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Na trilha de Carmilla: a herança da vampira queer no cinema

Carmilla e Lara na adaptação de 2019.

Na aurora do século XIX, vampiros não vestiam o manto de demônios noturnos sugadores de sangue. Antes de Dracula (1897), vampiros ofereciam uma intimidade subversiva, perigosa porque proibida, sensual e sedutora, expressa numa imagem dúbia entre amigo/amante, um tipo de relação homoafetiva que ameaçava deslocar os limites das instituições hegemônicas de corpo, gênero e sexualidade. Mas as narrativas góticas atribuíam-lhes afinidades espectrais que, associando o vampiro a fantasmagorias e desmaterializações, dissipavam as implicações tangíveis, corporais e materiais dessa intimidade. Nós encontramos esse deslocamento, essa tensão, nas juras e promessas exigidas por Ruthven do jovem Aubrey, seu encantado companheiro de viagens em The Vampyre (1818), de John Polidori. E também na ressurreição banhada em luar em Varney the Vampire (1845), de James Malcolm Rymer.

Mas existe uma distinção marcante entre as narrativas vampíricas do século XIX, uma distinção informada por uma diferença de gênero. Por um lado, os vampiros byronianos do XIX são românticos por excelência, misteriosos, carismáticos e perversos. Eles vagam além da imposição patriarcal, cuja autoridade, no entanto, reivindicam, e assim suas promessas de intimidade homoerótica jamais se concretizam. Mais tarde, o Drácula de Bram Stoker, uma criatura dada a sortilégios hipnóticos em vez de artifícios sedutores, alienou o vampiro da presa, encerrando possibilidades afetivas e forjando o vampiro predador, inato ao século XX. Por outro, a vampira, encarnando um desejo sáfico, produzida principalmente por Carmilla (1872), adentra o século XX como uma imagem de transgressão sexual, tornando-se uma figura ambígua de desejo e morte, servindo como repositório para fantasias masculinistas de dominação e poder e, contraditoriamente, em alguns casos, de agência feminina.

Em meados de 1990, a crítica queer chamou atenção ao fato de a ficção gótica apresentar um interesse quase obsessivo – nas palavras da famosa crítica Eve Kosofsky Sedgwick – por questões relativas a corpo, gênero e sexualidade. Os estudos queer produziram uma miríade de discussões profícuas e provocadoras sobre o gótico, ao ponto de George Haggerty afirmar que o gótico ofereceu um modelo histórico para teorias e políticas queer, um modelo transgressivo, repleto de códigos sexuais e resistente à ideologia dominante (Haggerty, 2006). Vale destacar que queer, aqui, não é sinônimo da sigla LGBTQ+. Queer é um termo combativo e político: “o queer é um lugar de crítica, um ponto de vista, um locus epistemológico para se pensar questões de corpo, sexo, gênero e sexualidade” (Alós, 2020, p. 7). É a premissa que permite a Paulina Palmer defender que gótico queer seria uma abordagem temática, estrutural e analítica que leva em consideração as implicações políticas de identidades queer, uma abordagem calcada num ponto de vista queer.

Nessa conversa, o vampiro representa um vetor onde convergem ansiedades sociais a respeito de políticas queer. Em Tracking the Vampire (1991), um ensaio que se tornaria uma referência para essa discussão, Sue-Ellen Case afirma que vampiros sempre tiveram um aspecto queer porque performam suas identidades fora ou à margem do discurso hegemônico, daquilo que é sancionado e permitido, sedutores apesar (ou por causa) de sua dita perversidade. Em estudos mais recentes, Nick Groom (2018) associa narrativas vampirescas ao surgimento de políticas sobre o corpo, pois o vampiro representa uma das primeiras instâncias articuladas de disputa por poder social e autonomia individual travada nos territórios do corpo.

Questões sobre o corpo, no gótico, têm forte relação com a monstruosidade. Monstros, concebidos de maneira excessiva, representam os perigos da transgressão, da dissolução de limites entre o sancionado e o tabu. Mas o discurso hegemônico é implacável. O monstro tende a ser aniquilado na tentativa de restituir a normatividade ameaçada por sua simples existência. Claro, esse retorno nem sempre é possível, e os resultados são frequentemente catastróficos. Nessa lógica, o vampiro talvez seja o monstro moderno mais emblemático. E o vampiro sobreviveu à virada do século XIX, incorporando ansiedades sociais contaminadas de uma ambiência política e ideológica sem a qual nossos terrores solitários não apresentam capacidade de disseminação.

Algo a ser considerado a respeito da construção narrativa da vampira é o fato de que, ao ler homoerotismo em certas histórias, psicanalistas, médicos e outros intelectuais do século XIX e início do XX normalmente liam a partir de um ponto de vista binário e heteronormativo que, por vezes, sequer corresponde a performances de desejos homoafetivos, sobretudo sáficos. Isto é visto em psicanalistas e sexólogos do século XIX, como o infame Havelock Ellis, cuja obra se difundiu durante as primeiras décadas do século XX. A partir dos estudos de Ellis, o modelo heteronormativo de desejo sexual foi imposto a sujeitos queer: há sempre alguém que penetra e alguém penetrado, como se essa fosse a única forma possível de satisfação erótica. Em narrativas cinematográficas vampíricas, essa ansiedade a respeito de penetração é realocada na boca da vampira, um orifício considerado feminino pela psicanálise nascente, mas que possui a habilidade insidiosa de penetrar, assim como essas conjecturas pseudo-científicas.

A partir do advento do cinema, particularmente, o gótico tornou-se bastante difuso entre diversos discursos culturais. E o cinema garantiu a popularidade e a aparente permanência do mito moderno do vampiro. Desde o Nosferatu (1922) de F. W. Murnau, passando pelo emblemático Drácula de Bela Lugosi, pela homoafetividade evidente dos vampiros de Anne Rice, até às angústias conservadoras de Stephenie Meyer, o vampiro encontrou um lugar proeminente como vetor das ansiedades sociais relativas à sexualidade no cinema do século XX e XXI. Em um livro bastante abrangente, Vampires and Violets (1993), Andrea Weiss comenta que aqui ainda vemos aquela distinção narrativa informada por gênero: o sedutor byroniano, cheio de promessas homoafetivas, e a vampira lésbica, o terror das convenções heteronormativas. Isto porque, para Weiss, “a vampira lésbica é ao mesmo tempo atraente e ameaçadora para os homens, em parte porque ela expressa um desejo sexual ativo” (Weiss, 1993, p. 90).

A figura da vampira persiste século XX adentro no cinema de horror. Nós a encontramos tanto na pretensão estética de alta cultura de Vampyr (1932), dirigido por Carl Dreyer, quanto em The Vampire Lovers (1970), dos estúdios Hammer, uma adaptação algo pornográfica de Carmilla em que a vampira serve como instrumento de afirmação do discurso heteronormativo. Em outras produções, como The Hunger (1983), Carmilla (2019) ou Bit (2019), ela assume um papel contestador, reivindica a materialidade de seu desejo queer, nem sempre se conforma ao discurso hegemônico e tampouco oferece uma resolução conciliatória.

Muito já se discutiu sobre o impacto do cinema, particularmente das primeiras estrelas hollywoodianas, como Louise Brooks e Clara Bow, na cultura das décadas de 1920-1930, durante a ascensão do cinema. Claro, o poder e o fascínio exercido pelas estrelas do cinema foi sempre focado em audiências heterossexistas, assim como os valores que as produções incutiam na audiência. Filmes ensaiavam como jovens deveriam se relacionar em questões afetivas, ensinavam flertes, construíam a noção de desenvolvimento amoroso e romântico e instigavam avanços eróticos às margens do discurso instituído. Estrelas serviam como um ponto de foco para fantasias de cunho erótico. Tendo isso em vista, o processo de aderência da audiência às produções era bastante relativo, pois “personagens não eram codificadas como lésbicas. Em vez disso, a lesbianidade assumia a forma de uma identificação feminina” (Weiss, 1993, p. 17). E esse é um processo que ainda vemos operar em relação ao cinema contemporâneo.

A vampira funde imagens de transgressão: ela é uma figura complexa, ambígua, fundamentada em medos profundos que os vivos sentem dos mortos e que os homens sentem da agência feminina. A imagem mais tradicional do vampiro expressa e reprime a sexualidade, mas a vampira opera num campo particularmente sexual em vez de sobrenatural. No cinema mainstream do século XX, a emergência da representação de vampirismo como lesbianidade reflete a patologização das relações entre mulheres promovida por autoridades médicas e instituições culturais. Aqui, a vampira, como metáfora, servia para reforçar a transição das relações de amizade íntima ou romântica, socialmente aceitas em meados do século XIX, para a redefinição dessas relações como algo desviante e pernicioso no início do século XX.

Ainda que a imagem da vampira sáfica tenha emergido nesse período, ela pode ser rastreada até Carmilla (1872), de Joseph Sheridan Le Fanu, e dela a Christabel (1818), de Samuel Taylor Coleridge. Carmilla, uma vampira aristocrata e hóspede fortuita na casa de Laura, apaixona-se pela jovem vítima. Ela é caracterizada de maneira empática e age baseada em paixão em vez de malícia. Com poucas exceções, o que sobreviveu de Carmilla (1872), através da literatura vitoriana, e adentrou o cinema do século XX, foi uma expressão muda de lesbianidade, não mais uma vampira empática, mas uma fantasia pornográfica criada por e para um olhar masculinista – o “olhar masculino” discutido por Foucault. Esta é a representação mais comum no cinema do século XX, pelo menos até meados dos anos 1980. Vamos examinar alguns filmes que receberam atenção da crítica.

Vampyr (1932), dirigido por Carl Dreyer, foi o primeiro filme de vampiros que, até onde se sabe, não foi baseado em Dracula. Dreyer afirmava se tratar, na verdade, de uma adaptação bastante livre de Carmilla. Apesar da suposta fonte, Vampyr evita não apenas retratar qualquer intimidade erótica, como qualquer contato empático entre a velha vampira e Léone. As personagens apresentam uma forte incompatibilidade visual e corporal evidenciada por diferenças marcantes entre idade avançada e juventude, imponência e fragilidade, o que transforma o vampirismo em um tipo de hipnotismo desprovido de materialidade. O desenvolvimento narrativo é estruturado em torno do olhar masculino de um observador, Alan Grey. Nós o assistimos assistir à interação entre sombras demoníacas e personagens humanas, ler atentamente relatos de especialistas e sonhar que é sepultado vivo. O vampirismo, no filme, define-se como a experiência de Alan Grey, seus sonhos, sua criação. O espectador é impedido de participar do jogo de desejos e afeições. Nós apenas assistamos Alan assistindo.

Cena do filme Vampyr (1932) em que a vampira se debruça sobre Léone.
A cena em que a velha vampira assoma sobre Léone ressoa a pintura The Nightmare (1781) de Henry Fuseli.

 

O filme Et Mourir de Plaisir (1960), lançado nos Estados Unidos com o título de Blood and Roses, dirigido por Roger Vadim, é menos ambicioso que Vampyr, mas a dinâmica visual é a mesma: duas jovens, uma loura, outra morena, desfilam eroticamente diante do olhar ambivalente de Leopoldo, que ambas amam. A princípio, o filme parece mediar uma afinidade homoerótica entre a vampira Carmilla e Georgia através da figura de Leopoldo, um processo semelhante ao que ocorre na ficção vampírica do século XIX. Por exemplo, no conto The Vampyre (1819), de Polidori, a relação homoerótica entre o vampiro Ruthven e o jovem aristocrata Aubrey é mediado por diversas figuras femininas, ingênuas apaixonadas que acabam tornando-se vítimas do vampiro. Em Blood and Roses, no entanto, a relação entre a vampira e sua (possível) presa é desenvolvida através de um triângulo amoroso cujo foco é o olhar masculino. De fato, esse processo de heterossexualização compulsória torna-se frequente nas adaptações de Carmilla no cinema do século XX, um processo que destitui a vampira de sua performance queer (performance, aqui, diz respeito à noção de identidade discutida por Judith Butler. Nossas identidades são constituídas através de atos performativos que, quando se cristalizam via estilização repetida do corpo, dão a impressão de uma verdade essencial. A distinção é importante, visto que em vários discursos reacionários pelas mídias sociais tenho encontrado o termo “performance” associado a algo “falso”. Certamente, uma tentativa de destituir sujeitos queer de noções que podem subsidiar agência).

The Vampire Lovers (1970), dirigido por Roy Ward Baker, é a primeira de três produções conhecidas informalmente como “Karnstein Trilogy”, seguida por Lust for a Vampire (1971) e Twins of Evil (1971), produzidas pelo prolífico estúdio Hammer na década de 1970. The Vampire Lovers é uma das mais lembradas e comentadas produções do estúdio, em parte por ser estrelado por Ingrid Pitt, no papel de Carmilla, que se tornou uma figura cult do cinema de horror (e posteriormente como autora), lembrada por seus papéis vampíricos, como em Countess Dracula (1971), também dos estúdios Hammer. A variação de Carmilla adaptada pelo estúdio Hammer parece mostrar-se hostil às noções de arte e alta cultura caras a diretores como Dreyer, por exemplo. Assim como a maioria dos títulos do estúdio Hammer, The Vampire Lovers exulta uma alegre opulência semi-pornográfica que, em certos aspectos, é até ousada para o período. Mas de maneira semelhante à Vampyr e Blood and Roses, o interesse da vampira pela presa é dependente de um olhar masculino. Se não há um personagem principal em torno do qual o desejo de Emma e de Carmilla orbitam, as personagens e seus corpos são sempre representadas como que em uma vitrine para a contemplação erótica de um subentendido olhar masculino. A narrativa conta também com a presença de um caçador de vampiros que surge no início e no fim da produção para reestabelecer o equilíbrio fraturado pela invasão vampírica empreendida contra a paz doméstica de Emma e sua família. Ou seja, a narrativa em voice-over do personagem emoldura e exerce controle sobre a história das figuras femininas. Por mais que a própria Ingrid Pitt veja uma “personagem forte” na Carmilla do estúdio Hammer, ela só tem permissão de agir sob o olhar masculino. Além disso, é preciso admitir que The Vampire Lovers ajudou a estabelecer certas convenções narrativas para produções subsequentes, como a exploração do valor voyeurístico da relação entre a vampira e a vítima.

Os momentos de intimidade entre Carmilla e Emma sempre pressupõem um observador masculino.

 

No fim dos anos 1970, conforme a censura em países como Estados Unidos e Inglaterra se amenizava, uma censura produzida pelos jogos de poder da Guerra Fria que visava mitigar representações consideradas subversivas e perniciosas (e existe uma implicação homofóbica nessa determinação), a vampira passou a ser novamente reinterpretada. A figura de Carmilla emerge com mais consistência a partir de 1980, assumindo múltiplas formas, seja em adaptações, releituras ou ecos longínquos. Miriam Blaylock, a protagonista do filme Hunger (1983), baseado no romance homônimo de Whitley Strieber, apresenta-se como uma afluente gótica de Camilla – ainda que nem o romance de Striber nem o filme dirigido por Tony Scott reconheçam a herança sáfica de Carmilla. Striber, no romance, remete à Lamia de John Keats, que, assim como Miriam, importa-se menos com sonhos do que com performances de uma identidade subversiva, marcadamente material. Mas Lamia seduz apenas homens, e Miriam performa uma sexualidade bissexual, mais fluida e contestadora. Seu amante, John, definha devido às intricadas dificuldades do processo de transformação em vampiro. Na mitografia de Striber, Miriam é uma vampira “original”, pois nascera vampira. Embora ela possa transformar mortais, ela não compreende completamente o processo de transformação. Por isso, seus amantes definham depois de alguns séculos. Incapaz de tolerar uma eternidade sem contato afetivo, ela agora corteja a jovem Alice. Mas logo suas atenções se voltam à Sarah, uma cientista que estuda os efeitos da privação de sono.

Ao contrário das vampiras anteriores do cinema, que desfilam sob um olhar masculinista, Miriam e Sarah de fato conversam, trocam impressões, se apaixonam. Aqui, a vampira possui capacidades sobrenaturais de influenciar os sonhos, além de apresentar um carisma descomunal que fascina (e assombra) seus pares. A Miriam de Striber mostra-se uma criatura atemporal que sobreviveu a ascensão e queda de impérios e a séculos de perseguição. A Miriam de Scott, por outro lado, adere à estética de subcultura gótica dos anos 1980 – algo anunciado na abertura do filme, uma experimentação estética que intercala cenas do filme com a banda pós-punk Bauhaus tocando Bela Lugosi’s Dead. Nina Auerbach insiste que Miriam representa “o glamour dos anos 1980, subordinando a história a objetos sedutores: joias, móveis, casas luxuosas em cidades glamorosas […]. Respondendo às histórias de sucesso de uma década consumista, Miriam vive através de suas coisas” (1995, p. 57). A afirmação é um tanto descontextualizada, em parte porque Auerbach tece uma comparação derrogatória entre elementos hegemonicamente concebidos como femininos (joias, gosto por decoração e roupas) a uma noção de consumismo e futilidade.

O que Auerbach perde aqui é justamente a adesão de Miriam à subcultura gótica. A marcante materialidade da performance de Miriam, na verdade, evidencia o caráter estético de sua performance queer. A subcultura gótica define-se através de um intuito de estetizar e remistificar a vida moderna, subvertendo o substrato utilitarista da cultura contemporânea. Essa estilização da vida, através de práticas de vestuário, moda, maquiagem e acessórios, fundamenta também a estilização da identidade individual, um processo atrelado a questões de gênero e sexualidade. Essa estilização é justamente o que vemos em Miriam. Ela de fato vive através de suas coisas, como sugere Auerbach, mas não pelas razões que a autora pressupõe. Ao contrário de uma abstração consumista, a estética de Miriam é uma estética do desejo, subversiva porque material, porque investe corpos de desejo, porque performa sexualidade no e através do corpo. Miriam não é um espectro, ela é material, e mesmo seus artifícios retóricos e sobrenaturais têm como produto uma extrapolação do prazer consumado, que culmina quando as personagens dormem juntas. Essa performance subversiva é emblemática. Depois que os amantes de Miriam começam a definhar, eles perdem a consciência e tornam-se como os vampiros folclóricos: revenants – mortos retornados e autômatos malditos. Miriam então os resguarda em caixões de madeira com a mesma acuidade com que trata suas obras de arte. Isto porque, para Miriam, arte é uma expressão material do desejo, e estética e moral são o mesmo para ela. Amor é estética. E performar amor é amar.

Sarah se despe diante do olhar de Miriam, o que já demonstra uma mudança de ponto de vista nas produções vampíricas.

 

Temos também a adaptação televisiva Carmilla (1989), dirigida por Gabrielle Beaumont. A história se passa no sul dos Estados Unidos, antes da guerra da Secessão, e a produção não se exime de estabelecer uma relação empática entre a vampira e a presa, Marie. No entanto, a intensidade do contato homoerótico é purgada por um final moralizante em que a própria Marie destrói Carmilla, aniquilando os vestígios materiais desse amor dissidente. Já em Styria (2014), dirigido por Mauricio Chernovetzky e Mark Devendorf, existe um interesse inicial mútuo entre Carmilla e Lara. No entanto, aqui, Carmilla é mais fantasma que vampira e a promessa de intimidade, muito aos moldes do vampiro byroniano do século XIX, jamais chega a se concretizar. O desejo de Carmilla por Lara é deslocado, reelaborado, assumindo uma ambiência espectral que abstrai esse desejo queer de qualquer materialidade, realocando-o como metáfora para luto. A relação entre desejo (homoafetivo) e luto é emblemática aqui, desenvolvida como se fosse a única implicação possível da relação homoerótica entre as jovens.

Em 2019, Emily Harris escreveu e dirigiu a produção Carmilla. O filme é provavelmente a adaptação mais próxima da novela de Le Fanu, tanto em questão de enredo, quanto temática. Carmilla, depois de um acidente com uma diligência, torna-se uma hóspede fortuita na residência de Lara. Há duas diferenças significativas em relação à novela de Le Fanu. Primeiro, o papel determinante atribuído à preceptora de Lara, Miss Fontaine. Segundo, o fato de que, depois das primeiras cenas, todos as figuras masculinas como que desaparecem da trama. De fato, é o ciúme que Miss Fontaine nutre por sua jovem aluna, um sentimento homoafetivo tão intenso quanto reprimido, que desencadeia a catástrofe em que narrativa culmina.

Lara apresenta um interesse obsessivo por anatomia humana. Proibida de ter acesso a livros de medicina, elas os rouba na calada da noite para analisar as gravuras de órgãos, músculos e artérias. Em seus sonhos, ela vivencia imagens de horror corporal: ela pratica necropsia e desvenda entranhas humanas em um movimento carregado de implicações eróticas. No filme, o vampirismo aparece como uma mediação simbólica da relação homoerótica entre Lara e Carmilla, traduzida pelo compartilhamento de sangue: as jovens escapam juntas de seus claustros, usam o próprio sangue para umedecer os lábios e tornam-se irmãs de sangue, um sangue compartilhado através de beijos notívagos.

O poema “To His Coy Mistress”, de Andrew Marvell, decorado por Lara como tarefa instrutiva a pedido de Miss Fontaine, dá cor e tom à relação das duas. Apesar de alguns críticos já terem apontado certos elementos homoafetivos codificados em poemas de Marvell, “To His Coy Mistress” parece resolutamente heterossexual: um jovem tentando, através de versos incisivos, convencer a tímida amada a consumar seus desejos. E justamente por soar tão normativo é que o poema assume sentidos bastante subversivos quando declamado por Laura: “Necessito cem anos para louvar/ teus olhos e amar tuas feições;/ duzentos para adorar cada seio,/ e trinta mil para cada outra porção tua.” Posteriormente, quando Lara declama o poema, a câmera foca no rosto de Miss Fontaine, que a observa, percebendo que a garota está bastante ciente das implicações eróticas que os versos estabelecem com sua nova amiga. Mais tarde, Lara declama o mesmo poema para Carmilla. Nesse jogo, Lara reivindica os versos como emblema de um amor homoafetivo e, ao reinscrevê-los em sua história sáfica, atribui-lhes um sentido que o poema jamais tivera a intenção de ter; Laura torna o poema de Marvell queer. Um movimento crítico perspicaz da diretora e roteirista Emily Harris, que inclusive explicita a pertinência do ponto de vista para produções queer.

Carmilla passa sangue nos lábios antes de beijar Lara. Aqui, as cenas são em primeiro plano, bastante íntimas, focando na troca de olhares entre as personagens.

 

Miss Fontaine descobre Lara e Carmilla compartilhando beijos sangrentos e, em fúria, trata de encarcerá-las em quartos separados. A cena é uma analogia à enfermidade misteriosa na novela de Le Fenu, pois aqui Lara se recusa a comer e começa a definhar. A duras penas, Carmilla e Lara tentam escapar, mas, Miss Fontaine, engendrando pânico moral no médico e nos funcionários da família, persegue as jovens e estaqueia a suposta vampira. Até aqui, o vampirismo de Carmilla é apenas sugerido, e de fato jamais temos qualquer conclusão sobre isso. Sem Carmilla, os momentos finais ecoam mais uma vez o poema de Marvell: sem a presença da amante, sem a consumação do desejo, resta apenas uma vida traduzida em “desertos de vasta eternidade”. Mas há algo de Coleridgeano na cena final: Lara está em pé diante de um lago, mas seu reflexo na água mostra Carmilla. Soa como um intercâmbio de identidades, como em Christabel, de Coleridge. Dúbio, corporal e irremediavelmente íntimo. Como a figura da vampira.

O verdadeiro rito de proteção contra vampiros no século XX não era o crucifixo, alho ou orações, e sim a imposição do discurso hegemônico. Os vampiros gerados por Drácula, o predador concebido no romance de Stoker, apresentam diversos sentidos, negociam com diferentes questões dissidentes, mas eles perderam a capacidade de estabelecer intimidade, de compartilhar afetos – até porque o tom e a estética de Bram Stoker’s Dracula (1992), como o próprio diretor Francis Ford Coppola já afirmou, foi muito mais baseado em Anne Rice do que na própria obra de Stoker. No século XIX, vampiros ofereciam intimidade, afetividade compartilhada em relações homoeróticas, que ameaçava discursos sancionados. Esse sentido persistiu em algumas obras, como no filme Interview With the Vampire (1994), adaptação do romance de Anne Rice. Recentemente, encontramos temas acidentalmente queer na série Anne Rice’s Interview With the Vampire (2022), que apresenta questões interessantes, apesar de ter sido escrita de um ponto de vista heteronormativo, reforçar estereótipos e culminar em uma confusão constrangedora em questão de enredo. Na mesma medida, Bit (2019), dirigido por Brad Michael Elmore, vai muito bem até o final. Uma jovem trans é transformada e acolhida em meio a uma comunidade sáfica de vampiras. Mas no final, a produção toma um rumo moralizante e heteronormativo, sacrificando todo desenvolvimento de personagem feito até então. Nada novo sob o sol: o discurso hegemônico é implacável e precisa impor a si mesmo para restituir a cisheteronormatividade e manter as ameaças produzidas por desejos dissidentes longe da frágil hegemonia.

Mas a vampira persiste no cinema, na televisão, em streaming, no imaginário ocidental. Em alguns casos, quando o vampiro encontra o camp, produções de comédia são capazes de oferecer um tipo particular de agência feminina, como em So Vam (2021), dirigido por Alice Maio Mackay, e The Carmilla Movie (2017), dirigido por Spencer Maybee, baseado na web série homônima independente difundida pelo Youtube entre 2014 e 2016. Em outros casos, ela ainda encarna o medo e o desejo que nossa sociedade masculinista e sexista sente da agência feminina. Mas, de um jeito ou de outro, ela emerge, feral como Carmilla, para mostrar que agência é possível e que existe poder em reivindicar essa ameaça e esse medo. Ela oferece, como Carmilla, “o arrebatamento daquela crueldade que, ainda assim, é amor” (Le Fanu, 2008, p. 263).

 

Referências

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LE FANU, Joseph Sheridan. Carmilla. In: LE FANU, Joseph Sheridan. In a Glass Darkly (1872). Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 243-319

SEDGWICK, Eve Kosofsky. The epistemology of the closet (1990). Berkeley, LA: University of California Press, 2008.

STOKER, Bram. Dracula (1897). New York: Signet, 1965.

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