola nas arquibancadas. Apesar de ele notar a genuína adrenalina coletiva de seus colegas e suas garotas, Holden meramente tenta montar uma imagem do lugar assim, para poder se despedir dele, porque “[…]Tanto faz se for uma despedida triste, ou se for ruim, mas quando eu vou embora eu gosto de saber que estou indo embora. Se você não percebe, você fica pior ainda.” Neste momento, o narrador recorda jogar bola com dois colegas que ele considerava legais e, utilizando esta memória que o é preciosa, ele consegue despedir-se do lugar e do que viveu nele. No entanto, em pouco tempo, já é conhecido pelo leitor que as boas memórias do narrador na Pencey, assim como nas outras escolas de elite, são raras. Segundo ele, “Quanto mais cara a escola, mais canalha lá dentro” (pp.10). Logo em seguida, ele se despede do seu professor de história, que já sabia que o seu aluno não voltaria mais depois do Natal. Holden é então confrontado por ele acerca dos seus motivos para reprovar em quatro matérias e ser expulso de uma escola mais uma vez, e, embora o adolescente não o responda sinceramente, pois isso seria inapropriado, ainda se exprime uma resposta viva disso e o narrador se explica – tanto em momentos diferentes do texto, visto que o fluxo de consciência de Holden é livremente disperso, quanto na forma de uma resposta orgânica e espontânea.
No narrador, além das aparentes digressões dos assuntos, se percebe também a diferença nas palavras de Holden para outros personagens e nas palavras de Holden para o leitor. Um claro exemplo destas verdades não-ditas, que responde à algo da interrogação do professor sobre a razão da desenvoltura acadêmica do garoto e torna claros os sentimentos do jovem com o mundo e com os adultos é quando Holden o responde o que o diretor da Pencey Prep o disse ao expulsá-lo,
“‘Ah…enfim, aquilo de que a Vida é um jogo e tal. E que você tem que obedecer às regras. […]’
‘A Vida é um jogo, garoto. A Vida é um jogo que você joga segundo as regras.’
‘Sim, senhor. Eu sei que é. Eu sei.’
Jogo o cacete. Um belo de um jogo. Se você fica do lado que tem os figurões todos, aí sim é um jogo – isso eu não vou negar. Mas se você fica do outro lado, onde não tem figurão nenhum, aí o que é que tem de jogo? Nada. Nadinha.” (pp.15)
Esse capítulo, o primeiro diálogo do livro, segura firmemente parte do viés pelo qual Holden existe no mundo, que explica a discrepância entre as palavras narradas e as que são comunicadas a outros personagens: a maneira sistematizada pela qual operam as relações interpessoais e materiais do mundo não inclui a interioridade do protagonista. Por isso, a vida para Holden, de acordo com as “regras do jogo”, não é possível sem que ele se apague, isto é, sem que ele seja um “figurão”. Parte da problemática reside justamente nas “digressões” que Holden faz, ou seja, na pouca adaptação aos moldes impostos pelo mundo adulto; deste modo, a relutância a se fixar no assunto pautado se dá como uma recusa às regras do jogo e um retorno ao Eu e á infância não-administrada. Da mesma maneira, a séria aversão de Holden a estudar pode revelar, para além da dificuldade em se prender naquilo que é objetivo, pragmático e encerrado em si mesmo, uma falta de identificação com o mundo dos adultos e uma claustrofobia em meio a obrigatoriedade desses deveres. Por causa disso, Holden somente assente a cabeça e “manda a cascata”, fingindo concordar com o que é afirmado por seu professor, seu diretor, seus pais – isso, assim como as outras respostas apropriadas e insinceras que Holden dará durante o texto, é também a maneira do protagonista de “jogar o jogo”. Esse tipo de falsa interação é cumprido por Holden ao longo da narrativa, porque como ele descreve em outra instância, “se você quer continuar vivo, tem que dizer essas coisas.”
Depois de ouvir mais sermões do professor, o garoto vai ao seu quarto de dormir, onde mais das suas relações com o mundo são exploradas. Dois garotos adolescentes com quem ele divide o dormitório têm suas personalidades opostas apresentadas: Ackley, que, com suas espinhas, dentes amarelados e unhas podres, “joga o jogo” pior ainda que Holden, e Stradlater, que, com seu peitoral bonito que ele gosta de exibir, joga muito melhor que os dois.
Ambos personagens o incomodam nas suas próprias maneiras; a falta de toque com a realidade de Ackley até desconcerta Holden (embora os dois desgostem da perfeição arrogante de Stradlater, Holden ainda o sugere que ele não é tão ruim assim), e a superioridade social de Stradlater naturalmente o dá repulsa, mas, na noite em que Holden deixa Pencey, mais ainda. Estando ocupado indo a um encontro com um antigo amor de Holden, Jane Gallagher, o rapaz mais bem nascido o pede um favor: que Holden o escreva um texto narrativo descrevendo algo para entregar como redação, enquanto ele está fora. Apesar da sua animada exaltação ao ouvir o nome da garota, o protagonista faz o que é pedido porém entrando em outra “exaltação” – ele descreve a afetuosa memória da luva de beisebol do seu falecido irmão mais novo, Allie. Isso escava uma digressão, ou no caso, um desabafo vulnerável e tragicamente saudoso do jovem escritor:
“[…] Meu deus, como ele era bacana. Ele ria tanto de alguma coisa que ele tinha pensado na hora do jantar que praticamente caía da cadeira. Eu estava com treze anos só, e eles iam mandar me psicanalisar e tal, porque eu quebrei todos os vidros da garagem. E eu nem posso reclamar. Não mesmo. Eu dormi na garagem na noite que ele morreu, e quebrei a droga daqueles vidros todos com a mão, só de farra. Até tentei quebrar todas as janelas da perua que a gente tinha naquele verão, mas a essa altura eu já estava com a mão quebrada e coisa e tal, e não consegui. Foi um negócio muito idiota de se fazer, isso eu não vou negar, mas eu mal sabia o que estava fazendo, e você não conheceu o Allie. A minha mão ainda dói de vez em quando, quando chove e tal, e eu não consigo mais fechar o pinho de verdade – não assim com força, quer dizer –, mas fora isso eu nem me ralo muito. Quer dizer, eu não ia ser cirurgião nem violinista, cacete, nem nada mesmo.” (pp.50)
No entanto, mesmo que Holden houvesse deixado ir um descargo emocional particular a ele em razão de Stradlater – e, contando com sua antiga paixão, dois –, seu colega de quarto briga com ele por estar insatisfeito com o objeto de sua redação. Furioso com a desfeita dele, e mais ainda ao imaginá-lo fazendo desfeita de Jane como parceira romântica, Holden passa a brigar fisicamente com Stradlater e a sua raiva e seus ferimentos físicos e emocionais o movem para mais perto de um esgotamento para com o seu redor.
Assim, o narrador introduz um jogo o qual ele recusa: aquele dos compromissos com os adultos, e com as vaidades sérias dos jovens. Mais que isso, o que está em jogo neste espaço de tempo é aquilo de maior significado para Holden, e tais objetos serão firmemente lembrados ao longo da narrativa; logo, na saída de Holden de Pencey e na recusa da sua chegada em casa, se vê que é a ameaça às únicas coisas de sentido para ele o que o estende nestes três dias sozinho consigo mesmo. É por via destas lentes que o personagem recontará a história e é nelas que uma sociedade americana pós-guerra será ressentida amargamente.
Embora a narrativa ambientada na Pencey Prep já contemple parte disto, o desenvolvimento urbano, tecnológico e econômico durante a metade do século 20 e, consequentemente, o consumismo massificado desta época, ficam mais ainda em evidência quando Holden começa a passear por Nova York. Sendo a sua solidão engatilhada pelo “jogo” e pelos “fajutos” ou “figurões” que ganham nele, é a dura modernidade que alarga o sentimento de insignificância no garoto. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a superação da Grande Depressão, os Estados Unidos apoiaram o seu medo e dúvida pessoais no estilo de vida materialista e consumista (Graham, 2007), a cidade da grande maçã servindo como um concentrado exemplo disso. Como escrevem Theodor W. Adorno e Max Horkheimer em A Dialética do Esclarecimento (1947),
“Mas os projetos de urbanização que, em pequenos apartamentos higiênicos, destinam-se a perpetuar o indivíduo como se ele fosse independente, submetem-no ainda mais profundamente a seu adversário, o poder absoluto do capital. Do mesmo modo que os moradores são enviados para os centros, como produtores e consumidores, em busca de trabalho e diversão, assim também as células habitacionais cristalizam-se em complexos densos e bem organizados. A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular.” (1985: pp. 100)
Ou seja, apesar de uma cidade grande como Nova York estar repleta de pessoas e de cultura, a desenvoltura da sócio-economia na modernidade ainda a preserva como se fosse feita de plástico, e não de vida. Todas as pessoas dizem e esperam a mesma coisa; todas as representações da realidade impõem as mesmas coisas, e ambas não mostram preocupações reais e humanas. “Fajutos saindo pelo ladrão”, segundo Holden. Desta maneira, ele se sente verdadeiramente sozinho no mundo desenvolvido e, embora o jovem não tenha tido a experiência de servir na guerra, a sua alienação e a identificação da frieza e insignificância das relações interpessoais e materiais ainda o aproxima da experiência daqueles que foram afetados diretamente pelos conflitos da Segunda Guerra. Desse jeito, por mais que Holden ainda esteja muito longe da vida adulta, a sua solidão e amargura permanecessem remanescentes dela – isso podendo indicar a manutenção de uma ruína no seu personagem, ou no mundo por ele vivenciado.
Neste sentido, fica marcada a apatia de Holden para com a sociedade ao seu redor como o resultado de uma verdade cruel que o sufoca por dentro. Similarmente, se enquadram os escritos de Adorno sobre o mesmo período que Holden vive, principalmente quanto a indústria cultural norte-americana, pois parte da “fajutice” identificada pelo garoto está na cultura comercializada pela modernidade: o cinema, as músicas tocadas nos salões e bares, o teatro, nos itens de luxo. De acordo com o pensador marxista, judeu e alemão, que imigrou para os Estados Unidos para fugir do Holocausto,
“O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. […] A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro. Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade.” (pp. 104)
Isto é, da mesma maneira que a cultura, que visa representar a realidade, é produzida a partir de um modelo pronto feito para vender, a realidade ela mesma não é alheia a ele. Parafraseando mais uma vez A Dialética do Esclarecimento, “a natureza já é objetivada”: já é pensada sob a perspectiva do capital, que, na época de Caulfield e Adorno, estava explodindo nos Estados Unidos e mais ainda nas metrópoles. Tal realidade se comprime exatamente na Vida como jogo cujo sistema deve ser obedecido, no qual se deve dizer as coisas que as pessoas querem ouvir, no qual se deve ater aos assuntos e evitar se distanciar do trabalho proposto, no qual as “verdadeiras belezas da vida” se resumem as falas e desenvolturas perfeitas dos bonitos atores de cinema e teatro, à riqueza dos luxos das pessoas, suas falas e as suas aparências.
O cinismo encontrado no adolescente, que faz ecoar o pensamento do filósofo do idealismo alemão, demarca, além do próprio desenvolvimento do capitalismo norte-americano, feridas adultas. Não só falando da realidade do período abordado, isso implica também na experiência de J.D. Salinger da Guerra, o homem real por trás da existência do menino Holden Caulfield. Como James E. Miller Jr. é lembrado por Samira Sasani e Parvaneh Javidnejat neste artigo, “Se pudéssemos ler qualquer autobiografia no seu trabalho, nós poderíamos prontamente supôr que a guerra foi responsável, ou que pelo fez emergir na superfície, uma alienação da existência moderna tão profunda que manifesta si mesma na forma de uma náusea espiritual onipotente”. E na mesma forma que Holden descobre em si mesmo o sonho de viver no mato longe da sociedade moderna, seja como um protesto contra ela ou como um sintoma que ele não poderia mais suportar, Salinger o realiza na vida real e se torna socialmente recluso pouco depois da publicação de O Apanhador no Campo de Centeio em 1951. O que se soube, posteriormente aos escritos de Miller, da vida de Salinger durante a Segunda Guerra mostra que o autor serviu em muitas campanhas desde que os Estados Unidos entraram na Guerra em 1942, estando mesmo em campos de concentração, Dia D, interrogando prisioneiros de guerra, servindo em postos altos. Isso pesadamente o afetou: Salinger foi hospitalizado por conta da sua reação de estresse logo depois do fim da guerra, mas, como ele disse a sua filha Margaret Salinger, “você nunca se esquece de verdade o cheiro de carne humana queimando, não importa o quanto você viva.” (2000, pp. 55.) Tais experiências mórbidas e o seu encontro com atenção indesejada com a popularidade de Centeio comprimem firmemente os sentimentos em relação ao período que ambos Caulfield e Salinger viviam.
Todavia, vale salientar que, mesmo estando profundamente impressas as digitais de Salinger na criação do personagem, na vida fictícia do jovem Holden nunca houve a experiência da Guerra e o seu trauma. Então, de onde veio a falta de ar e de inocência que fazem o menino querer sentar-se no topo da bomba atômica?
Pode-se responder essa pergunta retornando ao poema citado no início deste texto e as memórias (Jane Gallagher e Allie Caulfield) cuja desfeita por um sujeito como Stradlater é o que atiça Holden para fugir de Pencey e dos seus pais para vagar sozinho por Nova York no início do romance. Porque, assim como Holden acha a única possibilidade de viver na reclusão social no campo, “nunca mais voltar para casa e nunca mais ser mandado pra outra escola” e sem precisa ter “nenhuma porcaria de conversa idiota e inútil com ninguém”, a protagonista do poema de Robert Burns, Jenny, também encontra refúgio para si mesma no campo. Mas mais do que isso, ela também encontra amor: “Given somebody meets somebody / coming through the rye / given somebody kiss somebody / need a body cry?” (“Se alguém encontra alguém / que vem pelo campo de centeio / se alguém beija alguém / precisa alguém de algo mais ?”) (1782).
No entanto, a primeira alusão ao significado do título e ao poema escocês se dá em Nova York, próximo a famosa Broadway, quando, mesmo diante das vistas deprimentes da supremacia do consumismo, Holden vê uma criança andando com os pais, porém imersa no próprio mundo,
“Estava cantando só de farra, dava pra você ver. Os carros passavam a toda, tinha barulho de freio pra tudo quanto é lado, os pais não prestavam atenção no menino, e ele continuava andandinho perto do meio fio e cantando, ‘Se alguém apanha alguém que vem pelo campo de centeio.’ Aquilo me deixou melhor. Eu não fiquei mais tão deprimido.” (pp. 141)
Mais tarde na narrativa, quando Holden entra de fininho na própria casa e encontra sua adorada irmã mais nova, Phoebe, ao fim de contar parte do que viveu a ela (uma das únicas instâncias em que Holden é sincero sobre o que sente com outros personagens), a menina o retorna a realidade. Ela é tão honesta quando Holden e é a única a questionar seriamente o cinismo invencível do garoto. Confrontando a imaturidade ainda viva dele em meio a sentimentos tão aparentemente adultos, é Phoebe quem o questiona se existe alguma coisa que Holden suporta no mundo e, nesta resposta, são destacados os únicos objetos de importância para ele:
“‘Eu gosto do Allie’, eu disse. ‘E eu gosto de fazer o que estou fazendo agora mesmo. Ficar sentado aqui com você, e conversar, e pensar nas coisas, e –’
‘O Allie morreu – Você sempre fala isso! Se a pessoa morreu e coisa e tal, e está no céu aí não vale mais.’
‘Enfim, eu gosto disso agora”, eu disse. “Eu estou falando disso, aqui, agora. Sentado aqui com você e só batendo papo e ficando de –’
‘Mas isso nem é nada!’” (pp. 207)
Na permanência de Phoebe em questionar a recusa de Holden a participar do mundo ao redor, sobressai que há algo pessoalmente errado com seu irmão e é na discrepância entre o poema de Burns e a adaptação de Holden, indicada por Phoebe nesta conversa, que isso se acha. Respondendo a Phoebe o que ele gostaria de ser, Holden segue a alteração que o menino da rua fez e se imagina como o apanhador no campo de centeio: alguém encarregado de apanhar crianças brincando num campo de centeio, antes de elas caírem do desfiladeiro onde o campo termina. Essa imagem não poderia se afastar mais daquela descrita no poema original, onde o cenário pastoral serve do local afastado de encontro entre dois amantes, além de, situada antes do capítulo seguinte, ser o recipiente mais literal da ruína da existência de Holden, do trauma que ele carrega. O sonho impossível de Holden salvar crianças da ruína em que ele mesmo afundou representa a fixação do personagem com a infância: seus irmãos mais novos, as crianças que ele vê e conversa na rua, e suas memórias de quando ele era mais novo, como se ele tivesse estragado ao crescer. Além de isso significar a recusa do mundo adulto e, nele, a possibilidade do encontro sexual do outro poema, a ideação suicida que resta de alternativa mostra o trauma de infância em Holden. Da mesma maneira que a imagem do encontro de Jenny com o seu parceiro é afastada pelo protagonista, por mais que ele guarde como preciosa a curta presença dela na sua vida e por mais que ele intencione a telefonar ao longo da narrativa, Holden nunca se reencontra com Jane Gallagher. Sendo isso além da estagnação do personagem na infância mental, marcando uma instância de genuína conexão humana com alguém da sua idade, a negação dela para si mesmo ainda diz da imaturidade de Holden; da imobilidade, da morte dele em vida. Como Phoebe infere, a apatia intransigente dele e o contentamento perante ela correspondem a mesma coisa.
Se Salinger foi traumatizado pela guerra e foi isso que guiou a sua náusea existencial e a tristeza permanente na sua visão, Holden foi traumatizado na infância: talvez tanto pela morte de seu irmão quando ele tinha somente 13 anos, ou, mais certamente, por conta do trauma sexual ocasionado por homens adultos durante a sua criação. O encontro com seu antigo professor Antolini que acaba com Holden fugindo durante a noite, assustado pelo carinho na cabeça que o homem mais velho o deu enquanto dormia, relata as cicatrizes do toque indesejado na infância. Como narra o jovem, “Quando alguma coisa pervertida dessas acontece, eu começo a suar que nem um filho da puta. Esse tipo de coisa aconteceu comigo umas vinte vezes desde que eu era criança. Eu não suporto.” (pp. 231) A própria palavra “pervertido”, como o narrador utiliza ao longo do texto quando avista uma relação sexual que o amedronta, o que é quase toda, sugere a fobia de Holden do mundo adulto: algo que, quando anteriormente perfeito, foi vertido para uma direção indevida. Caído do desfiladeiro do campo de centeio, sem ninguém para o apanhar.
Portanto, se mostra que os efeitos do trauma, o sentimento da vida e do mundo deixarem de fazer sentido e se afastarem possivelmente de o fazer depois do acontecido, marcam tanto Salinger como um ex-veterano da guerra quanto Holden como uma vítima de abuso sexual. Deste jeito se identifica o trauma como o que imobiliza a vítima, que é deixada abandonada em um mundo planejadamente indiferente a sua ruína. Mais do que isso, é o mesmo mundo que traumatiza seus seres vivos; pois nos dois casos foi o sistema que provocou o acontecido: “a natureza já é objetificada”, as injúrias pessoais dentro de relações de poder, como no abuso sexual e na servidão aos horrores da guerra, sendo meramente efeitos insignificantes de assuntos mais sérios e aparentemente irrecusáveis da modernidade e do mundo adulto.
Publicado por
É graduando em Letras - Inglês/Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil, sob orientação da Profa. Dra. Marcela Santos Brigida.