No dia 14 de maio, a Waterstones Gower Street, em Bloomsbury, Londres, ofereceu mais um dos seus eventos dedicados a divulgar a literatura de novos autores. O Debut Fiction Showcase tem frequência trimestral e, nesta edição, convidou as romancistas estreantes Jessica Andrews, Season Butler e Joanne Ramos para uma conversa mediada pela crítica literária Lucy Scholes.
Os encontros acontecem no subsolo da livraria em uma área reservada para eventos. É um espaço muito agradável, rodeado pela seção de obras raras e de segunda mão. Ou seja: além da oportunidade de conhecer o que há de mais recente na literatura contemporânea, o Showcase não deixa de ser também uma chance de encontrar alguma raridade pela qual você esteja procurando.
Após as devidas apresentações, cada autora leu um ou dois trechos de suas obras. Adaptamos pequenos resumos apresentando cada um dos romances.
Saltwater – Jessica Andrews
Lírico e inovador, Saltwater de Jessica Andrews acompanha Lucy, uma jovem de classe baixa de Sunderland, de festas caóticas em East London até a paisagem natural da Irlanda. O romance explora as complexidades das relações entre mãe e filha, os desafios da mudança de identidade de classe e a maneira como os sentimentos de amor mais intensos podem ser os mais difíceis de definir. Uma nova voz marcante na ficção literária britânica, para os leitores de Rachel Cusk e Olivia Laing. | Saiba mais.
Cygnet – Season Butler
Em Cygnet, Season Butler apresenta uma narrativa coming-of-age sobre uma jovem que resiste à selvageria da idade adulta em uma comunidade que rejeita a promessa da juventude. The Kid é uma garota de dezessete anos presa em Swan Island, lar de uma excêntrica comunidade de idosos separatistas que rejeitam a vida no continente por um paraíso que está afundando no oceano em ritmo acelerado. Sua chegada ameaça estourar a bolha idílica que os moradores idosos construíram com tanto cuidado – uma lembrança indesejável da vida que deixaram para trás e da qual querem se livrar. | Saiba mais.
The Farm – Joanne Ramos
No centro de The Farm de Joanne Ramos, está a ambiciosa Mae Yu, que administra o retiro de luxo Golden Oaks, onde “anfitriãs” gestam bebês para clientes abastados. Jane é uma jovem imigrante em busca de um futuro melhor. Vivendo em um dormitório apertado com sua bebê e sua tia Ate, ela vê uma chance imperdível de mudar sua vida. Mas a que custo? Um romance brilhante e sombriamente engraçado que explora o papel da sorte e do mérito, classe, ambição e sacrifício, The Farm é uma história inesquecível sobre como vivemos e quem realmente detém o poder. | Saiba mais.
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A conversa das autoras com Lucy Scholes foi muito produtiva: embora a crítica literária tenha deixado claro que não procura convergências temáticas ou estilísticas quando lê as obras do Debut Fiction Showcase, alguns paralelos foram brotando de forma não intencional ao longo da discussão: uma sensação de isolamento que permeia as protagonistas e narrativas, além do papel crucial desempenhado pelo espaço para o desenvolvimento dos romances. Além disso, embora Cygnet e The Farm (este último vem sendo frequentemente comparado a The Handmaid’s Tale) tenham sido lidos por muitos críticos como distopias, suas autoras não necessariamente concordam com essa classificação.
Ramos e Butler procuraram sublinhar que o que é muitas vezes percebido como distópico já faz parte da vivência de muitas pessoas. Ambas as autoras tomaram a inspiração para seus romances em arranjos que, embora não sejam necessariamente realidades presentes nos grandes centros do ocidente, já existem em regiões menos focalizadas pela literatura canônica. Isto é, a questão das autoras é justamente lançar luz sobre outros modos de vida e o contraste entre o que podemos perceber como absurdo e a vivência cotidiana de pessoas quase invisíveis.
Butler celebrou ter sido capaz de escrever e publicar uma obra que coloca o protagonismo em grupos tradicionalmente marginalizados, um romance sem “homens brancos heterossexuais de meia idade e classe média”. E é aí que surge o problema da distopia como rótulo que descola as narrativas de qualquer realidade atualmente possível: se, de antemão, seus romances são classificados como distópicos – um conceito também em mutação, como Scholes apontou – algo da reflexão sobre diferentes configurações de mundo que eles produzem pode ser perdido.
Quando Scholes perguntou, especificamente, sobre o papel que os espaços físicos desempenham nos romances e, de forma mais direta, pediu que Jessica Andrews falasse sobre o papel da cidade de Londres em Saltwater em contraste à função que a comunidade irlandesa rural desempenha no romance, a autora respondeu:
“Bem, eu acredito que para realmente escrever sobre um local, você precisa estar fisicamente fora dele, para ganhar perspectiva. E eu acho que quando eu estava na Irlanda escrevendo, ficou muito aparente para mim que, de repente, eu tinha muito espaço, meio que em um sentido metafórico, mas de forma bem literal também. Havia praias vazias imensas e eu comecei a pensar nas coisas em formas. Londres me passava a sensação de arestas afiadas, retângulos e a forma do metrô, além da sensação de ser esmagada e empurrada o tempo todo. E a sensação era muito… eu me lembro que quando eu voltei para Londres, depois do período morando na Irlanda, a sensação ficou muito aparente, com os azulejos, os trens do metrô… os ângulos são muito demarcados! E isso é muito claustrofóbico, mas você não se dá conta até realmente ir para lá, até ir para outro lugar onde você tenha o espaço para pensar de outra maneira. Ou talvez seja a diferença entre algo que é muito orgânico e natural e algo que é muito marcadamente criado pelo ser humano, sabe? As formas da natureza são diferentes, elas mudam o tempo todo.”
Enquanto o romance de Andrews se passa no contraste entre a aparente calmaria de uma comunidade rural na Irlanda e a agitação efervescente de Londres, a narrativa de Season Butler se desenvolve em uma ilha próxima à costa de New Hampshire, nos Estados Unidos. Quando Lucy Scholes questionou se a ilha de Cygnet de fato existe, a autora explicou que, embora a ilha em si seja fictícia, ela se inspirou nas Shoal Islands, as quais ela descobriu ao assistir a um documentário sobre o arquipélago quando era criança.
Butler esclareceu que tinha a intenção de escrever um romance sobre os efeitos do aquecimento global localizados no hemisfério norte e que por isso era importante que sua ilha não fosse tropical. A autora buscava um espaço que fosse identificável para o seu leitor primário, então era importante que a narrativa se desenrolasse no presente e em um espaço, de certa forma, familiar. Assim, a Swan Island, onde se passam os eventos de Cygnet, é uma décima ilha ficcional localizada no arquipélago The Shoals, que na realidade conta somente com nove.
Butler contou que viajou para a Star Island (ilha do The Shoals) para fazer pesquisa e Lucy Scholes aproveitou para perguntar se a autora compartilha da visão de Andrews de que é necessário se afastar de um local para escrever sobre ele. A autora contou que enquanto estava fisicamente na ilha, passou boa tarde do tempo no telefone conversando com pessoas envolvidas em comunidades de aposentadoria alternativas e que não teve uma chance de realmente parar e escrever. Sendo assim, sua experiência se aproximaria daquela vivenciada pela autora de Saltwater.
Pensando nos espaços presentes em The Farm, Scholes questionou se Joanne Ramos tinha em mente mostrar ao leitor um lado menos conhecido de Nova York, como os dormitórios no Queens ou “as políticas internas das mansões na Park Avenue”, ao que a autora respondeu que sim:
“A semente desta história foi a Jane, porque eu queria escrever sobre a enfermeira pediátrica que deixava seu próprio bebê em casa para cuidar do recém-nascido de outra pessoa. E porque eu sabia sobre o dormitório no Queens, eu já sabia que a história começaria com essa comunidade imigrante na região do Rego Park. Então começou ali e eu pensei: “Bem, se um bilionário fosse colocar seu feto em algum lugar em Nova York, não seria na cidade, seria em um lugar lindo e arborizado, com ar puro”. E as coisas partiram daí, porque eu já sabia onde queria começar.”
Após essa exploração dos espaços nos romances, a anfitriã abriu o microfone para perguntas da plateia. As três perguntas que foram apresentadas às autoras foram bastante pertinentes, então vamos compartilhar as questões e respostas das autoras na íntegra e em tradução livre.
PERGUNTA #1
Bem, primeiramente, obrigada, vocês foram incríveis. E essa pergunta é um pouco inútil porque vocês já cobriram essa questão de algumas maneiras. O ângulo distópico. Perdão. Eu estava pensando sobre o que vocês disseram, como vocês duas (Joanne Ramos e Season Butler) disseram que se sentem quanto aos seus romances serem rotulados dessa forma, porque eu sinto que, de certa forma, os leitores não estão entendendo o ponto que vocês estão estabelecendo. Isso faz sentido? Eles estarem sendo chamados de romances distópicos quando vocês duas sentem que eles simplesmente representam partes do mundo que já existem?
SEASON BUTLER
Eu acho que tantas realidades existem para tipos diferentes de pessoas simultaneamente e eu acho que isso é algo que é muito bem comunicado em The Farm. Que, sabe, até sob o mesmo teto, no mesmo apartamento, as experiências das pessoas são imensamente diferentes.
Então eu acho que, de certa forma, como autora eu não sou o árbitro final do significado do que eu escrevo, de forma alguma. Então a leitura que alguém faça de Cygnet como um romance distópico é tão válida quanto a minha, que o entende como uma narrativa bastante realista. Mas eu também acho que seria insincero da minha parte negar que o uso de tecnologia e de elementos perigosos que começam a se insinuar no nosso momento contemporâneo como amostras do futuro não foram partes deliberadas da escrita.
JOANNE RAMOS
É basicamente a mesma resposta (risos). Obrigada. Acho que eu perguntaria para as pessoas, e eu pergunto para os leitores o que eles entendem como distopia e se eles acham que este trabalho poderia ser entendido como… mas eu concordo, eu não sou o árbitro final. Tem sido uma revelação ouvir as visões diferentes e as formas como você consegue se conectar com as pessoas, então… obrigada.
LUCY SCHOLES
E é claro que as distopias estão mudando agora, quer dizer, é um tópico interessante atualmente e acho que o simples fato de que seus romances podem ser chamados de distopias mostra que este é um tema amplo. Não é mais apenas ficção científica e naves espaciais, sabe? Escritores de ficção estão explorando isso de formas muito interessantes, então é uma ótima pergunta, muito obrigada!
PERGUNTA #2
De formas diferentes, eu sinto que todos os seus livros abordam isolamento e comunidades isoladas. Parece que vocês isolam um pequeno espaço onde seus romances se desenvolvem. Isso é algo que vocês fizeram intencionalmente ou apenas aconteceu?
LUCY SCHOLES
Pergunta interessante.
JESSICA ANDREWS
Bem, acho que foi intencional, de certa forma, porque acho que quando você escreve sobre estruturas de poder e diferentes níveis de opressão e a forma como as comunidades se encaixam nisso, é importante…. e eu acho que especialmente na Irlanda, acho que a Lucy é muito… ela é uma outsider na comunidade irlandesa e também é uma outsider na própria vida. Ela é uma outsider basicamente em toda comunidade que ela tenta adentrar, então acho que foi interessante pensar na Irlanda nesse contexto e numa comunidade isolada lá porque ela realmente era uma estranha, mas acabou sendo muito bem-vinda. Ela não precisava ser descolada, nem nada do tipo. Então acho que, nesse sentido, sim.
SEASON BUTLER
Acho que o isolamento é algo muito difícil de se trabalhar na ficção porque, de certa forma, nós precisamos que os personagens interajam com outros personagens e fazer a minha protagonista sair de casa e interagir com outras pessoas um pouco (risos) foi tão difícil quanto isso às vezes é para todos nós. (risos)
JOANNE RAMOS
Em The Farm elas estão definitivamente isoladas porque os bilionários não querem que seus fetos fiquem expostos, mas eu também estava interessada na forma como… a Season falou que pode haver isolamento em um apartamento, que pessoas que estão envolvidas em um ato tão íntimo como criar um filho ou filhos juntas podem estar isoladas, então nesse sentido, as mulheres do livro estão isoladas da comunidade no Queens, mas quando elas vão trabalhar, elas também podem estar isoladas. E eu acho que elas não são realmente vistas.
LUCY SCHOLES
Obrigada. Sim, isolamento… é uma ótima pergunta porque é um elemento que une esses romances de formas diferentes e é algo que vocês três exploram, seja por meio de alguém que está sofrendo com o seu isolamento, ou… e eu acho que podemos delinear paralelos entre os seus textos (Butler e Andrews) no que toca a adolescência ou o amadurecimento, com aquele constrangimento associado com essa fase que é manifestado na página em termos de não ter muita certeza quanto a onde você se encaixa em comunidades e relacionamentos com a família. Então, muito obrigada.
PERGUNTA #3
Parece que – eu ainda não li nenhum dos seus livros, mas mal posso esperar para ler todos – mas parece, pelas suas leituras, que vocês têm muitas emoções e ideias que queriam expor e compartilhar, e parece que vocês precisavam de espaço para expor tudo isso, então acho que a minha pergunta seria: é muito difícil expor tudo isso? E botar suas ideias e suas emoções na página e assinar o seu nome ali? Foi um alívio ou… vocês poderiam falar sobre isso?
JOANNE RAMOS
Eu tentei arranjar um pseudônimo quando fui lançar o meu livro porque… mas todo mundo que estava interessado no livro disse que não. Porque eu acho que todas podemos concordar aqui que é ficção, mas a gente usa tanta coisa da própria vida… então ainda estou me acostumando, me pergunte de novo daqui a uns meses. (risos)
SEASON BUTLER
Tem um tuíte que eu vi recentemente que eu vou parafrasear. Era algo assim: “o que os escritores querem é tempo para escrever e o que os escritores temem é tempo para escrever.” “O que os escritores querem é que alguém leia o trabalho deles, e o que os escritores temem é que alguém leia o trabalho deles.” Então… sim, é uma sensação de vulnerabilidade, mas se parece um pouco com aquela vulnerabilidade de quando a gente se apaixona. Do tipo: “que maravilha, para com isso! Não, não para, não!” (risos).
JESSICA ANDREWS
Sim, eu concordo. Eu acho que é como… amor é aceitar a vulnerabilidade. Mas eu acho que é algo tão cheio de contradições porque eu sinto que escrever me ajuda a ganhar perspectiva e distanciamento em relação às coisas, mas expor isso ao mundo é apavorante, mas você não pode dizer que é apavorante porque todo mundo diz: “é incrível!”.
Então sim, isso é um monte de coisa ao mesmo tempo, mas eu acho que a capacidade de articulação é algo tão potente e tão importante, então você tem que empurrar essa barreira e pensar: “Eu preciso dizer alguma coisa!” Mas me perguntaram outro dia: “você acha fácil falar sobre aspectos emocionais que são tão próximos de você?” E eu respondi: “Sim, é tranquilo! Eu tenho um distanciamento emocional. Isso não é nada para mim!” Aí eu fui para casa e chorei um pouco. (risos) Então você se distancia para falar daquilo e você pensa que está bem, mas as emoções ainda estão todas ali. Mas se não estivessem, talvez você não tivesse escrito algo muito bom.
LUCY
Bom conselho!
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Após o Q&A, os participantes do evento tiveram a oportunidade de conversar diretamente com as autoras e de ter seus livros autografados por elas. Em breve, publicaremos resenhas das obras em questão e reforçamos desde já a recomendação dessas três autoras.
Jessica Andrews foi incluída na lista de autores estreantes mais promissores de 2019. Joanne Ramos foi incluída na lista de romances de 2019 destacados pelo The Guardian, além de The Farm ter sido incluído no Clube do Livro da BBC Radio 2. Season Butler foi incluída na lista Ones to Watch da revista Elle.
Jessica e Season estão no Twitter!
Publicado por
Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.