Pular para o conteúdo

Literatura policial e violência contra a mulher: autores reagem a críticas4 min read

Livros de Agatha Christie

Autores de literatura policial criticaram a afirmação por parte dos organizadores do Staunch Prize de que representações ficcionais de violência sexual influenciam os resultados de julgamentos de casos de estupro, reportou o The Guardian ontem (05). Traduzimos um trecho da matéria a seguir. 

O Staunch Prize, que considera exclusivamente thrillers em que nenhuma mulher seja agredida, perseguida, explorada sexualmente, estuprada ou assassinada, foi lançado no ano passado para “oferecer uma narrativa alternativa às histórias baseadas em violência contra mulheres”. Quando foi anunciado, o prêmio foi amplamente criticado por escritores como Val McDermid e Sophie Hannah.

McDermid disse que “enquanto os homens cometerem atos terríveis de misoginia e violência contra as mulheres, eu escreverei sobre isso para que não passe despercebido”. Hannah determinou a seus editores que não submetessem seus livros para o prêmio.

O Staunch Prize, que abriu inscrições para sua edição de 2019, cita o que chama de um crescente corpo de pesquisa sugerindo que jurados “relutam em condenar homens ‘comuns’ acusados de estupro, já que não se encaixam na imagem de estupradores que internalizaram através de histórias e imagens que receberam através da cultura popular ” e que:

“Estereótipos ficcionais de stalkers noturnos, agressores em becos escuros, serial killers e estranhos ameaçadores são perigosamente enganosos quando 90% dos estupradores são conhecidos da vítima e a maioria das mulheres assassinadas conhecia seu assassino. Que isso possa afetar seriamente a justiça para as mulheres é alarmante, para dizer o mínimo, e é algo que deve ser discutido. Por essas razões, e porque amamos escrita de qualidade, convidamos autores de thrillers a nos trazer histórias fortes que não recorram aos velhos clichês de sempre”.

Steve Mosby, cujo romance mais recente You Can Run retrata um assassino que sequestra mulheres ao longo de 20 anos, disse que a sugestão de que autores de literatura policial que escrevem sobre violência contra a mulher promovem isso na vida real é “não apenas ofensiva, mas também retrógrada e equivocada”.

“Muitos escritores de literatura policial exploram esse tipo de material porque acreditam que é importante não varrer para debaixo do tapete – e fazem isso com cuidado e sensibilidade, compaixão e bom senso. A mensagem passada pelos organizadores do Staunch Prize sugere que eles não leram muitas obras do gênero”, disse Mosby.

Julia Crouch, cujos romances incluem Cuckoo e Her Husband’s Lover, disse que adora escrever sobre “mulheres que se comportam ‘mal’. Por causa disso, elas se encontram em situações perigosas e às vezes se machucam”, disse ela. “[O Prêmio] está mesmo sugerindo que eles fiquem em casa tricotando?”

Sarah Hilary, autora da série policial Marnie Rome, disse que o Staunch Prize “não é um prêmio, mas um amordaçamento”.

“A violência contra a mulher assume muitas formas, talvez a mais insidiosa delas seja a censura. Somos desencorajadas de ir até a polícia porque podem não acreditar em nós, nos ensinam a esperar resistência à nossa versão dos acontecimentos, silenciadas pela vergonha ou pelo medo”, disse ela. “Este Prêmio reforça todas essas mensagens negativas e ignora o bem real que a ficção policial pode fazer ao refletir a realidade violenta da vida de muitas mulheres.”

A fundadora do Staunch Prize Bridget Lawless disse que o Prêmio não havia alegado que “os escritores de ficção policial que lidam com a violência sexual estejam contribuindo para isso na vida real. (…) Mas estamos preocupados com a forma como as mulheres são retratadas como vítimas de tortura extrema, estupro e assassinato, descritos graficamente, sangrentos, aterrorizantes e prolongados, normalizados e oferecidos como entretenimento. E adivinhe, muitas outras pessoas também estão preocupadas, incluindo leitores que rejeitam isso por uma questão de preferência, e aqueles que trabalham para acabar com a violência contra a mulher”, disse ela. “Como celebrar a violência contra a mulher dessa forma aprofunda nossa compreensão das questões sociais, como tantas vezes afirmam? Onde está a pesquisa que demonstra que esse tipo de escrita faz algo socialmente positivo?”

Ela apontou para a recente queda nos processos por estupro, apesar da incidência crescente. “Aqueles que pesquisam e oferecem recomendações em relação a mitos sobre o estupro dizem que o público não reconhece o estupro em muitas situações que realmente são [de estupro]. Isso poderia ser porque as pessoas têm em mente uma ideia do que é um ‘estupro real’ e um ‘estuprador real’? Do tipo que eles veem na TV ou leem nos livros?” ela disse. “É verdade, talvez, a pesquisa que nos diz que o fato de muitos de nossos jurados terem ideias fixas e errôneas sobre estupradores é parte da razão pela qual eles não fazem condenações em 90% dos casos em que a vítima conhecia o estuprador? O Staunch Prize celebra os thrillers que são uma alternativa aos romances que retratam violência contra a mulher. Se você tiver algum problema com isso, pergunte-se por quê.”

 

Publicado por

Marcela Santos Brigida
Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *