Você sabe qual é a diferença entre terror e horror?
No espectro das narrativas do medo, que é também o caso da ficção gótica, nos deparamos frequentemente com essas categorias que, à primeira vista, podem parecer intercambiáveis, mas um estudo cerrado revela diferenças interessantes. Uma pesquisa rápida na Internet afirma que o terror geralmente é descrito como o sentimento de apreensão e antecipação que precede uma experiência aterrorizante, enquanto o horror é o sentimento de repulsa que, em geral, segue uma visão, som ou experiência assustadora. Essa explicação, apesar de usar termos pertinentes a essas duas estratégias narrativas, não está completamente correta quando consideramos os trabalhos feitos, ao longo de séculos, sobre o medo artístico e a produção de prazer estético.
O medo artístico é um conceito central para as narrativas do mal porque propicia uma articulação entre o cognitivo e o sensorial. Ao representarem o mal, essas narrativas provocam medo e podem servir uma função moral: educar leitores para que, através de experiências ficcionais, seja mais fácil evitar perigos. Mesmo que uma de suas funções, respondendo a um aparato de moralidade, seja didática, não é verdade que há uma potência subversiva na liberdade de representar o mal? Afinal, além de tentar instruir o público leitor (o que sempre se diz em defesa de textos subversivos que certamente encontrariam resistência crítica), essas narrativas promovem emoções sensoriais, isto é, uma reação física no corpo: um arrepio que segue da base da coluna à nuca ou a sensação de ter os pelos dos braços arrepiados, além de diversas outras maneiras que o nosso corpo percebe e reage a situações terríveis ou horríveis.
De acordo com o pesquisador David Punter (1998, p. 235), ocorreram diversas tentativas de descrever o terror de forma distinta do horror no período em que textos de ficção gótica eram escritos. Por mais que esse debate não seja tão relevante para nós, leitores contemporâneos, há um legado específico de desvalorização do horror, considerado uma forma de “baixa literatura” e menos transcendente que o terror, que, por sua vez, guarda conexões espaciais e emocionais com o campo do “terrífico” e com o sublime.
Antes de tentarmos uma distinção entre terror e horror, é importante falar, embora de maneira breve, do sublime. Além de um uso religioso (em virtude de sua afinidade com o divino), “sublime” era usado na época clássica como um adjetivo para caracterizar um estilo de discurso elevado e grandioso. Por muito tempo esquecido, foi recuperado somente no século XVII pelo poeta e crítico francês Nicholas Boileau ao traduzir, como parte de um projeto neoclássico, o tratado grego Peri Hypsous (Do Sublime, 1674), de autoria desconhecida, mas convencionalmente atribuído a Longino. A partir de então, o conceito do sublime assumiu uma posição central no debate estético europeu avançando até o século XIX (Milbank, 1998, p. 226). Na modernidade, o sublime teve como porta de entrada a Natureza, cuja contemplação seria uma forma de transcendência capaz de propiciar um vislumbre da divindade (estratégia muito comum no romantismo): terrível por natureza, era comumente representado por tempestades, cadeias de montanhas extensas e pela vastidão do oceano, por exemplo. O que configura uma mudança do paradigma neoclássico que privilegiava uma natureza dominada pelo homem representada pelas virtudes do equilíbrio, da ordem e da racionalidade para uma natureza ao mesmo tempo encantadora e incontrolável, aterrorizantemente deslumbrante.
Em contexto inglês, essa tendência culmina no texto seminal de Edmund Burke, Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo (1757). É ainda um texto extremamente influente no romance gótico, que tinha como projeto situar-se não exatamente na recente tradição do romance (novel), mas na do romanesco (romance). Para Burke (1993, p. 48), “tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz”. O sublime, cujo princípio dominante é o terror, tem a ver com dor e deleite (oposto ao prazer[1]), medo e autopreservação. Trata-se de uma experiência estética que provoca uma sensação de vastidão que é, simultaneamente, opressiva e inspiradora, mas que, por ser mediada, é contrabalanceada por uma sensação de segurança ou distanciamento: “Quando o perigo ou a dor se apresentam como uma ameaça decididamente iminente, não podem proporcionar nenhum deleite e são meramente terríveis; mas quando são menos prováveis e de certo modo atenuadas, podem ser – e são – deliciosas” (Burke, 1993, p. 48). Quer dizer, o sublime é uma experiência desconfortável em que o objeto, de certo modo, agride o sujeito; ele afeta o corpo e a mente. Mas é justamente porque se está à distância que é possível retirar dele uma espécie de educação emocional, da qual saímos mais fortes após o exercício intelectual. Fred Botting (1998, p. 124) traz uma descrição interessante do funcionamento do sublime: “Inicialmente sobrecarregado pela magnitude do objeto sublime, o sujeito experimenta uma liberação aterrorizante de energia emocional que estimula um sentido elevado de si mesmo e um movimento de transcendência”.
Ann Radcliffe, uma das pioneiras do romance gótico, é adepta da teoria estética de Burke e faz de seu romance, The Mysteries of Udolpho (1794), quase uma cartilha do sublime. Desempenhando um papel central na narrativa, a autora deriva dele a construção do ambiente gótico e a exploração da psicologia das personagens ao criar uma atmosfera ao mesmo tempo grandiosa e assustadora, onde a natureza sublime e o estado emocional de personagens se misturam no tensionamento (interno e externo) entre a beleza e o medo. Emily St. Aubert, a protagonista do romance, é constantemente afetada pelo impacto psicológico do sublime: ao experimentar uma sensação de terror que é também inspiradora, ela tem o entendimento de si mesma e do mundo elevados, o que a leva a um crescimento pessoal e a um senso de transcendência.
Radcliffe também se dedica a pensar a diferença estética entre terror e horror em “On the Supernatural in Poetry” (1826). Para a autora, “O terror e o horror são tão opostos que o primeiro expande a alma e desperta as faculdades para um grau alto de vida; o outro contrai, congela e quase aniquila essas faculdades” (Radcliffe, 2000, p. 168). A diferença, então, está no efeito que cada um produz no leitor. O terror não se concretiza aos nossos olhos, mas é percebido/sentido somente através de vislumbres que instigam a nossa imaginação, de modo que cabe a nós completar essa imagem; é marcado pela obscuridade e deixa algo para a imaginação exagerar. O horror, por outro lado, é dominado por uma confusão que borra uma imagem contra a outra e deixa apenas o caos no qual a mente não consegue encontrar nada que seja magnífico, nada que alimente seus medos ou dúvidas ou que possa ser, de alguma maneira, explorado. Na perspectiva de expansão dos sentidos, o terror se liga ao sublime, enquanto o horror, cujo objeto permanece incerto, causa somente confusão e caos.
Essa é ainda, mais ou menos, a distinção que se faz entre terror e horror atualmente, embora a atribuição de valor literário a um em detrimento do outro já não seja mais um dos argumentos na discussão. Para Punter, essa distinção é a seguinte:
O horror, podemos dizer, é grosseiramente letal. Está relacionado com o que nos assusta ou nos provoca nojo até à morte. O terror, por outro lado, tem a marca de um regime: é mais profundo e menos absoluto que o horror, oferecendo-nos as possibilidades duais de submersão numa condição de abjeção política e, ao mesmo tempo, a ideia de uma fuga para um reino onde o terror cessou e podemos ressurgir de nosso esconderijo. O horror, podemos dizer, induz ou capitaliza sobre a impotência. Do terror, podemos obter uma certa percepção de nós mesmos e retornar ao mundo, sem dúvida mais tristes, mas também potencialmente mais sábios (Punter, 1998, p. 235).
Não é como se um romance ou qualquer texto ficcional lidasse somente com uma dessas estratégias narrativas, mas acontece, por vezes, uma mistura de ambas. Em Udolpho, de Radcliffe, por exemplo, encontramos tanto terror quanto horror. Ao perambular pelos corredores do castelo à noite, Emily se depara com uma moldura coberta por um véu escuro. Curiosa, espia o que está por trás dele e, em consequência, cai desmaiada. Para Botting (1998, p. 125), esse encontro sobrenatural é dominado por um horror tão apavorante que não encontra representação nos pensamentos ou nas palavras de Emily, de modo que só é descrito e resolvido centenas de páginas depois de acontecer. É somente quando a natureza real do objeto é descoberta que a experiência pode ser recontada: aquilo que a encheu de horror era uma apenas figura humana pálida com o rosto empestado de vermes e vestida com roupas mortuárias. Para ela e à primeira vista, parecia um elemento sobrenatural, mas, como nota Botting (1998, p. 125), a figura não se tratava de um cadáver real, “mas um lembrete macabro artificial da decadência corporal fabricado por monges para assegurar a penitência de um pecador”. Dessa forma, o horror que resultou num efeito físico e aterrorizante, o completo desligamento das capacidades cognitivas de Emily, é afastado pelo terror quando o evento sobrenatural é explicado. Aliás, “sobrenatural explicado” é justamente o nome que se dá a esse recurso radcliffeano.
Na introdução da edição de 1831 de Frankenstein, Mary Shelley diz que pensava em escrever uma história que “pudesse trazer à tona os medos secretos de nossa natureza e que despertasse um terror capaz de nos fazer estremecer – uma história que deixasse o leitor com medo de olhar ao redor, que lhe enregelasse o sangue e lhe acelerasse as batidas do coração” (Shelley, 2014, p. 10). Embora use apenas a palavra “terror”, o seu romance se aproxima também do efeito do horror. O cientista Frankenstein enfrenta cemitérios e até mesmo tortura animais na tentativa de descobrir os segredos da vida, mas, para Botting (1998, p. 126), o momento mais intenso de horror surge quando Frankenstein se dá conta de que a sua criação, um ser que ele imaginara como um objeto de beleza, é o seu completo oposto: “mas agora que havia terminado, a beleza do sonho desapareceu: meu coração se encheu de desgosto e senti um horror de tirar o fôlego” (Shelley, 2014, p. 62). A sucessão de horrores devasta Frankenstein, física e mentalmente:
Às vezes meu pulso batia tão rápido que eu sentia a palpitação de cada artéria; noutras horas, eu quase afundava no chão, dado meu cansaço extremo e minha languidez. Junto a esse horror, eu sentia a amargura do desapontamento; os sonhos que haviam sido meu alimento e meu agradável refúgio durante tanto tempo tornavam-se agora um inferno para mim; e a mudança fora tão rápida, tão completa a destruição! (Shelley, 2014, p. 62).
A personagem já não é mais capaz de escapar do horror que o consome (e também a sua família), e a sua mente e o seu corpo sofrem com os seus efeitos, encaminhando-se para um torpor parecido com a morte.
Nesse sentido, a observação de Botting sobre o horror é extremamente interessante e iluminadora. Para ele, o horror constitui os limites da razão, dos sentidos, da consciência e da linguagem, refletindo a emoção de que o humano alcançou o seu limite: “O horror é, portanto, ambivalentemente humano, o sentimento que preserva um senso de humanidade justamente no ponto em que a ‘natureza humana’ é mais indefinida, mais insuportável e mais ameaçada de desintegração. O horror marca um encontro com o inumano em sua forma mais humana” (Botting, 1998, p. 130-131).
Mas, afinal, por que gostamos tanto de narrativas de medo? Que tipo de prazer se pode tirar delas?
Para os irmãos John Aikin e Anna Laetitia Aikin (posteriormente Barbauld), em “On the Pleasure Derived from Objects of Terror” (1773), isso tem a ver com a dor do suspense e um desejo irresistível de satisfazer uma curiosidade que, quando incitada, nos faria ir atrás dessas histórias, apesar das consequências: “Preferimos sofrer a dor aguda de uma emoção violenta do que o desejo insatisfeito e inquietante” (Aikin, J.; Aikin, A. L., 2000, p. 128). Para saciar uma vontade selvagem dentro de nós, que surge de um lugar sombrio ao qual não temos acesso, uma pulsão, precisamos levar a cabo principalmente aquelas histórias/situações que, mesmo que levem a um lugar de desintegração (de si ou da sociedade), nos corroeria se a deixássemos de lado. Quer dizer, a realização dessa necessidade é mais imperativa que a manutenção da nossa integridade. Mas é somente porque se pode vivê-las a uma distância segura, através de livros, de filmes, de seriados de TV etc., é que podemos passar por elas de maneira segura e ressurgir do outro lado, um pouco mais traumatizados, talvez, mas certamente satisfeitos.
Sendo assim, os textos que lidam com esses tipos de estratégias, as narrativas do medo, não somente buscam educar o leitor e ensiná-lo a melhor maneira de evitar o mal, mas (talvez mais intensamente) também propiciar o deleite na concretização de um desejo que é quase irresistível: seja ver o mal realizado, o corpo estraçalhado pelo medo ou as faculdades mentais completamente dominadas pela irracionalidade. Nessa busca potencialmente autodestrutiva, esse desejo parece refletir uma vontade (gótica) de experimentar com os limites do humano.
Referências
AIKIN, John; AIKIN, Anna Laetitia. On the Pleasure Derived from Objects of Terror; with Sir Bertrand, A Fragment. In: CLERY, E. J.; MILES, Robert (orgs.). Gothic Documents: a sourcebook 1700-1820. Manchester & Nova York: Manchester UP, 2000 [1773], p.127-132.
BOTTING, Fred. Horror. In: ROBERT-MULVEY, Marie (org.). The Handbook to Gothic Literature. Hampshire & Londres: Macmillan, 1998, p. 123-131.
BURKE, Edmund. Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo. Tradução: Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus, 1993 [1757].
PUNTER, David. Terror. In: ROBERT-MULVEY, Marie (org.). The Handbook to Gothic Literature. Hampshire & Londres: Macmillan, 1998, p. 235-240.
MILBANK, Alison. The Sublime. In: ROBERT-MULVEY, Marie (org.). The Handbook to Gothic Literature. Hampshire & Londres: Macmillan, 1998, p. 226-232.
RADCLIFFE, Ann. On the Supernatural in Poetry. In: CLERY, E. J.; MILES, Robert (orgs.). Gothic Documents: a sourcebook 1700-1820. Manchester & Nova York: Manchester UP, 2000 [1826], p. 163-171.
RADCLIFFE, Ann. The Mysteries of Udolpho. Nova York: Barnes & Nobles, 2005 [1794].
SHELLEY, Mary. Introdução. In: SHELLEY, Mary. Frankenstein. Tradução: Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015 [1831], p. 7-13.
SHELLEY, Mary. Frankenstein. Tradução: Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015 [1831].
[1] Burke faz uma diferença entre o belo e o sublime como duas categorias estéticas distintas. O primeiro tem ligação com uma categoria social e inclui qualidades que ele considera femininas como suavidade, ordem e proporção, além de produzir o prazer; o segundo, por sua vez, é uma experiência estética pré-racional e mais complexa que produz o horror deleitoso. O deleite não é um prazer positivo, mas relativo e a sua existência depende da dor, por isso é mais intenso. Ao término do prazer, o máximo que se pode alcançar é o pesar, enquanto após a experiência da dor, quando se elimina também o perigo, é possível alcançar uma sensação sublime.