Ser fã nos anos 2000 era uma grande aventura e, com a chegada da internet entre a juventude da época, veio também a escrita das fanfics (fanfiction), um lugar onde fãs de diversos artistas podiam soltar a imaginação com narrativas tendo como protagonistas seus ídolos.
Entretanto, as fanfics ganharam novas vertentes: das telas para os livros, dos livros para as adaptações midiáticas. Até que ponto devemos considerá-las boas ou ruins?
Para analisar esse questionamento, precisamos voltar alguns anos. Em 2010, a banda britânica One Direction foi formada com 5 integrantes (Harry Styles, Liam Payne, Louis Tomlinson, Niall Horan e Zayn Malik), no programa The X-Factor. É importante destacar que a banda não ganhou o prêmio final, que seria, teoricamente, 1 milhão de libras esterlinas, o que equivale a cerca de 1,6 milhões de dólares. No entanto, uma parte do valor é utilizada para pagar os custos de gravação e comercialização do artista vencedor. Os meninos não ganharam o prêmio, ficando em terceiro lugar, os membros acreditavam que o grande sonho de uma carreira acaba por ali. Porém, eles não contavam com dois grandes elementos: o poder dos fãs e o poder da internet.
Em pouco tempo, a banda já estava no Top 1 das #Trendings do Twitter e já tinham milhares de fã clubes dedicados. Os fãs construíram uma One Direction tão forte a ponto de muitos hoje ainda acharem que a banda realmente ganhou o grande prêmio final, quando isso nunca aconteceu.
No universo das fanfics, a banda esteve presente em muitas histórias e narrativas. Algumas delas possuem repercussões até hoje, ganhando adaptações para os cinemas e serviços de streaming.
Lançada em 2013, foi só uma questão de meses para a fanfic escrita por Anna Todd, After, se popularizar e atingir a marca de mais de 1,6 bilhão de leituras online; o que destaca os livros da série como os mais lidos de toda a plataforma Wattpad. Vale notar que o cantor tinha apenas 17 anos quando a história foi escrita. O primeiro filme da série foi lançado no cinema em 2019, e o sucesso de telespectadores foi tão significativo quanto o de leitores. Outros três filmes, que dão sequência à série, vieram nos anos seguintes (2020-2022).
O protagonista da fanfic, Harry ou Hardin, pode ser visto como um anti-herói pensando no modelo de Joseph Campbell (1900-1995) da “Jornada do Herói” em que o protagonista abandona a vida ordinária, mergulha no desconhecido e retorna à dimensão cotidiana. Campbell defende a ideia de universalidade psicológica das narrativas, ou seja: todas as histórias heroicas são na verdade a repetição de uma única estrutura narrativa.
Nesse caso, o protagonista, que, segundo os padrões socialmente impostos, deveria ser o herói, já é desde o início o anti-herói da sua própria história. Sua história é contada e, de uma certa forma, usada para justificar suas atitudes ao longo dos seus livros, atualmente publicados. Hardin (Harry) veio para libertar Tessa das amarras de sua família, de uma vida politicamente correta que a mãe projetou para ela.
A criação de um personagem completamente problemático e cheio de traços abusivos inspirado em uma pessoa real pode não ser uma boa escolha. Muitos fãs, da banda e do cantor em sua carreira solo, não gostam de vê-lo sendo associado ao romance.
Harry Styles, ex-integrante da banda, serviu de inspiração na grande maioria das fanfics. O cantor nunca falou abertamente sobre aprovar ou desaprovar as histórias criadas em seu nome, e, ao ser perguntado em uma entrevista para rádio SiriusXM no programa de Howard Stern em Maio 2022 sobre a adaptação do romance After, (inicialmente uma fanfic o tendo como protagonista) desconversou e disse não saber muito sobre o assunto:
“Eu não sei o quanto… Eu não sei, eu realmente não sei. Eu não sei se eu posso confirmar. Eu não estou inteirado sobre a origem do roteiro ou sei lá. Eu já ouvi sobre a adaptação, sim. Mas eu não sei em termo de… Eu não estou totalmente certo.”
Assim que o romance foi lançado, fora da plataforma Wattpad, lugar que foi primeiramente publicado, a autora Anna Todd trocou o nome do protagonista, passando a ser Hardin e não Harry. Quando questionada sobre a escolha em entrevista com a revista ESTANTE, a mesma afirma que:
“[…] seria estranho publicar um livro com o nome de uma pessoa real. Mesmo que não fosse fã da banda, acharia que seria estranho e inapropriado fazê-lo. Embora o livro seja inspirado neles.”
Outro caso parecido teve sua estreia recentemente na plataforma Prime Video. The idea of you ou Uma ideia de você deu muito o que falar na mídia uns meses atrás. O motivo? A narrativa da história é muito parecida com aquela construída no meio das fanfics.
A protagonista é mais velha, possui uma filha e, por um acaso do destino, acaba tendo que levar a filha a um festival onde sua banda preferida irá tocar. Por engano a mulher entra em um trailer estacionado achando que era um banheiro e dá de cara com um dos integrantes da banda favorita da filha, Hayes Campbell. Coincidência, né? Logo de cara o cantor esboça um ligeiro interesse na protagonista e tenta descobrir tudo sobre ela, aparecendo de surpresa até no trabalho dela.
A comédia romântica também foi inspirada em uma fanfic sobre Harry Styles, escrita por Robinne Lee e publicada como livro em 2017, que mostra os personagens interpretados por Anne Hathaway (O Diabo Veste Prada) e Nicholas Galitzine (Vermelho, Branco e Sangue Azul). A autora Lee até então nunca confirmou se de fato se inspirou em Harry Styles e até mesmo evita usar a palavra “inspirado” para descrever a relação da obra com Styles, mas admite que o cantor pautou boa parte do personagem de Galitzine, e que ela assistiu e pesquisou muito sobre ele para formar Hayes Campbell. Quando perguntada em uma entrevista para Vogue sobre a relação com a narrativa e a vida real, a mesma respondeu:
“Inspirada é uma palavra forte.” […] “Eu o transformei no cara dos meus sonhos”, ela disse, “como um príncipe Harry misturado com Harry [Styles]”.
A semelhança da banda August Moon com a One Direction também chamou muita atenção no filme — se a autora considera que não se inspirou, como é possível tamanha semelhança?
As fanfics têm um significado muito grande para quem foi adolescente na década de 2010. Ter algumas delas transformadas em adaptações parece ser o sonho de muitos. Mas o limbo que a imaginação traz com a realidade e também a necessidade de engajamento, é ser absurda. Harry Styles nunca se mostrou confortável com essa obsessão, causando até um certo sumiço de suas redes sociais. Na época em que as fanfics chegaram, os meninos da One Direction ainda eram muito controlados por sua antiga gestão, o que também era fortemente influenciada pela imagem que a mídia iria transmitir e no que os fãs iriam acreditar. As fanfics eram uma resposta dos fãs e até hoje não sabemos se eles receberam como uma resposta boa ou não.
Não é possível, no entanto, deixar de lado o quão poderosas as fanfics se tornaram, sendo definidas como narrativas literárias por evocarem diferentes situações espaço-temporais.
É inegável que por meio das fanfics diversos escritores tiveram a chance de se lançar na escrita de forma autônoma, afinal, sabemos o quanto é difícil conseguir ser publicado por grandes editoras. Além disso, podemos dizer que o universo literário dos fãs foi um dos grandes pioneiros de histórias LGBTQIA+. Graças às grandes fanfics de Once Upon a Time, de Fifth Harmony, One Direction, entre outros, temos hoje muitos livros publicados com uma temática representativa.